Moniz Bandeira: A teoria e a práxis se realimentam mutuamente e se corrigem

Moniz Bandeira: A teoria e a práxis se realimentam mutuamente e se corrigem
O historiador e cientista político Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira (Foto: Divulgação)

 

O cientista político e historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira tem grande parte de sua vida dedicada à pesquisa acadêmica e à militância política. Na década de 1960, foi filiado ao Partido Socialista Brasileiro e, após o golpe militar no Brasil, asilou-se no Uruguai juntamente com seu amigo João Goulart. Na clandestinidade, volta ao Brasil, onde é preso por dois anos a pedido do Centro de Informações da Marinha. Após sua saída da prisão, dedica-se intensamente à carreira acadêmica. Leciona em diversas universidades até aposentar-se pela UnB.

Com mais de 20 livros publicados no Brasil e no exterior, entre eles Formação do império americano – Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque (Civilização Brasileira, 2005),  foi eleito Intelectual do Ano de 2005, vencedor do Troféu Juca Pato. A sua mais recente obra, Fórmula para o caos – A derrubada de Salvador Allende (1970 -1973)  (Civilização Brasileira, 2008) foi lançada simultaneamente no Brasil e no Chile. A expressão “fórmula para o caos”, usada por Henry Heckscher, chefe da CIA em Santiago na época do governo de Salvador Allende, designa o conjunto de operações encobertas para impedir a sua posse e, depois, para o golpe que resultaria em sua deposição.

Moniz Bandeira mora na Alemanha, de onde nos concedeu a entrevista.

CULT – O senhor desenvolveu intensa atividade política, foi perseguido pelo regime militar, asilou-se no Uruguai acompanhando o presidente João Goulart, viveu clandestinamente e esteve dois anos (1969-1970 e 1973) como preso político. Fazendo uma retrospectiva de sua vida, o que guarda desse período?

Moniz Bandeira – Guardo muitas lições. Não há melhor forma de conhecer e compreender um fenômeno político do que participando dos acontecimentos. A teoria e a práxis se realimentam mutuamente e se corrigem. Confesso que vivi, como disse Pablo Neruda, e isto enriqueceu muito a minha personalidade. Cultura não se adquire apenas com a leitura de livros, nos gabinetes, mas, em larga medida, com a experiência, participando das lutas do seu tempo. Cultura permanece, apesar de que, com a idade, a memória possa esmaecer.

O Brasil é o único país da América Latina em que nenhum torturador foi preso. O que o país deve fazer com os crimes da ditadura?

Não faz sentido pretender a revisão da lei de anistia, reabrir feridas cicatrizadas, depois de quase 30 anos. E não se pode comparar o regime militar no Brasil com o que foi implantado na Argentina e no Chile, onde houve milhares mortos e desaparecidos. No Brasil houve torturas, abuso dos direitos humanos, mas em escala muito menor que nesses outros países. Claro que não podem ser justificados, mas uma lei de anistia não pode ser parcial. Se houve anistia para os que se rebelaram, empunharam armas contra a ditadura, sequestraram diplomatas e outros crimes políticos, a lei não podia excluir do benefício os que empreenderam a repressão. É preciso não confundir a facção militar que implantou a ditadura com as Forças Armadas brasileiras, que são um instrumento do Estado-nação, sua coluna vertebral, necessário à defesa de sua soberania.

O regime militar brasileiro tentou exportar a ditadura? Estava – organizadamente – ligado às outras ditaduras?

A tendência das Forças Armadas para intervir, como instituição, no processo político da América Latina, a partir de 1960, não decorreu apenas de fatores endógenos, inerentes aos países da América Latina. Constituiu muito mais um fenômeno de política internacional continental do que de política nacional argentina, equatoriana, brasileira etc., uma vez que fora determinada, em larga medida, pela mutação que os Estados Unidos estavam promovendo na estratégia de segurança do hemisfério, redefinindo  as ameaças, com prioridade para o inimigo interno, e difundindo, através, particularmente, da Junta Interamericana de Defesa, as doutrinas de contrainsurreição e da ação cívica. O golpe de Estado no Brasil, em 1964, foi encorajado pelos Estados Unidos, da mesma forma que em outros países da América Latina, explorando, é claro, as contradições sociais e políticas internas. O governo militar no Brasil deu apoio, com base na mesma doutrina, às outras ditaduras implantadas em países da sua vizinhança, como Bolívia, Chile e Uruguai. Esse assunto eu estudo em meu último livro Fórmula para o caos – A derrubada de Salvador Allende (1970- 1973), lançado agora pela Civilização Brasileira e, no Chile, pela Random House Mondadori.

O senhor foi amigo de João Goulart. O que fizeram com ele e nunca foi revelado?

Há centenas de documentos que a CIA ainda não desclassificou. A questão da morte de João Goulart deve ser esclarecida, ante a denúncia de que foi assassinado. É uma denúncia sólida e consistente com o que foi agora revelado pelo agente da polícia preso no Uruguai. João Vicente, o filho de Goulart, está empenhado em esclarecer essa questão, e sabe que conta com todo o meu apoio, como seu amigo.

Qual é o dever de memória de uma nação?

Hegel, nas aulas sobre a filosofia da história, disse: “Recomenda-se aos governantes e estadistas o ensinamento através da experiência da história. Mas o que a experiência e a história ensinam é que os povos e governos nunca aprenderam qualquer coisa da história nem se comportam de acordo com suas lições”. Esse é o problema, a memória do Brasil é demasiadamente fraca.

O senhor sempre manteve profunda atividade intelectual e tem uma obra importante. Por que vive na Alemanha e qual é o seu método de trabalho?

Vivo na Alemanha porque estou vinculado a este país por muitos motivos, inclusive matrimonial. Minha esposa é alemã. Além do mais, minha formação intelectual foi profundamente marcada pela cultura anglo-germânica, pela literatura inglesa e pela filosofia alemã. Desde meus 15 anos de idade, comecei a ler Byron, Shakespeare, Goethe, Schiller, Hegel, Nietsche, Kant, Marx e muitos outros escritores ingleses e alemães. A Alemanha, aliás, foi o primeiro país que visitei na Europa, ao 24 anos, e sua história e política sempre me fascinaram. Quanto à equipe de pesquisadores, no momento, não conto com nenhuma. Contei, sim, quando escrevi O feudo – A casa da torre de Garcia d’Ávila (da conquista dos sertões à independência do Brasil), porque tive recursos. Mas a pesquisa é um trabalho acumulativo. Cada vez que pesquisei para um livro, nos diversos arquivos, encontrei material que me interessava e guardei para usá-lo quando necessário. Sobre o Chile, desde 1973, quando ocorreu a queda de Allende, venho guardando informações, recortes de jornal, os relatórios das investigações feitas pelo Senado dos Estados Unidos, entre 1974 e 1975, documentos da CIA desclassificados por pressão do professor Peter Kornbluh, livros, etc. Felizmente, pude agora recorrer à documentação que o Itamaraty desclassificou, atendendo à minha solicitação, com base legal, pois o prazo de 30 anos já havia passado.

Como o senhor conheceu Salvador Allende?

Conheci, ligeiramente, durante uma visita que ele fez a João Goulart, em Montevidéu, em 1964, alguns meses depois do golpe militar no Brasil. Allende era candidato à presidência do Chile e dizia que lá era difícil um golpe de Estado porque o exército era legalista.

Qual a influência dos “Chicago boys”, seguidores das teses de Milton Friedman, para a recuperação da economia chilena?

O que os “Chicago boys” fizeram foi destruir a indústria que havia no Chile. O Chile continua a depender das exportações de cobre, cuja receita em larga medida se destina aos gastos com as Forças Armadas. É um modelo perverso, apesar de que tenha promovido certa modernização no país.

A única experiência do século 20 de tentativa de realização para um socialismo democrático foi a proposta por Salvador Allende. Ele foi eleito pelo voto, não tirou o peso do congresso, não fez uma revolução. Caso tivesse conseguido exercer seu pensamento político, o mundo, hoje, seria diferente?

O projeto de implantar o socialismo no Chile, ainda que por via pacífica, “com vinhos e empadas”, era, sob todos os aspectos, inviável. Ele tentou mudar o modo de produção capitalista, o que era inteiramente impossível em um país isolado, economicamente atrasado e dependente do mercado externo, não apenas para a colocação do cobre, principal suporte de sua economia, como até para a importação de alimentos. Esse foi o calcanhar de Aquiles: tentar realizar um projeto inviável tanto por fatores internos como externos.

Em que sentido os episódios de maio de 68 influenciaram a experiência chilena?

O que inspirou basicamente a experiência que Allende tentou realizar, por via pacífica, foi a revolução cubana. E é claro que os episódios de maio de 1968 haviam criado um clima.

Fórmula para o caos mostra que o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a junta militar chilena, enviou para lá militares e abriu o caixa do Banco do Brasil, com uma linha de crédito de US$ 200 milhões. O senhor pode falar sobre isso?

Durante a Guerra Fria, envolvendo a América do Sul, era inevitável que, de acordo com as doutrinas disseminadas pelo Pentágono através da Junta Interamericana de Defesa, as Forças Armadas brasileiras, através de seus serviços de inteligência, interviessem em outros países, como Uruguai, Bolívia e Chile, para reprimir o que concebiam como ameaça comunista. Ocorreu um entrelaçamento entre a política internacional e a política nacional em todos os países da América Latina e de outras regiões.

Nas décadas seguintes ao golpe no Chile, jornais destacaram o general Augusto Pinochet como bom gestor econômico e enalteciam o regime militar para a economia chilena. Recentemente, o prefeito do Rio de Janeiro César Maia, que esteve exilado no Chile, escreveu uma matéria sobre os episódios. Fórmula para o caos é revelador. O senhor acredita que agora, finalmente, a história está contada?

Não levo a sério nada que César Maia escreve. O que sei é que a mãe dele, a Sra. Dalila Ribeiro de Almeida Maia, procurou o embaixador Câmara Canto e disse que César Maia estava arrependido, “inteiramente desencantado com a política e o esquerdismo”, desejava voltar ao Brasil e estava disposto a assinar “qualquer tipo de compromisso”, que o governo militar quisesse, no sentido de seu “arrependimento”, sua “firme intenção de abandonar” quaisquer atividades políticas que o governo militar quisesse. Há um telegrama do embaixador Câmara Canto informando essa gestão ao Itamaraty. Trata-se do telegrama n° 1136, secreto, com distribuição para a Divisão de Segurança e Informações (DSI), datado de 1 de dezembro de 1973.

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