‘Não há rendição possível’, diz escritor ucraniano Andrey Kurkov

‘Não há rendição possível’, diz escritor ucraniano Andrey Kurkov

 

 

Um dos mais influentes escritores ucranianos contemporâneos, Andrey Kurkov afirma que qualquer acordo de rendição com a Rússia, na guerra que já dura mais de dois meses, significaria o fim da Ucrânia como país independente.

Nesta entrevista à Cult, ele fala sobre guerra, propaganda, literatura e história russa e ucraniana. Para Kurkov, a guerra no leste europeu é uma tentativa de reconstruir o passado. “Putin está envelhecendo e teme que não possa alcançar seu sonho, que é a recriação da União Soviética ou do Grande Império Russo”, diz.

Escritor prolífico, Kurkov é autor de 24 romances, além de ter assinado algumas dezenas de livros infantis e roteiros de filmes e documentários. Seus livros já foram traduzidos para 39 línguas, em mais de 60 países – na Rússia, Kurkov está banido desde 2014, quando estourou a guerra separatista na região do Donbas.

Ele permanece na Ucrânia ao lado da mulher e dos filhos e acredita que seu nome integra uma lista de ucranianos procurados pelo governo russo.

“Estão alvejando a cultura ucraniana, porque cultura significa identidade, e a principal ideia de Putin é que a identidade ucraniana não existe”, afirma.

 

Por que o senhor decidiu permanecer na Ucrânia?

Escritores devem permanecer nos países sobre os quais escrevem e que melhor conhecem. Eles são parte da cultura, da literatura nacional. Se migram, passam a fazer parte da cultura morta ou da cultura do passado. Não me vejo um escritor emigrado. Essa conexão é muito importante para mim.

Não cogitou sair mesmo no contexto da guerra?

O perigo é uma coisa relativa. Quando estava em Kiev, corria um risco maior. Depois nos mudamos para nossa cidade, o que nos deixou ainda em maior perigo porque ficamos no caminho de tanques russos vindos de Belarus a Kiev.

Agora estamos no oeste da Ucrânia, onde há sirenes de ataques aéreos, mas não temos explosões. Tudo pode mudar a qualquer momento, mas até agora está mais ou menos seguro.

Mas Lviv [no oeste da Ucrânia] também foi atacada.

Houve 35 mortos e 130 feridos, mas a área em que estamos não foi atingida ainda.

O senhor já disse acreditar que seu nome integra uma lista de procurados do governo russo.

Eu acredito que todo intelectual ucraniano ativo está nesta lista. Há três anos, os russos tentaram, com apoio bielorrusso, sequestrar o poeta ucraniano Serhiy Zhadan em Minsk [capital de Belarus]. Ele foi salvo por diplomatas ucranianos.

O exército e o serviço secreto russos estão alvejando a cultura ucraniana porque cultura significa identidade e a principal ideia de Putin é que a identidade ucraniana não existe, que ucranianos são russos que foram levados a acreditar que seriam diferentes. É o que ele pensa. Mas a cultura faz os povos diferentes, faz nações diferentes.

Logo no começo da guerra, Putin afirmou que a Ucrânia seria uma invenção e um erro de Lênin após a Revolução de 1917. Quais as intenções de Putin ao negar a existência da Ucrânia como nação?

Lênin não teve nada a ver com a Ucrânia. A Ucrânia já existia antes do século 16. Na verdade, Putin costumava dizer que a Ucrânia tinha sido inventada pelos austro-húngaros no final da Primeira Guerra Mundial. Ele já mudou o discurso algumas vezes. Há 10 anos ele dizia que Rússia e Ucrânia eram nações irmãs. Depois disse que Ucrânia e Rússia eram uma só nação. Agora diz que a Ucrânia não existe. Putin está envelhecendo e teme que não possa alcançar seu sonho, que é a recriação da União Soviética ou do Grande Império Russo.

Em toda sua vida como presidente, em 22 anos, ele repetiu seguidas vezes que seu maior drama pessoal era o colapso da União Soviética. Ele quer deixar um legado, quer ser lembrado nos livros de história como aquele que restaurou o Império Russo ou a União Soviética para a sua antiga glória. Para isso, ele precisará integrar, anexar, ocupar Ucrânia, Belarus, Moldova, talvez os países bálticos, talvez o Cazaquistão.

Ucrânia e Rússia podem coexistir?

Podem coexistir, mas não em um único Estado. A história soviética e a história do czarismo foram a história da supressão da cultura e da nação ucraniana.

Russos são coletivistas e monarquistas. Eles querem ter um czar e ser leais a ele. Ucranianos são anarquistas, não respeitam poder ou regras, e não querem ter um czar. A Ucrânia nunca teve uma família real. Houve democracia e eleições para líderes e oficiais militares desde o século 16, quando a Ucrânia era um território independente entre Rússia, Turquia e Polônia.

Essa é a razão de Putin afirmar que a Ucrânia é uma invenção e um equívoco de Lênin. Na verdade, Lênin não gostava da Ucrânia nem nunca a visitou, porque ele sabia a diferença entre ucranianos e russos. Ele sabia que não era possível criar um povo soviético na Ucrânia. Ucranianos querem criar o comunismo dentro de suas casas, não na sociedade.

Há um novo sentimento de nacionalidade gerado pela guerra? Como o senhor o definiria?

É uma guerra entre o futuro e o passado. Putin representa o passado, e o passado para a Ucrânia foi muito trágico. Além da fome artificial [o termo é usado para se referir ao Holodomor, a grande fome provocada pela coletivização da terra no início dos anos 1930, que deixou um saldo de milhões de mortes], houve deportações em massa de famílias de agricultores ucranianos nos anos 1920 e 1930, e uma série de problemas para dissidentes.

Depois do colapso da União Soviética, a Ucrânia trabalhou para criar uma sociedade sem censura, sem polícia política, com 400 partidos políticos registrados no Ministério da Justiça. A Rússia trabalhou para destruir todas as tentativas de Boris Iéltsin de criar uma democracia.

Ucranianos não podem aceitar a vida com censura e com controle político. Eles entendem que só serão livres se a Ucrânia permanecer livre. Essa é a principal motivação. Se a Ucrânia é independente, todo ucraniano será naturalmente independente e livre.

A resistência foi uma surpresa para o senhor?

Eu esperava resistência, mas não que fosse tão duradoura. Desde 2014, 400 mil soldados ucranianos foram lutar no Donbas e criaram uma poderosa comunidade de veteranos. Eles inspiram a resistência nos mais jovens.

Se os soldados russos estão morrendo por Putin, nenhum único soldado ucraniano está morrendo por Zelensky. Enquanto Putin foi presidente da Rússia, nós tivemos cinco diferentes presidentes e nenhum permaneceu por dois mandatos. Não importa o nome do presidente. O nome do país é mais importante.

Por que a Ucrânia recusa a rendição, já que a Rússia impõe como condição para um cessar-fogo?

A rendição significaria que você deveria comprar um novo mapa mundial. A Ucrânia desapareceria e se tornaria a parte oeste da Federação Russa. É uma questão de existência do país. Não há rendição possível.

Uma tese recorrente afirma que a guerra seria uma resposta de Putin a uma suposta ameaça provocada pela expansão da Otan em direção à Rússia, possivelmente com a adesão da Ucrânia. O senhor acredita que essa interpretação é plausível?

Ninguém na Otan aceitaria a Ucrânia como membro. Isso foi anunciado oficialmente em 2008 em uma cúpula na Romênia. É apenas um pretexto. O motivo principal é o desejo de Putin de recriar a URSS antes de sua morte para ser lembrado nos manuais de história como o líder que tornou a Rússia grande novamente.

O senhor já manifestou preocupação com o fato de circularem discursos nas redes (na América Latina) com o argumento de “desnazificação” da Ucrânia, que Putin usou para justificar o primeiro ataque em fevereiro.

A propaganda russa é muito ativa na América Latina, onde a Rússia está vencendo a propaganda de guerra em parte por causa do sentimento anti-americano. Na América Latina, se sabe muito pouco sobre a Ucrânia. A mesma situação acontece na Índia, onde há muito interesse pela Rússia e pela União Soviética, e pouco se conhece a Ucrânia.

Nos tempos soviéticos, os ucranianos que falavam russo eram considerados “normais” e aqueles que falavam ucraniano eram “camponeses sem instrução” ou, se fossem moradores da cidade ou intelectuais, eram “nacionalistas”.

Hoje, para Putin, os ucranianos que falam sua língua materna são considerados nacionalistas ou nazistas. O que mostra, na verdade, que os russos são chauvinistas exigindo de todos que falem e defendam a língua do império – o russo.

Não há um único partido político nacionalista representado no parlamento ucraniano, sem falar em esquerda ou direita radical. O grupo do Pravyy Sektor [partido político de extrema-direita], por exemplo, foi formado no sudeste da Ucrânia principalmente por falantes de russo. Eram ao mesmo tempo anti-russos e anti-ocidentais. Esse grupo já não desempenha nenhum papel há alguns anos. Existe mais online do que na realidade.

O senhor escreve em russo. A sua relação – e a dos demais ucranianos – com a língua foi alterada pela guerra?

A língua russa foi transformada em arma por Putin e agora é difícil percebê-la como uma língua de cultura para mim. Continuo escrevendo em russo, mas às vezes sinto vergonha da minha língua materna.

Muitos escritores de língua russa pararam de escrever em russo na Ucrânia e agora escrevem em ucraniano. Escrevi alguns livros de não-ficção em ucraniano, mas com ficção permaneço com a língua russa. Posso decidir não publicar meus livros em russo na Ucrânia pelo menos até que a guerra termine ou ainda por mais tempo.

De acordo com a Unesco, mais de 80 patrimônios culturais, como teatros e museus, foram destruídos desde o começo da guerra. O que esses ataques significam?

Alguns são alvos acidentais porque eles não se importam onde atiram. Existem centenas de escolas destruídas. Eles destroem porque são escolas? Não, mas por que estão servindo como abrigo.

Um teatro em Mariupol foi destruído propositalmente por uma única potente bomba porque pensaram que soldados ucranianos estavam escondidos lá. Na verdade, havia população civil abrigada. A destruição de museus só mostra que eles não se importam com a cultura ucraniana.

Ao mesmo tempo, estão destruindo arquivos propositalmente. Em Chernihiv, destruíram antigos arquivos da KGB.

Por qual razão?

Na Rússia, fecharam-se museus dos gulags [campos de trabalhos forçados da antiga URSS]. Querem restituir Stálin como um grande homem. De fato, Stálin apoiava-se sobre a KGB, um instrumento de assassinato e aprisionamento de milhões de ucranianos e russos.

Ao destruírem os arquivos, eles destroem os nomes das pessoas que serviram na KGB e foram responsáveis pelos dramas e tragédias dos que foram acusados de coisas que não fizeram e foram mortos ou mandados aos gulags.

A sua geração foi marcada pelo declínio e queda da URSS. Como o senhor pensa que essa geração de ucranianos – escritores entre eles – será forjada pela guerra?

Tanto a sociedade quanto os escritores estão se tornando mais militantes. Até 2005, escritores ucranianos não escreviam sobre política ou temas sociais porque acreditavam que isso seria escrever em um estilo soviético.

Desde a Revolução Laranja [em 2004, protestos em massa na Ucrânia levaram à anulação da reeleição de Viktor Yanukovich, apoiado por Putin, após suspeitas de fraudes], apareceram os primeiros romances sobre questões sociais. Com a anexação da Crimeia e o começo da guerra no Donbas em 2014, vieram os primeiros romances sobre a guerra. Agora já são cerca de 300.

Um deles é o seu Grey Bees [Abelhas Cinzas, em tradução livre], lançado agora nos Estados Unidos e descrito como romance que soa às vezes como fábula, com traços do seu humor habitual. Que aspectos da vida cotidiana, no decorrer de uma guerra, o senhor procura descrever em seus romances?

Eu considero as histórias humanas mais importantes que as histórias políticas. Eu queria dar voz aos civis esquecidos em meio à guerra no Donbas. Agora o livro é lido de forma diferente, mas ainda conta uma história humana. Não há muito humor neste livro, pois não há muito humor agora na vida dos ucranianos. Mas há muita empatia e compaixão. Esses também são temas do romance.

Desde o início da guerra, há um interesse crescente no mundo pela história ucraniana. Que livros e autores o senhor indicaria para quem quer conhecer mais o país?

Há três grandes livros de não-ficção sobre a história da Ucrânia: Terras de Sangue, de Timothy Snyder, um professor americano; A Fome Vermelha, da escritora americana Anne Applebaum; e The Gates of Europe [sem tradução em português], do escritor canadense Serhii Plokhy. Qualquer desses livros daria a você muita informação.

No momento da invasão, o senhor trabalhava em um novo romance policial situado na Kiev do começo do século 20. Continua a escrevê-lo?

Parei de escrever o romance no primeiro dia da guerra. Não pude continuar. Acho que não escrevi nada nos primeiros três ou quatro dias, e depois comecei a escrever apenas textos e artigos sobre a guerra: ensaios e diários que descreviam o que estava acontecendo na Ucrânia. Estou fazendo isso até agora.

Publiquei em diferentes países cerca de 60 artigos sobre a guerra, sobre as relações entre Rússia e Ucrânia, sobre a história ucraniana e russa. Estou tentando dar sentido para o que está acontecendo.

 

 

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