Roberto Piva: Os artistas são os xamãs da sociedade contemporânea

Roberto Piva: Os artistas são os xamãs da sociedade contemporânea
O poeta Roberto Piva (Rui Feliciano)

 

Ecologia da linguagem: os poetas brasileiros têm de deixar de serem broxas para serem bruxos. A provocação é de Roberto Piva, autor de Paranóia. Estudioso das técnicas arcaicas do êxtase, passageiro do inframundo e amigo dos orixás travessos da sombra, Piva nos fala do nexo entre arte e loucura, poesia e marginalidade; alerta-nos contra a monstruosidade do homo normalis, comenta a obra de Mário de Andrade e rende tributo à onça-pintada, convertida em totem da nacionalidade.

CULT – Em entrevista recente, você declara ter utilizado o método paranoico-crítico de Salvador Dali para escrever os poemas que compõem o livro Paranóia. Avesso à sistematização de tipo cartesiano, contra os “pinicos estreitos da lógica” e “torniquetes da consciência”, para usar expressões suas, tal método, intuitivo por definição, se detém nos detalhes de uma composição para deles derivar…

Roberto Piva – O Dali criou esse método a partir do delírio do paranoico. Você, que é psicólogo, sabe que o paranoico se fixa num detalhe e constrói um mundo alucinatório, imaginário, a partir daquele detalhe. Um poema como “Praça da República dos meus Sonhos”, por exemplo, foi construído a partir dos detalhes da praça, num delírio semelhante ao do paranoico. Só que não é um poema de alucinação persecutória. Apesar de eu também me sentir um pouco perseguido dentro desta cidade, onde você precisa ser passarinho para atravessar a rua, para não ser atropelado. Não é isso? O poeta Allen Ginsberg dizia que a realidade é que era paranoica, não ele.

Em poemas e manifestos, você sempre insistiu no parentesco profundo entre arte e loucura. Para o artista romântico, esse parentesco significa que o eu autêntico é o eu não-socializado, não sufocado pelas convenções civilizadas ou universalizado pelo senso comum, como está no seu poema “A Piedade”. Você não acha que tal compreensão deriva frequentemente para uma crítica não-dialética aos constrangimentos sociais, entendidos como fachadas que encobrem o verdadeiro eu?

Eu, como o Pasolini, não acredito na dialética. O que existe são oposições irreconciliáveis. Acredito naquilo que o Freud afirma em “O mal-estar na cultura”: existe um movimento cada vez mais restritivo, não só da vida sexual, mas da subjetividade de modo geral. É também, de certa forma, um texto paranoico em relação à cultura, que é entendida como repressão. Quanto ao parentesco entre arte e loucura, acho que o “desregramento de todos os sentidos”, de que falava o Rimbaud, refere-se não propriamente à loucura, mas a um estado de transe. Um estado de transe xamânico, porque Rimbaud era um alquimista, um xamã avant la lettre, que propõe mesmo a “alucinação das palavras”; o termo é dele. Os artistas, como afirma Joseph Campbell, são os xamãs da sociedade contemporânea.

A loucura propriamente dita é uma coisa muito triste, horrível. Quando Huizinga fala que o louco, o poeta e a criança têm coisas em comum, ele está pensando na criação artística, na imaginação fértil, propiciatória. A esquizofrenia em si é uma coisa muito triste. Às vezes tomamos por loucura não a “doença mental” especificamente, mas as manifestações do irracional. Aquele impulso para o irracional que, conforme Pasolini, acabou fazendo do Ocidente, que tanto se empenhou em negá-lo, a vítima mais fatal. E temos aí a história que não nos desmente, não é mesmo?

Você vive afirmando que não acredita em poeta experimental sem vida experimental, que faz os poemas com “o que sobra da orgia” propondo uma identificação entre sujeito poético e sujeito empírico. Não obstante, há vários leitores seus, como o poeta Felipe Fortuna, para quem o bom resultado alcançado por você deve-se menos à radicalidade de experiências tematizadas por você (homoerotismo, drogas etc) que ao “bom arremate literário” dado àquelas experiências. Como você encara tal tipo de leitura?

É aquilo que diz o Octavio Paz: “há uma única forma de se ler os jornais e várias formas de se ler um poema”. Cada pessoa enxerga uma coisa diferente na minha poesia, pois no fundo ela é muito rica e permite uma enorme variedade de interpretações. A qualidade do arremate literário não exclui a radicalidade das experiências que estão na origem do poema. Mas acho que essa valorização excessiva da fatura pode revelar certo preconceito contra o dionisismo, a ideia de que é algo superficial. Está errado. O dionisismo é uma das religiões mais profundas que já existiram. Basta ver que uma das suas manifestações produziu o teatro. Quer mais do que isso? Dionísio é o deus do teatro. As artes da aparência empalideceram diante de uma arte que proclamava a sabedoria na sua própria embriaguez. Donde a estética cabaço, atuando nas mais diferentes escolas literárias pelo Brasil afora. Vivemos num país profundamente dionisíaco, onde os intelectuais têm preconceito contra as manifestações espontâneas, criativas. Mesmo o fato de me enquadrarem na poesia marginal, dos anos 1970, tem a ver com isso.

Eu queria aproveitar um pouco sua menção à poesia marginal. “Desde que foi expulso da República de Platão, todo poeta é marginal”, “O Brasil precisa de poetas perseguidos pela polícia, o resto é literatura”. Como ficam hoje tais declarações feitas por você no princípio dos anos 1980? A institucionalização da bandidagem não inviabilizou esse tipo de slogan? Você não acha que a poesia marginal, buscando aproximar a sensibilidade do poeta da do marginal, do bandido, descambou para um tipo de idealização, de estilização que esvazia a experiência social, concreta, da marginalidade?

Os bandidos naquela época eram românticos e possuíam uma ética. Pasolini foi o primeiro a notar isso. Numa sociedade de massas, o banditismo e a criminalidade também estão massificados. Há uma indiferenciação muito grande. Hoje se mata porque o cara não gostou dos óculos que o outro está usando. Ou porque alguém sentou no paralama do seu carro. Eles dizem: “Roubei o tênis que eu vi na televisão porque quem usa esse tênis é bacana”. Sabemos, pela experiência de Ivan Illitch, que uma cidade com mais de duzentos mil habitantes será inviável, diz ele, a partir do ano 2000. O que estamos testemunhando nos hospitais não é o simples desleixo, mas é a crise da Medicina. Como estamos assistindo à crise da Economia. Não é uma crise econômica, mas uma crise da Economia.

E tudo se liga à uma crise do urbano. Não importa mais checar índices de criminalidade. O ser urbano não é um centauro, mas um ser sem horizontes; só enxerga o tênis que ele não tem. Então ele mata, às vezes, por um tênis; não pelo benefício econômico que aquilo vai lhe trazer, mas pelo prestígio. Nos anos 1960 eu conheci muitos adolescentes marginais, o equivalente dos que hoje estariam na Febem. Um deles sabia Baudelaire de cor, “As litanias de Satã”, e andava com o Zaratustra do Nietzsche debaixo do braço. Era ladrão, assaltante, mas nunca matou ninguém. Havia um princípio ético que ainda regia a vida daqueles bandidos. Eles também eram de extração rural. Agora são todos urbanóides, pálidos criminalóides de periferia.

Então o lema do Oiticica, “seja herói, seja bandido”, não…

Mas ele estava falando do “Cara-de-Cavalo”, o último romântico do banditismo. Atualmente o que existe é uma criminalidade de massa perigosíssima, porque o homem normal se transformou em criminoso. O homem normal, diz o Pasolini, é um monstro. Está aí a Hannah Arendt, com o Eichmann em Jerusalém, que não me deixa mentir. Quem é o Eichmann? Um cara pavorosamente normal, absolutamente medíocre, que fala por clichês e que mandaria matar o próprio pai se recebesse uma ordem superior nesse sentido. Um burocrata sinistro, enfim.

Muitos consideram o Paranóia como a Paulicéia desvairada dos anos 1960. Você concorda? Como foi a sua relação com a obra de Mário de Andrade?

Acho que o que há comum entre os dois livros é uma experiência alquímico-futurística da cidade. Só que eu inverto tudo isso. O que eu tive foi uma relação de pesadelo… e de coisas boas, porque, no fundo, a gente só vive o momento. Há o fio-condutor da explosão, a paisagem que se racha de encontro as almas, o cérebro que se racha de encontro a uma calota…, a idéia da ruína. É mais ou menos aquilo que diz o Brecht: “Da cidade sobrará apenas o vento que passa sobre ela”. É claro que, além disso, há diálogos mais explícitos, por exemplo, com a “Meditação sobre o Tietê” e com o “Girassol da Madrugada”. Aliás, já da primeira vez que li o Mário, percebi que era um poeta com forte sensibilidade homossexual. Repare bem: “Tudo o que há de melhor e de mais raro / Vive em teu corpo nu de adolescente / A perna assim jogada e o braço, o claro / Olhar preso no meu, perdidamente”. No “Girassol da Madrugada”, isso aparece de modo muito nítido. O que não quer dizer que eu desconsidere os outros modernistas, mas o Mário foi uma descoberta que me interessou pelo lado homoerótico. Como o Sosígenes Costa. Bati o olho e disse: Êpa! Depois, consultando um especialista na obra do Sosígenes, obtive a confirmação.

Alguns críticos chamam a atenção para o caráter moralista da sua obra. Um moralismo às avessas, radical, que também atravessa a obra de autores como Sade. Algo como um “catecismo da devassidão” que, fazendo a apologia do mal, chama a atenção para um bem supremo, utópico…

Mas esses corpos de que eu falava não existem mais. Eram garotos dourados do subúrbio, da periferia. Hoje, sem a gíria criativa do subúrbio, eles só querem uma moto para colocar na garupa a indefectível garota ornamental. E apenas grunhem. Agora, é preciso também entender a orgia de que eu falo de um jeito largo. A orgia admite muitas interpretações. O Breton, por exemplo, diz que a poesia é a mais fascinante orgia ao alcance do homem. Eu fiz muitas orgias, mas não proponho isso para ninguém, porque muitas vezes as pessoas não estão interessadas. Quando escrevo, não estou propondo nada, estou relatando experiências. Meus textos não possuem caráter prescritivo, muito pelo contrário. Quero que cada vez menos gente se interesse pela orgia sexual, para sobrar mais para mim (risos).

Ainda com relação a isso, queria pensar um pouco no caráter transgressivo da sua poesia, o impulso para epatér le bourgeois. A gente sabe que o burguês adquire o gosto de ser chocado e passa a manipular a insurreição dos artistas em benefício próprio. Você não acha que o Paranóia seduz hoje menos pelo furor iconoclasta que pela qualidade das imagens? Hoje ninguém se choca com “anjos de Rilke dando o cu nos mictórios”

Mas é uma imagem bonita. Fiz o seguinte: tirei os anjos de Rilke daquele pedestal metafísico e os coloquei no mictório, quase numa interpretação shivaísta do anjo do Rilke. O anjo como uma categoria de orgia, de tantrismo. Quanto à burguesia, ela se transformou em classe universal. Não acredito na burguesia em caráter genérico. O marido da Anaïs Nin, por exemplo, era um banqueiro que, sabendo que o Henry Miller transava com a Anaïs Nin, dava dinheiro para ele, que era um escritor pobre, um americano que estava em Paris e tal. Esse sujeito financiou artistas plásticos, escritores… e era um banqueiro. O valor do Henry Miller, para aquele banqueiro anarquista, estava acima do fato de ele ser amante da mulher. Aliás, formavam um trio e se davam muito bem, de acordo com a própria Anaïs Nin. O Henry Miller escreveu sobre isso. Veja você quantos anos ele ficou sem publicar nos Estados Unidos. Foi publicado primeiro na França, porque nos Estados Unidos sua obra estava censurada. Mas ele não escreveu para epatér ninguém. O Henry Miller escreveu sobre aquilo que ele viveu. Se isso é chocante, não é culpa dele.

E quanto aos seus manifestos? O coito anal derruba mesmo o capital?

(risos) De certa forma, sim. Porque se todos forem homossexuais, acaba a mão-de-obra. A não ser naquelas sociedades de Sade, em que há a ilha onde algumas pessoas são designadas para a reprodução e, envergonhadíssimas, dirigem-se à heterossexualidade. Mas, se a sociedade inteira for homossexual, acaba a reprodução da mão-de-obra e, portanto, acaba o capital (risos). Não só o capital, a espécie humana. O
que talvez fosse interessante. O herdeiro seria a onça-pintada que, comovida, agradeceria (risos).

Então aproveite e fale da sua proposta de transformar a onça em totem da nacionalidade.

Ah, claro. Parece que, para os índios Ianomami, no dia em que matarem o último xamã e a última onça-pintada, o céu cairá. Acredito piamente nisso. O céu já caiu uma vez. Vai cair pela segunda vez se os xamãs e as onças desaparecerem. Proponho também que se façam experiências telepáticas com onças para conhecermos suas reais necessidades.

Você diz até que elas ajudariam a guiar crianças cegas (risos).

Ajudariam de uma certa forma (risos), devorando-as como guloseimas, não é? Porque, para os grandes predadores, crianças e mulheres são presas fáceis. Ainda nessa linha da telepatia com as onças, um experimento que deu certo foi o do Guimarães Rosa em meu tio, o Iauaretê. É uma obra-prima esse conto. É um conto xamânico, pois o tio se transforma no jaguar, se oncifica. Maiakóvski dizia: eu me ursifico. Esse personagem do Rosa parece dizer: eu me oncifico.

Queria que você falasse um pouco da sua relação com a universidade. Em Paranóia, você escreveu que professores “são máquinas de fezes”. Noutro poema, sobre a batalha de Campaldino, onde aparece a dúvida quanto ao fato de os guerreiros terem comido carne humana, você diz que os “universotários”, com sua “antropofagia vegetariana, apavorados, peidam no escuro”. Fale um pouco sobre isso.

A universidade é o túmulo da poesia. Eu só fiz curso superior para poder dar aula. Não podia lecionar com dois livros publicados. Lecionei por quinze anos. Tudo o que me deram para ler na universidade ou era sucata ou eu já havia lido. Insisto em que as universidades devem ser transformadas numa coisa viva, isso é, num terreiro de candomblé. Com pais-de-santo, ou xamãs, no lugar dos professores, de modo a propiciar aos alunos uma verdadeira iniciação. As universidades precisam de um corpo docente e um corpo indecente (risos).

Você também é um advogado veemente das “idéias Biodegradáveis”. Como você as concilia com as suas obsessões?

As ideias biodegradáveis são aquelas convicções, como propunha Álvaro de Campos, que não duram mais do que um estado de espírito. Nunca mais do que um dia. Nós vemos por aí pessoas enraizadas em ideologias fascistas e comunistas, cheias de dores de corpo, mal entendidos, enxaquecas… Por isso o Nelson Rodrigues dizia: “Tem de morrer até o último idiota”. Mas todo dia, “nos cabides de vento das maternidades”, nasce “um batalhão de novos idiotas”, como eu escrevi no poema “Visão 1961”, incluído em Paranóia. Mas há muitas pessoas que não têm essas ideias fixas, essas ideologias cimentadas em espaços mortos, esse passadismo que procura deter o dinamismo do pensamento.

“Eu preciso cortar os cabelos da minha alma”, diz um verso seu. Em que barbeiro? E como prevenir a calvície da alma?

(risos) É uma imagem louca, não é? Acho que, na época, pensava em cortar os cabelos como meio de desfazer a confusão que me atingia. Às vezes, não basta pentear os cabelos da alma. A gente tem de cortar mesmo, para enxergar melhor. Quanto a prevenir a calvície da alma, o melhor remédio, na minha opinião, é o ritual xamânico dos quatro ventos.

Num dos últimos poemas do Paranoia, você diz: “eu quero a destruição de tudo o que é frágil”…

Mas sabemos que não é nada frágil aquilo cuja destruição eu desejo. A poesia é que é frágil, é uma forma de abrir brechas na realidade; como o Baudelaire, o Artaud, o Gottfried Benn e o Georg Trakl abriram. Mas não impediram Auschwitz. O poeta não existe para impedir essas coisas. O poeta existe para impedir que as pessoas parem de sonhar.

(2) Comentários

  1. PERDEMOS UMA MENTALIDADE TRANSLÚCIDA E BRILHANTE, COMPLETAMENTE DIFERENTE DAS INUTILIDADES HERMÉTICAS QUE VEGETAM POR ESTES BRASIS ADENTRO…

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