Entrevista – Éric Marty
Éric Marty, editor das obras de Roland Barthes, lança relato autobiográfico em que resume o projeto crítico barthesiano
Eduardo Socha
A conversa era descontínua, com interrupções e momentos prolongados de angústia. Quando Éric Marty encontrou Barthes pela primeira vez, não imaginava que os silêncios enigmáticos e a aparente indiferença do autor de Mitologias e Fragmentos de um discurso amoroso dariam início a uma forte amizade que se estenderia até sua morte. Mais de trinta anos depois, Marty – que, além de ter sido editor das obras completas de Barthes na França, hoje é crítico e professor de literatura na Universidade de Paris 7 – escreveu um livro dividido em três partes: um testemunho biográfico da amizade, uma síntese da obra completa e uma interpretação dos Fragmentos. Lançado agora no Brasil, o livro procura oferecer um breve panorama biográfico e resumir a obra de Barthes por meio três planos diferentes de composição, cujo propósito, como esclarece o autor, é o de “evitar o peso da monumentalização [de Barthes], que é o lugar onde o fracasso da transmissão se torna mais caricaturalmente patente”. Nesta entrevista à CULT, Marty fala um pouco sobre a vida e o processo criativo do autor “para quem cada ato da vida parecia ser ‘escrito’ e não simplesmente vivido”.
CULT – No prefácio do livro, você afirma que “não existe uma doutrina barthesiana, existem apenas livros: ou seja, ações que possuem sua própria configuração, aspecto, matéria”. Mesmo assim, seria possível distinguir algum método singular, algum traço distintivo que unificaria seu pensamento? Dito de outro modo, o que nos permitiria identificar a coerência entre seus objetos de estudo?
Éric Marty – Você tem razão em fazer a pergunta dessa maneira. Na verdade, preciso esclarecer aquilo que eu quis dizer com “não existe doutrina barthesiana, existem apenas livros”, pois evidentemente há uma profunda coerência na obra de Barthes, inclusive em suas escolhas teóricas. O que pretendi dizer é que em Barthes sempre existiu o receio de ver a teoria se converter em doxa, ou seja em “opinião”, que era o que fazia sucesso entre os Modernos. Isso explica porque Barthes, em vez de se contradizer, na verdade, deslocava frequentemente um conceito ou um axioma a um ponto oposto da espiral, para retomar uma imagem dele.
Por exemplo, após ter anunciado “a morte do autor” (1968), declarou o “retorno cordial do autor” no fim do Sade, Fourier, Loyola (1971): a segunda declaração não contradiz a primeira pois não poderia haver “retorno” do autor se não tivesse sido inicialmente expulso. Mas com isso se desfaz aquilo que poderia passar por dogma ou ponto doutrinário qualquer.
O motivo desse perpétuo deslocamento também tem a ver com o modo pelo qual os Modernos concebiam a relação entre teoria e verdade: a verdade é acima de tudo uma relação de forças, uma tomada de posição no presente, ou seja, um desenvolvimento contínuo da teoria a partir do deslocamento daquelas “realidades” impostas pela sociedade, pela opinião.
Mas existe um outro aspecto a respeito de Barthes que explica o fato de contrapormos “doutrina” a “livro”: da parte dele existe uma concepção a um só tempo materialista e sensual da escritura – que é o único meio de superar a “ideologia” – e sua intervenção no mundo das ideias só se concretiza a partir dessa materialização bastante refletida e formalizada do “livro”: obras como Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes por Roland Barthes ou O Império dos Signos e mesmo Mitologias são livros pensados em sua forma, em seu dispositivo, em sua matéria textual. De certa maneira, a “mensagem” de Barthes reside nas escolhas formais bem precisas que fez para cada um de seus livros. Mas Barthes não é um simples esteta, um dandy: existe um pensamento muito forte sustentando o conjunto de sua obra e de suas opções teóricas. Procuro resumir esse conjunto na segunda parte do livro.
CULT – Como você disse, Barthes não procurava a determinação sistemática e conceitual da realidade, mas a permanente determinação do sentido das coisas no mundo: análise do sentido da literatura, do sentido da morte, da fotografia, da moda, do amor. Para você, qual seria o sentido de ler (ou de reler) Barthes hoje?
Marty – O sentido de ler ou de reler Barthes é algo que se faz presente no dia a dia. Ao escrever esse livro, percebi o quanto esse sentido aparece com mais intensidade e com maior necessidade hoje. Também percebo isso durante os cursos na Universidade de Paris, onde há muitos anos venho trabalhando Barthes com meus estudantes. Esse sentido se sobressai quando notamos uma espécie de retração do pensamento atualmente que caracteriza, se não a Europa, pelo menos a França. Tenho a impressão de que desde o final dos anos 1980, vivemos um longo período de marasmo, de estranha sonolência, por parte dos intelectuais e dos escritores.
Quando releio Barthes com meus estudantes (mas também Lacan, Foucault, Sartre e outros), fico surpreso com a audácia, a coragem e a vontade de pensar contra o “mundo”, contra as aparências, contra os sistemas… além disso, é precisamente por causa disso que me interessam de fato muito menos aqueles pontos doutrinários (que hoje em dia foram integrados ao “domínio público” e transformados em opinião geral) do que os conflitos, por vezes insanos, da escritura e do pensamento, as singularidades pessoais de cada um. O sentido de ler e de reler Barthes, portanto, é o de se deixar impregnar por uma ética moderna e corajosa que poderíamos resumir naquela máxima “Você pode pensar”.
CULT – A parte autobiográfica do livro apresenta, de modo fragmentário, sua intimidade com Barthes mas também aspectos notórios da personalidade dele, como a timidez e a forte relação com a mãe. Que eventos marcantes você destacaria durante esse período de convivência com Barthes, que poderiam caracterizar, talvez sintomaticamente, a personalidade dele?
Marty – É difícil escolher aquilo que, em minha descrição e em minha evocação, poderia aparecer como evento marcante. Porque poderia dizer, sem receio de perder a modéstia, que todos os eventos descritos ali foram marcantes. No livro, pretendi fazer um retrato que pudesse ir direto ao essencial. No meu caso, o essencial de uma relação de um jovem discípulo com seu mestre.
Meu contato com Barthes começou cedo, quando eu tinha 20 anos, portanto era uma relação bastante silenciosa, de aprendizagem e fascínio. Eu me sentia – e nunca consegui sentir o mesmo em relação a outros autores – diante da figura autêntica do escritor, ou seja, de uma pessoa para quem cada ato da vida, cada momento ou cada palavra, parecia ser “escrito” e não simplesmente vivido. Tudo que eu percebia dele passava por esse sentimento. Era como se eu estivesse vivendo em um livro e não na vida real: para mim, foi um rito iniciático, um grande aprendizado.
CULT – Você declara que, nesse trabalho de resgate da memória, procurou não minimizar a ingenuidade que você tinha na época, nem mesmo a própria ingenuidade da época. Poderia falar um pouco sobre essa ingenuidade?
Marty – Minha ingenuidade corresponde àquela de alguém que estava muito próximo de Barthes, mas que escrevia muito pouco ou não sabia escrever direito. Mas a pessoa que faz essa rememoração hoje, vinte anos depois, já tem alguma maturidade. De todo modo, procurei conservar essa espécie de angelismo, de inocência, daquele rapaz que eu era. No meu esforço narrativo, coloquei sobre esse angelismo a profundidade do tempo, do conhecimento e do saber, a profundidade da escritura que é sempre uma relação com a morte. Por isso, a morte de Barthes constitui o epílogo do meu texto; se um mestre está destinado a morrer, seu discípulo está destinado a dizer essa morte.
Mas, para responder completamente sua questão, que julgo bastante pertinente, eu acrescentaria que esse meu testemunho tem por função colocar o imperativo da encarnação acima do próprio livro, que afinal também é um livro “teórico”, um livro feito de referências e conceitos filosóficos. Para mim, era necessário impor esse princípio, essa exigência de encarnação, pois o ofício de escrever a que faço alusão no livro é acima de tudo o ofício de viver, para retomar a fórmula do grande escritor Cesare Pavese.
Roland Barthes, o ofício de escrever
Éric Marty
Trad.: Daniela Cerdeira
Editora Difel
384 págs. – R$ 49