Fábio Barreto: Minha ideologia é a exposição

Fábio Barreto: Minha ideologia é a exposição
O cineasta Fábio Barreto, diretor de 'Lula, filho do Brasil' e 'O quatrilho' (Foto: Divulgação)

 

Por mais que o cineasta carioca Fábio Barreto se esquive com reticências e detalhes de sua epopeica produção, o filme Lula, o Filho do Brasil – cuja estreia ocorrerá no primeiro dia do ano da sucessão presidencial – possui uma clara destinação política e representará uma importante ferramenta na campanha eleitoral. Na pré-estreia, ocorrida no Festival de Cinema de Brasília em novembro, o ministro Paulo Bernardo (Planejamento) escarneceu a oposição que, antecipadamente, criticava a instrumentalização eleitoreira do filme. Depois de tergiversar sobre os desdobramentos de uma narrativa cinematográfica quase idílica sobre Lula, Bernardo conclamou a oposição a também fazer um filme que contasse a vida de qualquer um de seus líderes. “Se procurar, acham alguma história interessante”, ironizou o ministro na agitada sessão de abertura do festival; na plateia, figuras do alto escalão do governo, incluindo a primeira-dama Marisa Letícia.

Fábio desconversa quando o assunto envolve campanha eleitoral. O diretor de O Quatrilho (filme brasileiro indicado ao Oscar em 1996) limita-se a falar do Lula retirante ao Lula sindicalista – recorte biográfico da atual superprodução –, como se não houvesse dividendos políticos a ser recolhidos com a construção mítica do atual presidente da República. “É lógico que fazer a ligação com o que acontece hoje, cada um pode fazer como quiser”, argumenta sumariamente, mostrando-se irredutível em prolongar o tema na entrevista concedida à CULT.

A produção contou com recursos de 12 milhões de reais, provenientes do patrocínio direto (sem leis de incentivo) de conglomerados empresarias, como as construtoras  Odebrecht, OAS e Camargo Corrêa, que possuem projetos diretamente ligados a programas do governo federal. Do orçamento total, 4 milhões de reais estão reservados apenas à distribuição. Estruturada de maneira audaciosa, ela conta com 400 cópias, além da projeção, a longo prazo, em telas itinerantes pelo país e de sessões a preços populares em algumas entidades sindicais.

Estrutura clássica

A ideia inicial de um documentário foi abandonada quando se descobriu, nas palavras do diretor, o “manancial dramático” da biografia do atual presidente. Conscientemente, o filme apoia-se na estrutura clássica e linear
do melodrama, materializando a idealização retrospectiva e enaltecedora do “Lula paz e amor”. O próprio diretor, aliás, apressa-se em definir o filme como “melodrama épico”, como “espetáculo” – dado elementar que parece ter escapado às críticas realizadas sobre o filme até o momento, que focalizam os exageros da construção positiva da imagem de Lula, excessivamente “esquemática” e permeada de clichês.

Evidentemente, o filme conta com forte apelo emocional e explora de maneira novelesca e pedagógica (por vezes irritante) alguns dos momentos mais significativos da vida do presidente. Sem dúvida, o protagonista do filme, retratado como exemplo irretocável de virtude, encobre os defeitos “eventuais” do personagem real. Seria o caso então de uma espécie de Photoshop moral aplicado no retrato cinematográfico? Talvez. É preciso reconhecer, no entanto, que Fábio Barreto seguiu à risca a cartilha do melodrama.

Como se sabe, o melodrama é um gênero simplista, mas não necessariamente falso. Pela definição clássica, o melodrama possui pelo menos dois temas principais que aparecem na maior parte das vezes entrelaçados: a superação da injustiça e a cristalização amorosa. No filme, ambos os temas (nesse caso, injustiça social e ternura materna), que sublimam a reflexão em favor de uma conotação emocional mais exagerada, são manipulados com ritmo preciso e encadeados com apuro técnico e visual. Em O Olhar e a Cena, o crítico e professor de cinema Ismail Xavier lembra que “essa combinação de sentimentalismo e prazer visual tem garantido ao melodrama dois séculos de hegemonia na esfera dos espetáculos”. Portanto, quer se goste ou não do melodrama, de suas limitações formais e de sua visada espontaneamente mercantil, do ponto de vista narrativo, pelo menos, Fábio manteve-se fiel às regras do gênero. Não por acaso, o produtor do filme, Luiz Carlos Barreto, pai de Fábio e chefe do clã dos Barreto (que inclui a produtora Paula e o também diretor Bruno), declarou sem embaraços que fez um filme popular, de espetáculo, “para ganhar dinheiro” – escolha comercial, aliás, que se conforma às ambições internacionais da produção, pronta para embarcar na popularidade “é o cara” de Lula no mundo.

Ator político

O problema começa obviamente quando o protagonista da ficção melodramática é também o principal ator da cena política brasileira. Ainda que a narrativa termine com a saída de Lula do Dops em 1980, vários elementos concorrem para o fortalecimento político de sua imagem atual. Como foi dito, o ex-metalúrgico é apresentado sob as feições quase divinizantes do homem virtuoso, cuja fatura política, em se tratando do jogo partidário do ano que vem, é autoexplicativa. Na cena de sua entrada no sindicato, por exemplo, Lula é introduzido como “sangue novo”, alguém que veio para “fazer diferente”, para “mudar”. A biografia autorizada da jornalista Denise Paraná, que serviu de base para o roteiro, do qual participou, já enfatizava a transição do que chama de “cultura da pobreza” para a “cultura da transformação”, o que sugere igualmente a encarnação de uma grande mudança estrutural na própria figura do presidente.

Outro elemento central para essa tonificação política é o alinhamento da biografia de Lula às tragédias sociais e aos acontecimentos marcantes de sua época: nasce em 1945, ano do fim do Estado Novo; perde o dedo no ano do golpe militar de 1964; filia-se ao sindicato no ano do decreto AI-5; organiza as greves do ABC no momento certo do processo de abertura política. O personagem atravessa o repertório das tragédias sociais brasileiras: fome, miséria, migração forçada, violência familiar, precariedade do sistema de saúde pública, problemas de infraestrutura urbana (casa inundada por enchente), violência urbana, abuso de autoridade policial, desemprego. O efeito é cristalino.

Pesquisa do Vox Populi realizada em novembro aponta ascensão de Dilma Rousseff (provável candidata petista na eleição de 2010) e queda de José Serra (provável candidato tucano) na corrida presidencial. Embora Fábio Barreto insista dizendo “que o filme está acima disso e não vai se prestar a nenhum tipo de arma política”, a produção turbinará a campanha em sua dimensão ideológica. Não é necessário fazer o recenseamento teórico das estreitas afinidades entre estética e política, nem do potencial de distorção da realidade que uma imagem cinematográfica bem consolidada pode ocasionar. Basta dizer que associar a imagem do presidente à da candidata contribuirá para a pauta de uma sucessão que será colocada em termos de continuidade (ao projeto político de Lula) ou de ruptura (indiretamente tributária, na verdade,  à era FHC). Lula, o Filho do Brasil comprova o quanto a discreta clivagem entre cena cinematográfica e cena política pode ser rentável.

CULT – A ideia inicial era fazer um documentário com base na biografia de Denise Paraná. Como aconteceu essa passagem da ideia de um documentário para a realização de uma superprodução?

Fábio Barreto – A ideia inicial era fazer um “docudrama”. Mas  percebemos que ali estava uma grande história, com um manancial dramático muito rico, baseado, sobretudo, em uma história de mãe e filho. Relação entre mãe e filho já deu muito pano para manga em filmes. Esse seria mais um. Em segundo lugar, tinha essa família representando milhões de outras famílias que passaram pela mesma situação, aquela de um dos maiores movimentos migratórios internos da história da humanidade, que foi a migração nordestina para o sul do Brasil. E também a história de um brasileiro, como milhões de outros, sem oportunidade, sempre fadados a não conseguir nada na vida, que superou seu próprio destino com grande determinação e confiança, uma pessoa que acreditava em si mesma e conseguiu realizar seu sonho. É um exemplo, um vencedor. Então, essas três coisas nos motivaram a fazer um filme de ficção.

CULT – O livro de Denise Paraná fala da mudança da cultura da pobreza para a cultura da transformação em Lula. O filme, porém, define a relação materna como núcleo narrativo. Como foi negociar isso com os roteiristas, a começar pela própria Denise?

Barreto – Toda a parte do livro da Denise que não são os depoimentos, que são considerações da própria autora a respeito da família Silva, já fala muito da relação dele com a mãe e do sofrimento dessa família. As questões da fome, miséria, pau de arara, migração, acidente de trabalho, erro hospitalar, prisão política etc. Quer dizer, é uma família que passou por todas as mais difíceis provações da história do Brasil nos últimos 50 anos. A Denise concordou de pronto. Pediu a mim e ao Daniel Tendler [corroteirista do filme] que fôssemos pinçando do livro os fatos mais importantes que resultariam numa narrativa dramática. Então, fizemos um primeiro roteiro e daí fomos dilapidando, compilando, secando, até chegar um momento em que precisamos chamar o Fernando Bonassi para arrematar.

CULT – Por que chamar o Fernando Bonassi?

Barreto – O Fernando nasceu e foi criado no ABC paulista, assim como o Bráulio Mantovani, talvez nossos melhores roteiristas hoje. São oriundos do coração industrial da América Latina. Além disso, o Fernando foi um dos primeiros integrantes do PT, participou de campanhas do Lula, conhecia a fundo tudo isso, inclusive o movimento sindical propriamente dito. Então, foi a pessoa certa para dar a arrematada nos detalhes, em termos de verossimilhança, situações, diálogo, linguagem. A colaboração dele foi muito importante. Resultou numa realização dramática de ritmo apurado, que atende à pretensão de um longa-metragem que busca o mainstream e o grande público.

CULT – Você disse que evitou a construção mítica do Lula, mas ele é apresentado como virtuoso. Existe apenas uma passagem em que Lula diz ter herdado a bondade da mãe e a maldade do pai.  O espectador não sabe exatamente que maldade é essa. Assim como a biografia de Denise Paraná foi “autorizada”, você se preocupou em criar algo “autorizado” ?

Barreto – Não. Nem a família nem o Lula interferiram. Pelo contrário, fizeram questão de se manter a distância para nos deixar com a maior liberdade possível. Li passagens para o Frei Chico [irmão de Lula] e para o Lula para tirar algumas dúvidas, mais no sentido de saber e averiguar alguns relatos. Tive apenas um encontro com Lula, três dias antes de filmar. Fiz algumas perguntas, li algumas cenas para tirar dúvidas. Inclusive ele pediu um DVD para ver o filme depois de pronto, mas a gente não fez DVD. O Ministério da Justiça nos recomendou não fazer cópias. Então, até o momento [novembro], Lula não viu ainda. Eu prefiro que ele assista ao filme em tela grande. É um filme de espetáculo, exige uma sala grande.

CULT – Sobre a distribuição nacional do filme, qual a estratégia adotada em um país em que 90% das cidades não têm cinema?

Barreto – A gente tem 400 cópias do filme. Em primeiro lugar, existe um público específico, filiado aos sindicatos. Então, fizemos acordos com as centrais sindicais no sentido de facilitar o acesso ao filme, com preços razoáveis para esse público. Existe um esquema montado também com telas itinerantes para rodar o Brasil, mas isso é mais a longo prazo, e vai colocar uma parcela muito grande da população em contato com o filme. No futuro próximo, poderá ser explorado também quando o Vale-Cultura estiver em vigor. Esse filme quer contribuir para o desenvolvimento de uma indústria de cinema no Brasil. Ele está sendo direcionado a um público que não costuma ir a salas de cinema.

CULT – E quanto à distribuição internacional?

Barreto – O filme tem claramente uma ambição internacional, dada a qualidade técnica e a popularidade de Lula no mundo. Nós nem lançamos ainda e já dei entrevistas para jornais, revistas e televisões do mundo inteiro: LA Times, NYTimes, Le Figaro, El País, Clarín, para as TVs canadense, francesa, alemã etc. A demanda e a expectativa pelo filme são muito grandes. Montamos um esquema de distribuição que pretende servir de modelo para a América Latina. Já temos certa experiência, por exemplo, com o Dona Flor e Seus Dois Maridos, e queremos dar continuidade a isso. Dona Flor, por exemplo, foi o filme estrangeiro mais visto na história da Argentina, mais do que qualquer blockbuster norte-americano. Pelo que representa o Lula hoje no mundo, esse filme vai despertar muita curiosidade.

CULT – Qual sua opinião sobre a atuação política de Lula?

Barreto – Posso dizer, muito sinteticamente, que Lula representa uma revolução no curso da sociedade brasileira, porque está mexendo profundamente numa coisa grave que sempre existiu no Brasil chamada complexo de inferioridade. Nossa elite – e essa é a diferença de Lula – sempre teve uma enorme relação de culpa com a população pobre e miserável, na medida em que sempre esteve no poder. Então, o governante sempre precisava dizer que estava fazendo de tudo para melhorar a vida da população etc. O Lula não tem esse sentimento de culpa porque veio de lá, sofreu na carne o que a população sofreu. E você também não pode negar que nenhum outro presidente projetou tanto o Brasil lá fora quanto ele. Existe uma coisa acontecendo, sim. Isso não é responsabilidade só dele, mas do próprio povo, como ele diz. Esse complexo de inferioridade está sendo vencido, essa mania de falar que é um povinho, uma gentinha, aquilo que os Diogos Mainardis da vida gostam de dizer. Essas pessoas acham que o Brasil não dá em nada, não percebem que o Brasil representa uma sociedade única e nova no mundo, um amálgama em que se misturam raça, religião, classe social, e que produz algo novo no mundo. Então, ele é responsável também por proporcionar essa coisa inédita, a ponto de irritar mesmo a elite, de deixá-la sem ação, de mostrar como a elite esclarecida é intelectualmente colonizada. Caetano Veloso, quando chama Lula de analfabeto, está se revelando uma pessoa profundamente colonizada, elitizada. Ao mesmo tempo, você tem um Obama que diz que Lula é “o cara”.

CULT – Você disse que o filme não tem conotação político-partidária…

Barreto – Nenhuma.

CULT – Mas existe uma visão altamente positiva de Lula, uma construção clássica do herói. Como você se defende das críticas de que o filme seria não apenas chapa-branca, mas auxiliaria a campanha presidencial do ano que vem?

Barreto – O que o Lula representou naquela época a que o filme se refere [do nascimento em 1945 à saída do Dops em 1980] é uma grande realidade. Lula foi um homem que botou um exército de 300 mil operários contra o exército brasileiro. O exército estava lá defendendo a Volkswagen, a GM, a Mercedes, as grandes montadoras, contra o trabalhador brasileiro. Agora, o Lula no poder é outra coisa. Qualquer um que senta naquela cadeira… aquela cadeira muda as pessoas. Ali, é preciso negociar com forças diferentes. Para conseguir o que se quer, precisa ceder muita coisa. Mas o filme retrata o que ele foi naquela época. E ele foi o que houve de mais original, a principal força que precipitou o fim do regime militar. É lógico que fazer a ligação com o que acontece hoje, cada um pode fazer como quiser. Se hoje as pessoas não gostam do Lula pelo tipo de acordo que ele faz, por apoiar o Sarney na presidência do Senado, isso é outra coisa. São contingências que ele enfrenta para governar. Não que uma coisa justifique a outra. Mas o meu filme não se refere a isso, não fala do Lula presidente da República. Fala do Lula retirante até a presidência do sindicato dos metalúrgicos.

CULT – Mas o filme vai criar um clima. A oposição disse que eleição é emoção. Então, é justo dizer que o filme vai ser um instrumento político importante para a candidatura de Dilma, cuja imagem está atrelada à figura de Lula. De que maneira você pretende reagir para evitar o excesso de oportunismo gerado pelo filme?

Barreto – Acho que o filme está acima disso e não vai se prestar a nenhum tipo de arma política. Estamos negando delicadamente algumas solicitações do PT, pedidos que possam ter conotação política, que possam servir de instrumento político eleitoral. Há um trabalho nesse sentido para preservar o filme.

CULT – Como você analisa as relações entre política e cultura?

Barreto Não tenho nenhuma ideologia. Minha ideologia é a exposição. O que procuro nos meus filmes é tentar expor todos os elementos ambíguos possíveis, para que o espectador se sinta livre para julgar à sua maneira. Fazer esse filme foi muito difícil para mim, porque a história desse homem, até onde eu conto, que é o enterro da mãe dele, é muito difícil de contar. Como ele sofreu muito, passou por provações, é difícil ter pontos negativos, ter tocado em coisa negativa. Foi difícil porque adoro colocar prós e contras, considero isso uma obrigação, para deixar as pessoas julgarem como quiserem. O que pretendo com esse filme, como todos os outros que fiz até agora, é participar e contribuir para avançar neste sonho de estabelecer uma indústria de cinema. Este é o sentido da minha vida: colaborar para a existência de uma indústria brasileira de cinema.

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