“O que Lula fez em relação a Israel, ele deveria ter feito com tudo.”

“O que Lula fez em relação a Israel, ele deveria ter feito com tudo.”
Vladimir safatle (Foto: marcos vilas boas)

 

Em uma época na qual as catástrofes se impõem como um “novo normal”, a proliferação das mais diversas fórmulas mercadológicas para nos tornar invulneráveis ao fracasso não deixa de ser paradoxal. Vide a musculatura ostentada pelas apologias neoliberais do indivíduo empreendedor ou pelos fanatismos de cunho teológico-político tanto mais rígidos quanto mais os alicerces da realidade que nos era habitual viram fumaça e deserto.

Vladimir Safatle está na contramão disso. Para ele, a felicidade hoje é não somente um ideal impossível, como também um postulado imoral, dada a desgraça concreta que acomete muitos seres humanos, das periferias paulistanas à faixa de Gaza. Em Alfabeto das colisões, livro que acaba de lançar pela editora Ubu, com verbetes sobre temas como política, arte, sexualidade, universidade… – dispostos fora da ordem alfabética –, ele defende a ideia de que a filosofia, antes de ser batizada como um campo de amor ao conhecimento, nasce de um impulso de revolta.

Na entrevista a seguir, o professor, filósofo e ensaísta – cujas declarações têm causado uma série de contestações, nem sempre atentas à profundidade do que ele tem a dizer – fala das revoltas da linguagem, do desejo e da ação, que não podem ser eliminadas, advertindo para o fato de que a crítica de nós mesmos não é um suicídio. Pelo contrário, é uma força.

 

A Suprema Corte dos Estados Unidos chancelou neste mês de março a candidatura de Donald Trump à presidência do país. O senhor apostaria hoje na vitória dele? Quais seriam as consequências dessa vitória para o mundo, inclusive para as forças golpistas no Brasil?

Eu diria que tentar acertar um prognóstico eleitoral não é exatamente recomendado. É difícil saber se ele vai ganhar ou não, mas uma coisa é certa: a extrema direita mundial é a grande força política do presente. Com capacidade de mobilização contínua, com horizonte de ruptura, que consegue ter uma presença interclasses muito forte. Não é só um fenômeno da classe média, é das classes populares também. Como eu disse, não se trata de um problema norte-americano, é mundial. Claro que, caso a configuração do poder nos Estados Unidos se modifique, isso afetará diretamente o Brasil, porque esse movimento de extrema-direita funciona como uma espécie de grande internacional conservadora. Eles têm muitas conexões entre si. Em um país clivado como o Brasil, ter um elemento como esse a mais provoca uma instabilidade muito maior do que aquela que a gente conhece hoje.

 

A falta de mecanismos nos Estados Unidos para barrar a candidatura de uma ameaça antidemocrática como Trump, ao contrário do que se está tentando no Brasil, faz a gente admirar, digamos assim, o papel que o STF desempenhou durante os anos Bolsonaro? É possível elogiar o STF como um bastião da democracia?

Eu não faria isso, em hipótese alguma. Pelo contrário, aqui no Brasil há um embate entre uma direita oligárquica mais ou menos tradicional e uma direita popular. O STF não se contrapôs a Bolsonaro por amor à democracia. E sim porque Bolsonaro criava um tipo de hegemonia que curto-circuitava radicalmente a direita tradicional, da qual o STF faz parte. Dentro de uma aliança com setores mais progressistas, constituiu-se isso. O STF não é anteparo da democracia em lugar algum, em hipótese alguma. Seus interesses são interesses oligárquicos muito claros, haja vista a maneira brutal com a que eles penalizam tudo aquilo que diz respeito a direitos trabalhistas. Depender desse tipo de instituições, que funcionam mal, para defender alguma coisa como a ordem democrática, só mostra muito da situação brasileira. Acho errado descrever esse processo como uma espécie de defesa da democracia nacional, porque no Brasil não existe democracia. Nunca existiu. A gente tem uma experiência um pouco mais democrática, mas geograficamente situada, que diz respeito aos locais onde vivem as classes médias e as classes mais altas, porque, para as classes mais pobres, ela nunca existiu. Nunca tiveram defesa da integridade pessoal, defesa de direitos ou qualquer coisa que o valha. Eu acho inclusive que essa questão mostra integralmente um déficit muito grande do pensamento nacional em conseguir projetar outras estruturas institucionais, ou mesmo outros processos, que possam aprofundar uma demanda de democracia que ainda não se realizou.

 

O senhor tem acompanhado o impacto que o lançamento de seu livro vem tendo aqui no Brasil, e, em particular, a entrevista dada para o jornal Folha de S. Paulo, na qual o senhor declarou que a esquerda morreu e a extrema-direita é a única força política do país. Imaginava essa repercussão?

Primeiro, uma coisa engraçada é que o livro trata de política de uma maneira totalmente lateral. Na verdade, é um outro tipo de abordagem, mas, devido à forma como a pergunta foi feita, a resposta era essa mesma. Eu defendo tal tese há pelo menos quatro anos. Poderia mostrar outros textos que já escrevi, inclusive com o mesmo título: “A esquerda brasileira morreu”. Houve repercussão na época, mas é verdade que não tão grande como agora. Isso indica que há alguma coisa de real nessa colocação, porque, se ela fosse completamente irreal, não teria mobilizado dessa maneira. Acho que nossa função como classe intelectual é problematizar aquilo que a sociedade não gosta de problematizar. A questão precisa ser levantada porque vivemos em um momento de extrema retração do que foi a esquerda, retração de horizontes e de expectativas, como diz Paulo Arantes, mas também retração da capacidade pura e simples de enunciação. Eu diria que a esquerda se caracterizou por dois elementos fundamentais: igualdade radical e soberania popular. Essas duas pautas estão ausentes do debate atual. Igualdade radical significa haver três espaços fundamentais nas nossas formas de vida – desejo, trabalho e linguagem. Ela precisa ser igualdade nesses três campos. E não há hierarquia entre os três. Pense naquela estrutura do nó borromeano. São três círculos que se juntam, e, se você quebra um, os outros dois se soltam. Se você desenvolve demandas efetivas de igualdade no campo do desejo, através das questões vinculadas ao gênero, vinculadas por sua vez à possibilidade das constituições de identidades sexuais e sexualidade, e nada disso se reverbera em outros campos, quebra-se o vínculo e o processo de igualdade não se realiza. Não é uma coisa paulatina, como “Eu faço uma coisa aqui, depois faço outra coisa ali”. Funciona como uma espécie de horizonte global de igualdade que vai tocando todos esses pontos. Igualdade no campo do trabalho significa uma coisa muito clara: não ter hierarquias no campo de decisão, não estar submetido e espoliado. Não se trata de imaginar que vamos virar uma sociedade de pequenos proprietários – que é mais um delírio –, mas uma sociedade na qual são possíveis palavras como autogestão da classe trabalhadora, porque, afinal de contas, se você está sujeitado a um horizonte de atividades no qual está engajado dez horas por dia, não há igualdade nenhuma. Este tópico sumiu do horizonte da esquerda. Não se fala mais disso. Uma palavra que não se ouve há vinte anos: autogestão da classe trabalhadora. Por outro lado, soberania popular significa que a gente não vai ficar brigando por representatividade e sim por reestruturar radicalmente as instituições da República, tendo em vista o aprofundamento e a realização de expectativas de democracia direta. Isto também saiu do horizonte. O que temos é uma constelação de progressismos, que têm suas lutas importantes, mas limites muito evidentes. Que, inclusive, produzem um descompasso muito grande entre as promessas de grandes revoluções que parecem ser efetivadas, e a realização efetiva delas. Vão gerando uma série de frustrações setorizadas que vão fragilizando ainda mais. Eu digo isso simplesmente na expectativa de que a consciência do caráter de impasse do momento em que vivemos possa levar alguns a compreender o tipo de tarefa que nos espera, que é efetivamente remontar, recuperar, ter uma visão crítica a respeito de nós mesmos. Isso é uma coisa que falta de maneira brutal e dramática. Em um momento como esse, quando estamos em uma situação extremamente defensiva, a crítica de nós mesmos não é um suicídio. Ao contrário, ela é uma força. Isso vai evitar que nós façamos o tipo de coisa que a gente faz hoje. Ao pensar no embate com a extrema-direita, o que nós fazemos, em grande medida, é tentar estigmatizá-la, como se fossem pessoas vinculadas a algum tipo de inferioridade moral, de inferioridade intelectual. É um discurso que só funciona para fortalecer nossas defesas narcísicas, porque, politicamente, ele é inócuo. Os resultados estão aí. Eu vi boa parte das críticas e algumas diziam: “Ah, você não deve estar falando do mundo real porque, afinal de contas, a esquerda ganhou a eleição no Brasil”. Ganhou com uma diferença de 1%, de um governo genocida, da pior espécie, que não tem nada a apresentar do ponto de vista efetivo de desenvolvimento nacional. Que tipo de vitória é essa? Se você acha que vai conseguir com esse tipo de modelo gerenciar as crises do capitalismo, eu sugiro uma coisa: que a gente faça logo estoque de lenços porque o choro vai ser longo. Não tem como gerenciar essas crises. Elas são ingovernáveis. É uma crise conexa, que não é só econômica, mas ambiental, demográfica, social, política. Em 1970-1971, saiu um relatório chamado “Os limites do crescimento”, pelo então Clube de Roma, que fazia uma avaliação nesse sentido, dizendo: “Olha, daqui a 50 anos vai estourar uma crise” porque o crescimento exponencial do capitalismo é gerador de crise. Celso Furtado à época entendeu o que isso significava e escreveu O mito do desenvolvimento econômico, a prova de que a ideia de desenvolvimento é um mito porque, se for aplicada em todos os países, o sistema global entra em colapso. A ideia de que você vai gerenciar essa crise é simplesmente uma forma de paralisar a força política da esquerda. A extrema-direita não acha que vai gerenciar crise alguma. Ela fala claramente que não tem como a gente organizar mais nada ligado a estruturas de proteção. Agora é cada um por si, só que, se trabalhar duro, você vai conseguir porque o empreendedorismo existe. O discurso é irreal, mas tem uma certa coerência interna. Há uma crise psicológica vivida pela classe trabalhadora, que está fragilizada, e com isso o capital aumenta seu grau de espoliação do trabalho. As pessoas não aguentam, elas se sentem completamente arrebentadas do ponto de vista psíquico. Isso faz com que você tenha sociedades como a brasileira, onde há índices de adoecimento psíquico indescritíveis. 13% da população com depressão, 9,7% com transtorno de ansiedade… São alguns dos maiores índices do mundo. A ilusão de que a gente consegue gerenciar as crises do capitalismo vai matar a esquerda. Nossa função é mostrar que existem modelos críticos, experiências em várias partes do mundo que vão tentando recompor as relações entre sociedade e natureza e repensar as estruturas de trabalho e os modelos de produção. Temos o dever de fazer isso circular e não dizer que o horizonte da imaginação está fechado, porque não é verdade.

 

Seria ineficaz propor hoje o retorno a algo como o Estado de bem-estar social ou uma social-democracia?

Seria materialmente impossível e desprovido de sentido. O Estado de bem-estar social nasce por causa da Segunda Guerra Mundial, com setores da classe operária extremamente organizados impondo ruptura. Precisava-se de uma formação de compromisso. Havia países que não faziam parte do horizonte do capitalismo, e isso pressionava o capitalismo a entrar em uma fase de negociação. Não foi uma negociação para todos. A gente fala do Estado de bem-estar social, mas se esquece de que esses Estados eram, ao mesmo tempo, coloniais. A França, até os anos 1960, era um Estado colonial típico. A guerra da Argélia ocorre quando o Estado de bem-estar social francês é montado. E ele não vale para os imigrantes, não é aplicado para eles. Ele precisa da dinâmica colonial de acumulação para se financiar. A Inglaterra era uma potência colonial na mesma época. A Alemanha era um outro caso, uma economia social de mercado, uma mistura do modelo neoliberal e o Welfare State. Não havia salário-mínimo lá até pouco tempo. Esse foi simplesmente um modelo de compromisso. Na primeira oportunidade em que o setor financeiro internacional percebeu que podia fragilizar esse compromisso, ele o fez. Aí entra a dinâmica do neoliberalismo. Foi um pacto momentâneo porque as forças operárias eram muito expressivas e bem-organizadas, ao contrário de hoje. Isso não vai mais funcionar dessa maneira.

 

Quem leu o seu livro pode pensar na morte da esquerda de uma outra perspectiva. O senhor faz um elogio à morte no verbete sobre a vida quando lamenta que a criação não nos tenha permitido a possibilidade de morrer várias vezes ao longo da vida. Portanto, a morte tem uma função positiva nessa sua reflexão…

De fato, o livro tem essa passagem. Na verdade, era uma maneira de dizer que se morre várias vezes em uma vida. A vida é feita de várias mortes no sentido de várias reconfigurações. Uma vida não é um processo de desenvolvimento linear. É um processo de colapsos contínuos, de reorientações e rupturas profundas. Isso que vale para a estrutura psíquica vale também, eu diria, para a estrutura da vida social. A psicanálise tem um conceito bastante importante, que é o conceito de pulsão de morte, o conceito mais mal compreendido da história da psicanálise. Muitos vinculam isso à simples ideia de instinto de destruição, alguma coisa contra a qual você deveria lutar se quiser preservar as forças da vida. Como se tivesse um retorno. Freud dizia que é a tendência dos organismos de retornar à situação inorgânica, só que a ideia freudiana é a de que cada indivíduo volta à sua maneira. Constituir uma maneira singular de lidar com aquilo que nos desconstitui é um elemento constitutivo das múltiplas formas da vida, da produção imanente da vida. Basta lembrar que quem cunhou o termo não foi Freud, foi Sabina Spielrein em um belíssimo texto que se chama “A destruição como causa do devir”, no qual ela vai explicar que no fundo há de fato uma espécie de pulsão de desligamento, de decomposição, de indeterminação, que é própria da ação – que Freud emprega como um elemento biológico – que é constituinte de processos de criação. Há uma matriz estética da pulsão de morte que não pode ser esquecida em hipótese alguma. Só que, muitas vezes, somente essa matriz é lembrada. Houve a experiência da Primeira Guerra, dos traumas, das neuroses, essas repetições compulsivas ligadas a isso. Mas Freud, quando fala da repetição, dá vários exemplos. Um deles é o do jogo que simboliza a perda da mãe que a criança constrói. Ou seja, no caso de Freud, o que leva ao jogo é a pulsão de morte. Pode parecer contraintuitivo, mas é importante entender o que está por trás disso. Essa ligação compulsiva a formas mortas é um problema. A incapacidade atroz de imaginar que, caso não abandone aquilo que está mortificado, você vai entrar em uma situação de completa desorientação. O medo que se constitui como elemento fundamental de vínculo ao presente, isso, sim, é o que deveria ser compreendido.

 

Em relação ainda à esquerda, o senhor fala do presidente Lula governando de uma maneira que foi possível no passado e impossível agora, devido ao atual contexto de polarização política e social no país. Entretanto, recentemente houve posições corajosas dele em relação à guerra em Gaza. Não por acaso, pela primeira vez, se falou com mais eloquência na possibilidade de um impeachment dele. Lula saiu do modelo gerencial e acomodatício e fez jus ao que é ser de esquerda? O senhor concorda com a aproximação que ele faz do genocídio palestino com o Holocausto?

Primeiro, eu acho que o que ele fez foi um ato de extrema coragem e extrema grandeza. Estamos falando de um genocídio aberto e televisionado. Todas as definições clássicas de genocídio estão sendo aplicadas nesse caso. Além do vídeo, eu recomendo que se leiam as 84 páginas do relatório apresentado pela África do Sul na sua demanda na Corte Internacional de Justiça de maneira absolutamente detalhada. Isso antes do massacre das cem pessoas que estavam desesperadas atrás de comida. Antes da ministra da igualdade do governo Netanyahu falar que tinha orgulho das ruínas de Gaza. Eu não consigo imaginar nenhum tipo de desumanização tão brutal quanto ações dessa natureza. O que o Lula levantou é que esse tipo de desumanização já esteve presente em outros momentos da história provocando resultados brutais. Ele não trivializou o Holocausto, isso é uma farsa. Quem trivializou o Holocausto foi o governo Netanyahu, que fez com que seus diplomatas, em uma reunião da ONU, aparecessem com a estrela amarela. Organizações vinculadas à memória do Holocausto fizeram a crítica a essa atitude. Então, acho que o governo de Netanyahu já se mostrou muito claramente. É um governo composto por psicopatas. Eu não consigo dar nenhuma outra descrição dele.  Depois de cem pessoas mortas da maneira mais covarde possível, um dos ministros de Netanyahu declarou que a operação foi perfeita. Isso não gera nenhum tipo de repugnância internacional, de governos internacionais? Estamos vendo um tipo de desumanização já conhecida em situações parecidas. Vide o que aconteceu com 10 milhões de pessoas mortas no Congo Belga. A lógica é mais ou menos a mesma: não se deve chorar, não se deve lamentar, não se deve lembrar. Gaza é um território que está em uma situação de completa excepcionalidade. Ele já foi descrito várias vezes como uma espécie de prisão a céu aberto. A Cisjordânia e a Faixa de Gaza são territórios ocupados há mais de 50 anos. Têm uma população sem pátria, sem estrutura, sem nada. Não é possível imaginar, no século 21, uma população apátrida, que tem o seu direito de existência negado. Vários atores afirmam simplesmente que não existe o povo palestino. Eu não consigo pensar em nenhuma violência simbólica pior do que essa. Quem decide quem existe como povo e quem não existe? Eles se autodenominam como povo e eles não existem, sua autodenominação não vale? Isso não faz o menor sentido. Não faz absolutamente o menor sentido. E que exista um tipo de naturalização dessa aberração política é uma questão profunda a se pensar. Acho que há uma reflexão filosófica a ser feita sobre o que significa pensar após Gaza (Safatle alude aqui ao ensaio de Adorno “Educação após Auschwitz”). Pensar após esse tipo de catástrofe, que não é só humanitária, é um tipo de responsabilização geral da opinião pública internacional, dos poderes internacionais. É o momento em que as Nações Unidas entram em colapso profundo e que mostra que Gaza é um sintoma da ordem mundial. Berenice Bento falou sobre o processo de palestinização do mundo. É um laboratório. Se você faz isso com um povo, você pode fazer isso com uma série de outras populações. Você elimina e apaga o sofrimento. Retira-se o vínculo ao genos, ao genocídio. O que é retirar o vínculo ao genos? É negar as condições de constituição de uma população pertencente ao gênero humano, ter a dignidade, ter a capacidade de ouvir o luto ou ouvir a dor, reconhecer que a liberdade é um elemento constituinte da experiência humana. Essa liberdade exige, entre outras coisas, autoctonia. Ela exige um vínculo à terra. Isso é absolutamente claro. Se você eliminar tudo isso, mostra-se onde está, efetivamente, a reflexão política contemporânea.

 

O senhor acha que o presidente Lula poderia ter tido o cuidado de separar o governo de Israel do Estado de Israel? Indo além da questão de Israel, tão importante ao imaginário cristão brasileiro, sabemos o quanto a Igreja Católica foi fundamental à gênese do PT. Não está faltando hoje à esquerda retomar o diálogo com o cristianismo, em especial com os setores evangélicos, tão infectados de bolsonarismo?

Foi a melhor ação que Lula fez nesse governo porque a situação brasileira está clivada e ela vai permanecer clivada. O problema não é a falta de diálogo com a igreja evangélica, porque o diálogo existiu durante vinte anos. A igreja evangélica fez parte do governo Lula; Marcelo Crivella fez parte do ministério da Dilma. O PL (Partido Liberal, atual sigla de Bolsonaro) foi o partido que ganhou a eleição junto com o PT – não era esse PL, mas tinha a Igreja Universal do Reino de Deus. Desde aquela época a gente falava que isso ia dar problema. Eu posso encontrar textos de 25 anos atrás que afirmavam exatamente isso: a aliança não vai funcionar. São grupos muito claramente organizados do ponto de vista ideológico. Não vai ser uma ação ou outra que vai quebrar isso. O que Lula fez em relação a Israel, ele deveria ter feito com tudo. Ele entendeu que havia um ponto constituinte de uma certa identidade de lutas da esquerda, que está ligado a questões de autodeterminação, à sensibilidade de processos coloniais que continuam até hoje, porque Israel é um estado colonial da pior espécie possível para os palestinos. Lula politizou o processo e consolidou os apoios do seu lado. Claro que teve gente pedindo impeachment, mas não deu em nada porque você consolida seu lado por embate. É isso que falta: compreender que a gente está em uma situação de cisão, isso é fato. Nesse processo de cisão, você precisa conseguir consolidar bem o seu lado. Consolidar significa mobilizar a partir da circulação efetiva de ações que dizem respeito aos valores que são constituintes do seu campo. Sobre a questão evangélica eu insistiria no seguinte: me parece que o elemento central não é um nenhum tipo de regressão intelectual de 30% da população brasileira, mas sim o fato de que estamos diante de estruturas de grande poder de assistência social e de coesão social. De um poder que os campos da esquerda não têm mais. O que antes era feito pelos sindicatos, pelas comunidades e igrejas de base, pelos partidos hoje é feito pela igreja evangélica. Então é normal que as pessoas levem em conta o que as igrejas pedem na hora de votar, na hora de ter posições políticas, é absolutamente normal, não há nada de regressão nesse ponto. É preciso disputar efetivamente o campo da consolidação de vínculos no interior das classes mais desfavorecidas, o campo de amparo social, defesa e solidariedade social. Esse é o elemento decisivo.

 

Voltando ao livro, ao falar daquele paciente que acaba deixando a clínica psicanalítica e vai atrás de um diagnóstico psiquiátrico, que se sente aliviado com aquilo, o senhor discute a necessidade de uma despatologização do sofrimento psíquico. Entretanto, o senhor defende que “o sujeito tome para si sua própria doença, fazendo dela uma arma, expressão ativa de uma recusa social”. É possível pensar em uma doença não-patológica, em despatologizar a doença e aceitá-la enquanto doença?

Primeiro, há diferenças entre sofrimento e patologia. É importante lembrar que nem todo sofrimento é patológico. O sofrimento patológico é aquele que inclusive pode ser objeto de um certo tipo de tecnologia de intervenção vinculado à configuração de valores que uma sociedade entende como necessários a serem realizadas. A clínica é dependente de valores que não são eminentemente clínicos. A clínica do sofrimento psíquico mobiliza uma série de valores que vêm de campos políticos, econômicos e estéticos. Por exemplo, o equilíbrio: o equilíbrio não tem uma definição clínica, é um valor estético; o controle é um valor político; a performance é um valor econômico. Todos eles interferem na constituição do campo do que é normal e na diferenciação entre normal e patológico. Ou seja, o patológico depende da maneira como são descritos certos tipos de sofrimentos passíveis de intervenção. Há, por outro lado, sofrimentos não passíveis de intervenção como o luto, mas isso pode mudar. Embora você tenha hoje definições completamente abstratas do que é o luto patológico: é o luto que passa de duas semanas e coisas desse tipo, sem falar do tempo subjetivo, do tempo imanente de cada um dos sujeitos na elaboração da experiência. Tem essa diferença, que é um elemento primordial. O que significa tomar para si a sua doença? É uma ideia que me veio lendo o material do Coletivo Socialista de Pacientes, ligado a um processo de autogestão dos pacientes nos hospitais psiquiátricos, que teve o seu ápice no começo dos anos 1970 na Alemanha, em Heidelberg. Eles tinham isso inclusive no livro Transformar a doença em uma arma, que será lançado na coleção que eu dirijo. A proposição é muito simples: adaptar pessoas a uma sociedade doente é adoecê-las ainda mais. Os sintomas, as inibições, as angústias, o mal-estar têm uma dimensão de revolta que é importante ouvir. Revolta da linguagem, revolta do desejo, revolta da ação, e essa revolta não pode ser simplesmente eliminada. Eliminá-la seria conseguir se adaptar melhor às injunções sociais das nossas formas de vida, e são elas que produzem graus fundamentais de sofrimento em suas exigências, suas coerções, suas normas em vez de permitir com que os sujeitos tenham a capacidade de, a partir da experiência de seus sintomas, conseguir constituir, a partir deles, a abertura de um campo em relação com seu próprio desejo. Lacan tinha a ideia muito importante de que não há sujeito sem sintoma, porque o sujeito passa para o lado do sintoma. O que há de mais fundamental na experiência do sujeito se expressa na sociedade sob a forma de sintoma, só que ele se expressa de forma distorcida. Cabe então à intervenção clínica permitir que essa forma distorcida consiga encontrar o seu espaço menos dramático de sofrimento, porque vender a possibilidade da ausência do sofrimento numa sociedade marcada pela reiteração do sofrimento cotidiano é simplesmente tirar do sujeito a capacidade que ele tem de lidar com as situações reais, o que é ainda pior. Freud falava que o problema da educação é que você mostra para os sujeitos situações ideais que eles nunca vão efetivamente encontrar. Se você preparasse as pessoas para lidar com as contradições imanentes da vida social, com as situações reais da vida social, elas sofreriam menos. Dentro dessa ideia há uma intuição muito importante. A função fundamental da intervenção clínica é efetivamente fazer com que seja possível uma experiência menos dramática do sofrimento. Até porque o sofrimento é partilhado. O jogo da nossa sociedade é jogar a causa do sofrimento nas costas dos indivíduos. “Você não sabe amar, não consegue se orientar, não sabe o que quer”.

 

Por que o senhor fala, parafraseando Kafka, que “a felicidade existe, mas não é para nós”?

É impossível uma felicidade individual numa sociedade que é fruto da infelicidade de muitos. Seria até obsceno imaginar que isso fosse possível. Mas o fato de a felicidade ser impossível não impede a riqueza da experiência de ninguém; não impede que a vida seja plena e rica, que ela seja rica de sentimentos os mais variados possíveis, que ela seja produtiva no sentido mesmo da subjetividade dos que procuram produzir caminhos singulares. Ela não impede absolutamente nada. Acho que, na verdade, existe uma dimensão de conformação social num certo tipo de discurso da felicidade.

 

Um dos mais importantes discursos sobre a felicidade na Antiguidade era o do estoicismo, que hoje tem sido resgatado. É interessante notar que o senhor dedica seu livro àqueles que, no percurso da vida, não abaixam a cabeça para as placas de “Pare”, mesmo “sabendo que terão que aguentar estoicamente o impacto das colisões”.  

A crítica hegeliana ao estoicismo era que você criava um espaço de vida individual que criava uma ilusão de liberdade que não tinha nenhuma efetividade real. Mas eu teria um outro tipo de colocação. Há as condições históricas de desenvolvimento do estoicismo. Não é por acaso que ocorreu no momento de declínio do Império Romano, em uma ordem social que começa a entrar em colapso, que traz um movimento de retração em direção a si. Mas esse momento de retração tem duas dimensões. Uma dimensão é a compreensão de que a possibilidade de liberdade se dá também dentro da transformação da relação do indivíduo com aquilo que se dá com o curso do mundo. Deleuze tem uma recuperação interessante da ideia de estoicismo. Na maneira como ele recupera, ele mistura um pouco o estoicismo, Nietzsche e a questão do eterno retorno como produção, não como retorno do mesmo, mas como diferente. Isso se dá na questão da relação ao acontecimento, a moral do acontecimento. O fato moral de estar aberto e ser capaz de lidar com o acontecimento é uma injunção moral que ele consegue recuperar do estoicismo. Eu acho essa uma ideia astuta de Deleuze.

 

O senhor afirma que, ao contrário do que a palavra sugere, a filosofia não tem nada de amor em sua origem, ela tem de raiva. Camus diria que a revolta está no âmago da consciência moderna. O senhor diria que a revolta está no âmago da consciência filosófica em geral, que não há filosofia sem revolta com seu impulso originário?

Claramente, desde Sócrates. Não se precisou entrar na era moderna para que isso aparecesse. A filosofia não é um amor pelo saber, é uma raiva pelo saber constituído, uma raiva pelo saber que se organiza como senso comum, com seus limites, com as suas imposições, com as suas fronteiras. É uma raiva da consciência da disparidade entre o campo da experiência e o campo do saber. O campo do saber não só por aquilo que eu sei, mas pela estrutura de como eu sei, a gramática que organiza o meu saber. Por isso a filosofia sempre aparece em momentos de crise. Ela sempre está vinculada à experiência da crise. Não é no ápice de um momento histórico que a filosofia mostra sua força, mas quando a história entra em colapso. É aí que a filosofia tem de lidar com as suas contradições imanentes de maneira mais profunda possível. Por isso, entre outras coisas, a filosofia está vinculada a uma capacidade de crítica dos seus próprios valores, normas, regras e leis. Esse é o objeto da filosofia. Ela é uma modalidade de discurso que as sociedades desenvolvem para abrir espaço para a reflexão crítica daquilo que elas tomam por válido e incondicional. Nesse sentido, imaginar que ela tem uma origem geograficamente localizada é só uma construção colonial. A história do milagre grego é só um delírio ocidental. Claro que não se encontra filosofia com esse nome em outro lugar porque o nome é grego, isso é um truísmo. Imaginar que operações similares não são constituintes de toda e qualquer forma de vida, imaginar que uma coisa é a razão e outra coisa é o mito e que na Grécia havia a razão, o pensamento racional, enquanto os outros estavam ligados ao pensamento tradicional, ao pensamento mítico, à autoridade tradicionalmente constituída, esse é um dispositivo colonial o mais primário possível. Se há uma coisa fantástica na Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, é quebrar a ilusão colonial da filosofia ocidental. As intervenções entre mito e razão são contínuas dos dois lados. O mito já é uma operação racional porque já racionaliza, abstrai e estabelece relações. Por outro lado, a razão cai a todo momento em mistificações que têm vida própria, a começar pela nossa, que está profundamente vinculada ao modo de reprodução social, ligado à sociedade capitalista. Nossas racionalizações são vinculadas a um certo tipo de sociedade liberal, que tem em seu processo de construção de valor uma estrutura mistificadora, que é o fetichismo como elemento interno às nossas sociedades. Acreditar que a história do nosso processo de racionalização é um processo histórico irresistível e progressivo em relação à emancipação é um delírio alucinógeno. Neste momento histórico, quando nós temos também uma crise epistêmica que nos obriga a reavaliar as matrizes epistêmicas que foram apagadas no interior da constituição de uma matriz hegemônica, torna-se interessante reavaliar essas dinâmicas, lembrando que há processos de constituição de discursos filosóficos em toda e qualquer forma social.

 

Além da revolta, um outro termo forte em Camus é o absurdo. O senhor parece um crítico da noção de absurdo quando está discutindo Beckett em um dos verbetes. A noção do absurdo enquanto tal poderia, contudo, ter alguma pertinência? É possível comparar o registro do real em Lacan com o absurdo em Camus?

Não faria isso, pois essa comparação pressupõe uma noção desconectada de contingência. Pressupõe que a contingência não é produtora de relações, que ela não tem uma processualidade, que ela é um fato irredutível em si. Nesse ponto eu tenderia a ser hegeliano e dizer que a contingência é a maneira como a necessidade se constitui. Então, ela não pode ser absurda. Ao contrário, ela é racional. É importante que a razão não seja vista como essa espécie de ilusão normativa prévia, que há uma determinação transcendental de princípios para depois avaliar até que ponto eles se realizam ou não. Ela é uma capacidade de fazer com que as contingências se integrem no interior de uma totalidade de relações, se constituam como necessidade. Isso pode parecer uma teoria do fato consumado, em que, se algo aconteceu, então é bom. Eu diria que há aí também algo que pode nos fazer retomar a discussão sobre o estoicismo. Mas isso significa reconhecer que o acontecimento é gerador de necessidade. Ele tem uma racionalidade que lhe é interna. E, mesmo quando ele produz algum tipo de catástrofe, essa catástrofe não é o capítulo final de processo algum. Ela é uma condição para o exercício de um tipo de produção que vai mostrar efetivamente sua racionalidade.

 

Em seu livro, o senhor evoca um ato de sua campanha para deputado federal em 2022, no auditório Bento Prado Júnior, quando relembrou à plateia a célebre frase do professor Bento em 1968: “Bem-vindos à faculdade de filosofia. Aqui vocês vão aprender a metafísica de Bergson e a correr da polícia”. Em seguida, cita a ideia bergsoniana de tempo como “duração”, algo criador e transformador, como arma para nossos combates de hoje. Essa passagem nos faz pensar, porém, em uma situação de “eterno retorno do mesmo”, afinal os tempos em questão são a ditadura militar pós-64 e o clima pré-ditatorial do governo Bolsonaro. Como o senhor faria uma comparação entre o tempo como duração, em Bergson, e o tempo como repetição catastrófica? Não parece que esse tempo repetitivo está prevalecendo?

A frase do Bento foi muito feliz em muitos sentidos. Ela é uma espécie de descrição do que é um princípio de um projeto educacional. Ensinar as pessoas a metafísica de Bergson e a correr da polícia: acho que não tem educação melhor do que essa. Isso me lembra o Marquês de Condorcet na Revolução Francesa, que dizia que a função da educação pública é criar um povo insubmisso e difícil de governar. É de uma sabedoria maior permitir a circulação da força crítica daquele que é o sujeito do processo intelectual e permitir que essa força crítica se desdobre onde ela precisa se desdobrar, mesmo quando tem que ser contra as instituições, das quais, de uma certa da maneira, a universidade faz parte. A universidade é uma instituição anômala porque, ao mesmo tempo que faz parte do problema, ela é uma reflexão crítica sobre ela ser parte do problema. Ela tem uma margem de espaço que outras instituições não têm. Por isso que nós, como professores universitários, temos um grau de autonomia que outros normalmente não teriam, e isso é um problema. Por um lado, há esse espaço, mas, por outro, há também a compreensão de que aquele que parece totalmente dissociado das preocupações políticas efetivas, o campo da metafísica, também é um objeto fundamental de reflexão crítica. Eu nunca fui desses que fazem uma defesa do pensamento pós-metafísico. Está sempre muito claro que a ontologia é um setor fundamental do pensamento crítico, é o setor daquilo a que a gente está exposto em certas situações como variável. É importante entender que é possível criar um conceito de ontologia em situação. Essa ideia de que dentro de uma situação há elementos dotados de uma função ontológica. Eles preservam, inclusive, no campo do pensamento, aquilo que a situação não consegue realizar. O tempo-duração é um exemplo muito feliz desse conceito. É a ideia de que você tem um tempo que não é efetivamente esse tempo decomposto dos instantes, mas é esse tempo de uma continuidade fundamental no sentido de uma alteração, de um ser pensado como alteração. O livro de Deleuze sobre o Bergson é muito bonito nesse sentido. É algo que, do ponto de vista da nossa experiência concreta, é uma contradição. Eu sei que o Bergson não admitiria esse tipo de palavreado, mas, de toda forma, a gente pode falar um pouco desse maneira. Isso mostra, entre outras coisas, como há um campo de experiência que se preserva no pensamento. Ele está em vários lugares, em setores laterais da vida social, em dimensões da experiência estética, em certos campos de produtividade literária, mas ele não consegue sair. Porém, isso não significa que ele não tem a realidade. Significa que ele permanece como uma espécie de mensagem numa garrafa, como se dizia antes. Essa função de não quebrar essas garrafas, de impedir que elas sejam quebradas, passar as mensagens na garrafa de um para outro porque cada um vai saber o que fazer com ela, pois outros vão poder fazer coisas muito maiores do que nós fizemos com elas, isso é, para mim, uma definição muito significativa da atividade filosófica e do ensino de filosofia.

 

Duas fotografias são muito impactantes no livro. A primeira é do anúncio da Andrade Gutierrez, do inferno verde – que o leva a afirmar que não há pacto ecológico se não houver pacto psíquico. A segunda é das ruínas da sua casa no Chile. Que reflexões isso desperta sobre a sua experiência pessoal e sobre a nossa situação coletiva de ruínas?

Essa campanha entrou em circulação nos anos 1970. Era da Andrade Gutiérrez, responsável pela construção de um trecho da Transamazônica, que era, então, a estrada que cortava a floresta. A campanha traz essa frase fantástica: “Para unir os brasileiros, estamos vencendo o inferno verde”. Você percebe muito claramente a ideia de que a natureza é algo a ser vencido como um mal. É algo a ser esconjurado, subjugado, submetido. Eu poderia fazer toda a reconstituição da gênese dessa ideia teológico-política de natureza. Poderia ir até Santo Agostinho. É agostiniano de uma certa forma dizer que a natureza em nós é um princípio de insubmissão, e que ela precisa ser vencida, que é um mal, é libido que não se submete à vontade, que lembra a insubmissão do pecado original, e por aí vai. Todo esse elemento é constituinte da lógica colonial desde o início. É a ideia de você precisa intervir em algo selvagem, não trabalhado pela mão humana. É um sistema de mistificações porque não representa os processos produtivos de hoje. Essas tribos que habitavam esses espaços tinham um tipo de interação e de desenvolvimento de tecnologia entre elas e o meio-ambiente completamente diferente do processo de extração de valor que nos é próprio com as grandes plantações e latifúndios. Chegavam os europeus, viam aquilo e achavam que não tinha nada e saíam com seu processo de devastação e destruição, que precisa de uma eliminação de toda aquela tecnodiversidade, que é própria daquelas populações, de seus saberes e epistemes. O processo de desenvolvimento nacional preserva essa violência, a América Latina mostra isso muito bem; como as nossas ilusões de progresso, de desenvolvimento e de crescimento sempre foram marcados por uma profunda dimensão de violência. Ela é selada assim desde o seu início. Por isso alguém como Adorno precisa afirmar que o progresso só começa onde termina. Só quando a gente conseguir fazer uma autocrítica profunda desse vínculo entre progresso, dominação e violência é que algo parecido com emancipação pode começar a ser uma realidade. É muito interessante que você lembre que parece haver uma figura da natureza que não é o retorno ao estado de natureza porque, claro, o estado de natureza é mais um dos dispositivos filosóficos que foram criados exatamente para tentar impedir um fato. Há um livro muito interessante de David Graeber que é O despertar de tudo, no qual ele lembra o que aconteceu com o contato entre europeus e tribos ameríndias do ponto de vista político. Os jesuítas à época relatam um problema: esses povos eram muito mais livres do que os europeus. Eles só seguem a autoridade, se ela der as suas razões para isso. Só seguem se eles quiserem, por argumentação. Uma sociedade ideal tem argumentação. Não havia essas figuras da coerção, da insegurança. É interessante fazer uma avaliação de como certos dispositivos filosóficos são construídos a partir do impacto de experiências históricas concretas. O estado de natureza pode não se vender como hipótese antropológica, mas ela é o resultado de um contato antropológico do mundo europeu com o novo mundo, tanto que aparecem elementos em Hobbes, em Locke. Rousseau é um caso mais complexo e interessante. Mas, de toda forma, insisto nisso para dizer que existe efetivamente um horizonte importante de ação que consiste em decompor, em destruir a natureza. Não destruição física, mas a destruição da natureza como um conceito. Acho que essa é uma tarefa filosófica política fundamental. A gente vê esses processos, por exemplo, quando, no Equador, é aprovada uma lei constitucional dizendo que natureza é um sujeito de direito. Você quebra a distinção de pessoas e coisas; você recompõe a relação entre sociedade e natureza. Isso tem consequências muito importantes se a gente pensar que todo processo extrativista é fundamentado no fato de que a natureza é um objeto a ser possuído. É um estatuto de objeto a ser possuído, uma coisa. Quando você fala que ela é um sujeito, abre espaço para um tipo de politização importante, de dimensões profundas, de relação entre sujeitos e o seu ambiente. Isso é um dado. Sobre a outra foto que você levantou: no livro eu quis mentir sobre a primeira pessoa, no sentido de querer usá-la dentro de outros horizontes que não são o da experiência imediata. Essa foto aparece em um texto sobre o eu, sobre o colapso da noção de eu no momento do novo romance contemporâneo, ligado ao nouveau roman, a Alain Robbe-Grillet. Uma maneira de se pensar também no que a literatura se tornou depois, como se realizou o projeto político da literatura que não foi esse, que era a desconfiança com a primeira pessoa do singular. Ao contrário, foi a inflação da primeira pessoa do singular como perspectiva do testemunho, como perspectiva da dor do testemunho, entre outras coisas. Eu quis insistir nessa ideia do quão arruinada é a procura da origem, do quanto uma literatura se constrói em cima disso e da impossibilidade desse tipo de retorno. Eu nasci no ano do golpe de estado no Chile. Não pude voltar lá durante muito tempo. Depois, quando já era possível retornar, eu não quis. Demorei dez anos para fazer isso. A gente nunca tinha voltado à casa e, quando eu voltei, ela tinha sido destruída dois ou três meses antes. Eu achava que isso tinha algum sentido porque só sobraram as ruínas.

Caio Liudvik é tradutor, pós-doutorando em Filosofia pela USP e autor de Sartre e o pensamento mítico (Loyola, 2007).


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