Entrevista – Emmanuel Tugny
Emmanuel Tugny, pseudônimo artístico do filósofo e diplomata Ronan Prigent, filho do crítico literário e poeta Christian Prigent, é músico e romancista nascido na França, em 1968. É considerado um dos jovens expoentes da literatura de vanguarda na França. Publicou seu primeiro livro, Les Impatiences, em 1993. Seguiram-se vários romances (Rheu, Les Trente, Mademoiselle de Biche, La Vie Scolaire, Byzance, Corbière le Crevant) e poemas (Des Lunes, Choro), alguns escritos em colaboração, como La Reine Eupraxie, com o sociólogo e escritor Henri-Pierre Jeudy. Tugny também é músico e compositor, e formou o grupo de rock Molypop em 2006, na França. Seu primeiro álbum solo, inteiramente gravado no Brasil, onde reside atualmente, em Porto Alegre, foi lançado na Europa no último dia 18 de setembro. Seu primeiro livro publicado no Brasil, Morrer como Corbière, também foi lançado em setembro, pela Editora Sulina. O público brasileiro já teve contato com Tugny pela revista CULT, em cujas páginas escreveu entre 1999 e 2001, durante período de residência em São Paulo. Nesta entrevista, concedida ao historiador Gunter Axt, Emmanuel Tugny fala de seu processo criativo, de sua obra, de família, da Bretanha, do Brasil, da esquerda francesa e de sua relação com novas ferramentas da internet, como o Facebook e o MySpace.
CULT – Por que construir um pseudônimo, uma personalidade artística? Tradição francesa, esforço para diferenciar o filósofo-diplomata do músico-romancista, ou diálogo familiar?
Emmanuel Tugny – É uma homenagem às duas mulheres que me elevaram, me promoveram. “Emmanuel” é o nome inicialmente escolhido por minha mãe no momento do meu nascimento, e liga minha atividade de escritor à minha fé. “Tugny” é o sobrenome de minha avó. Na minha visão, a escrita é uma determinação original feminina – eu a reporto à maternidade. Meu nome de autor testemunha essa remissão.
CULT – Interessante você relacionar a escrita a uma determinação feminina, ligada à maternidade. Tem a ver com o berço corpóreo, com a fonte da linguagem e da cultura? Como o gênero feminino emerge em sua obra? Você acha que o feminino em sua literatura pode ser visto como uma força de distorção para o prisma masculino, um lugar onde se decide a linguagem e a possibilidade do poético?
Tugny – Sim, com certeza. A feminilidade é para mim o lugar fundante da intervenção sobre o logos, o lugar da “reprise”, no senso conferido por Kierkegaard, o lugar de retorno às fontes profundas dos mundos a fazer. A feminilidade determina minha escritura como sua destinatária, como força sem desequilíbrio dos mundos que me inquietam. Ela é a textura de minha obra, sua “ordem das coisas”. Você tem razão: a feminilidade é, em minha percepção, “senso inventado”, “senso reencontrado”, “poesia”, ainda que para mim a poética seja o conjunto e a mistura dos poemas.
CULT – Filosofia, literatura, música, diplomacia e gestão cultural dialogam entre si na sua trajetória? Como? Ou você as enxerga como disciplinas paralelas?
Tugny – O pianista Glenn Gould dizia que existiam dois tipos de músicos, aqueles que se concentram nos instrumentos e aqueles que se concentram sobre o produto musical. Eu estou entre aqueles para quem o instrumento ou o campo de criação importam pouco face à necessidade de produzir. Eu produzo de sorte a ver em todo espaço de intervenção um lugar a investir, a partir de um objeto gerado. É o investimento de um espaço cuja vacuidade cativa é o que importa, mas não o próprio espaço em si. Por tudo há matéria a fazer e a matéria do fazer me é um tanto indiferente.
CULT – Na França, cultura e diplomacia andam próximas, conceito e prática quase desconhecidos pela diplomacia brasileira. Como é o trabalho de um diplomata especializado em gestão cultural?
Tugny –Eu não tenho certeza se na França cultura e diplomacia são consubstanciais, ou, mais exatamente, eu não sei se a cultura está mais em evidência na diplomacia francesa do que em todos os outros domínios franceses. A França é um país cujo brilho e projeção estão fundados há muito tempo sobre o que chamamos, sem grande precaução, de usos lexicais, de “cultura” (grosso modo, eu nomeio aqui como cultura o conjunto de obras do espírito no domínio das artes e das letras). A diplomacia francesa carrega os traços dessa realidade, assim como a cozinha, a arte da guerra, a retórica, a educação, a sexualidade… Ser um diplomata francês é, sem dúvida, ter em mente essa herança. Não somos franceses fora da França sem estarmos associados a essa imagem patrimonial da França império da cultura. Penoso, sim, para os diplomatas franceses incultos… e feliz para os cultivados: eles se dirigem a seus interlocutores com fineza. Fique bem entendido: a questão da natureza da cultura é outro assunto. Lá reside nosso “polemos”. Mas, insisto, a diplomacia francesa é tão cultural como tudo o é na França, nem mais, nem menos.
CULT – Suas canções parecem ter um clima hippie sem capota, dialogando ora com John Lennon, ora com Johnny Cash, ou com Serge Gainsbourg… Quais são suas influências, como você dialoga com os anos 1960?
Tugny –Sim, tudo o que escrevo em música colhe sua fonte da era pop e jazz (o álbum que estou gravando no momento se abre bastante ao jazz) dos anos 1960 e 1970. Foi uma era de generosidade coletiva, de curiosidade, de abertura máxima, de abandono às esperanças e de fé. De qualidade de interpretação e de produção também. Eu pertenço a esse tempo musical, ao qual espero associar um toque mais sombrio, que remete à violência das relações sociais vividas na minha adolescência suburbana.
CULT – O que é o projeto Molypop? O que muda entre a experiência coletiva e o trabalho solo?
Tugny –Pouca coisa, na realidade, pois os músicos são os mesmos. No seio do Molypop, que é um grupo de rock, as decisões são progressivamente coletivas. Quando eu trabalho só, também são coletivas, mas eu tenho a palavra final.
CULT – O que é sideração?
Tugny – “Sidération!” é um ensaio filosófico consagrado à noção de sideração.
CULT – Você acha possível explicar a ideia desse livro (Sidération!) e a síntese de seu entendimento da noção de sideração? Estou enganado ou se trata de um tema bastante específico na filosofia, sobre o qual pouco se escreveu?
Tugny – Mais uma vez você tem razão. Que eu conheça, nada foi escrito e publicado sobre essa noção. Farei uma síntese, um tanto imprópria, pois, se eu escrevi um livro inteiro sobre essa noção, é nele, não numa frase, que está o mérito. Nomeio “sideração” um fato de consciência no qual a consciência prova o pertencimento radical de “seus corpos” ao ser do mundo. E eu constato que, no fundo, só escrevi sobre isso na minha vida…
CULT – Você escreve filosofia com forma literária, numa prosa poética?
Tugny – Escrevo. Ignoro o que seja “prosa poética”. Para mim, toda poesia está dentro de poemas. Não me coloco a questão da forma e não creio na distinção entre fundo e forma. Quando escrevo filosofia, estou em busca de uma língua pensada, de uma língua plena de pensamento, metáfora de um movimento do pensamento. Quando escrevo um romance, estou em busca de uma língua plena de visão, metáfora de um encadeamento de visões. Eu escrevo para fazer movimento: a cada gênero praticado corresponde uma ipseidade de movimento. Na literatura, lidamos com o mundo ou o cosmos; na filosofia, com o logos ou o sentido. A escrita é a imagem costurada na direção do objeto do fazer.
CULT – A Bretanha, esta região de remota tradição mística, de irredentismo corso, de espírito aventureiro associado ao mar, tem sido há décadas um celeiro de agentes modernizadores da linguagem e do signo, de Tristan Corbière a Yelle, passando por Alain-Robbe Grillet e muitos outros. Você acha que há uma especificidade cultural bretã? Como a Bretanha chega à sua obra?
Tugny – Ela aparece com frequência. A Bretanha possui uma língua. Essa língua fez o aprendizado de sua torção por outra língua; isso apreende, sem dúvida, a criação da língua. Há na Bretanha, me parece, uma brutalidade terminal, escatológica, da natureza que parece convocar a língua a dizer o fato, a libertar da abstração gramatical válida para toda vida e para nenhuma. Falar a partir da Bretanha é em alguma medida, para mim, apropriar-se de uma gramática dos fins, uma língua da urgência a dizer ainda, a gramática e a língua pertencentes a quem vai morrer.
CULT – E o Brasil? Você morou anos entre São Paulo e Porto Alegre. Como essa experiência vazou para sua obra, considerando a filosofia, a literatura e a música? Em Sideration! há uma bela imagem que remete ao lago e ao céu no Sul do Brasil.
Tugny – Quando eu deixar o Brasil pela segunda vez, terei vivido neste país por oito anos. Não sei exatamente de que maneira o Brasil entrou em meus livros… Direi que escrevi a maior parte de meus livros importantes no Brasil. A urgência de escrever é para mim brasileira, sem dúvida.
CULT – Como papel de parede em seu computador você usa a reprodução de uma tela de James Ensor, que introduziu com maestria a ironia irreverente e um tanto mórbida na pintura modernista, seja com seus impagáveis esqueletos, seja nos cômicos autorretratos, seja nas intrigantes máscaras de carnaval, não apenas invocação de uma memória de infância (a loja de seus pais em Ostend), mas sugestão do jogo de disfarces que seria regra no mundo pequeno-burguês. Ao mesmo tempo, a leitura de seus romances por vezes parece nos remeter ao ensaio de Bakhtin sobre Rabelais. Qual é o papel que a ironia desempenha em sua obra? Sua técnica incorpora em alguma medida essa lógica da carnavalização? Rabelais é uma referência para você?
Tugny – Eu utilizo hoje um papel de parede de Van der Weyden. Isso poderia ser uma resposta: a confrontação a diferentes formas de apreensão da morte… Rabelais: amo a sua incorporação ao mundo, mas não gosto do que o estruturalismo lhe fez… Rabelais não é um inventor da língua. Ele não é nem Khlebnikov, nem Joyce, nem Isou… Nos tempos em que escreveu, nem se falava propriamente de língua. Amo o Rabelais panteísta, mas não acredito no Rabelais do significante rei, no Rabelais “artista”, no senso de Goncourt, no Rabelais parnasiano, ou pós.
CULT – Como você lida com a dimensão psicológica em seus romances? Em que medida você explora a ideia de recesso dos personagens?
Tugny – A literatura é arte e é mundo… Há obras de alienação de fluxo de consciência e há os mundos onde fluem as consciências, e não se trata do mesmo sujeito. Meus personagens são em geral formas mudas e rigorosamente pictóricas, cujos corpos se acham desajeitados face à desconfortável necessidade da palavra. São elementos do mundo para quem a necessidade da palavra é um sofrimento patente, já que ela implica um pacto de ruptura com o silêncio do mundo. Meus personagens são do mundo, sua palavra os convoca a se extrair dele e eles sofrem. Quanto à sua psique, a literatura é feita de vida de linguagem e de linguagem; um personagem não tem psique porque a psique supõe ser suportada por uma physis, e nós falamos de literatura.
CULT – Kafka bradava: “Chega de psicologia!”. Mas Thomas Mann disse que ele escreveu o mesmo livro a vida inteira, sua autobiografia. Se o fez, foi recorrendo à sátira niilista do poder tentacular, castrador e ciclotímico, e sem jamais falar de si mesmo. O que Kafka e essa aporia representam para você?
Tugny – Eu escrevo sobre o pertencenimento ao mundo. Não distingo o eu do mundo. Meus livros são do mundo, eu estou no mundo. Pensar é se extrair nomeando. Eu recuso esse imperativo: minha aporia é a necessidade de não ser do mundo; meu assintótico é o ser do mundo. Há disso em Kafka, mas, sobretudo, em Rousseau, Spinoza, La Fontaine, Montaigne – meus mestres. Não me ressinto da opressão de qualquer poder; pertenço, já que sou do mundo. Thomas Mann me cai das mãos, isso discursa muito, pensa muito, não enxerga o suficiente.
CULT – Por que Tristan Corbière? A Bretanha, o mar (junto ao qual você mora, em Saint-Malo), o protótipo do poeta maldito, mestre no estilo coloquial irônico, com pontuação complexa, precursor do simbolismo – a matriz de quem pensa a poesia como extensão da música –, filho de um famoso escritor e que adotou um pseudônimo… Há aí um encontro com sua própria identidade?
Tugny – Não. Minha mãe escreveu uma magnífica memória sobre Corbière em 1970 e eu desejava lhe render uma homenagem há muito tempo. E, além disso, eu queria escrever um livro sobre matéria e morte, depois de Choro [publicado em 2004 pela editora Le Mot et le Reste]. Eu não chegaria aí sem uma ilustração. Corbière me apareceu como uma alegoria desse sujeito e eu o adotei como tal. Raros são os escritores que não são filhos de escritores. Esse livro é sobre a relação da escrita com a matéria e a morte. Corbière é um dos raros poetas que eu amo e é o “poeta de minha mãe”. Mas juro que escreverei sobre meu pai um livro inteiro. Eu já o fiz em Rheu, e voltarei ao tema, pois isso não me coloca dificuldades maiores. Mas Morrer como Corbière é um livro em que Corbière não é exatamente um herói, muito menos, evidentemente, que sua relação com o pai.
CULT – Morrer com Corbière vai além da biografia, ao mesclar o estilo do autor e o do biografado, rompendo com a temporalidade de forma que envolve o leitor na sensação da morte, do início ao fim. É um romance sobre a morte, assim como o documentário de Wim Wenders O Filme de Nick?
Tugny – Certamente, mas sobre a morte como sideração, condição de amor, como ascensão, epifania mônica, de amor supremo.
CULT – Morrer com Corbière recebeu o Prix Flore B, concedido pela blogosfera – o lado B do elegante Café de Flore do Boulevard Saint-Germain. Você mantém interlocução constante com os internautas pelo Facebook e pelo MySpace. Como a sua literatura lida com essas ferramentas, que nos empurram para uma fragmentação progressiva do discurso?
Tugny – Eu adoro o MySpace e o Facebook porque são espaços onde oferecer presentes às pessoas: fragmentos, aperitivos de livros, de telas, de músicas amadas. Eu trato esses espaços virtuais como mesas sobre as quais servimos os melhores vinhos aos hóspedes. Seguidamente eu escrevo assim, para atender a uma demanda de um livro que deseja ser, de uma mulher que quer um livro.
CULT – Você trocou recentemente o tradicional PS pelo radical Partido Anticapitalista. Como você avalia o atual momento vivido pela esquerda francesa?
Tugny – Trata-se, para a esquerda francesa, antes de tudo, de repensar o mundo desde a ideia de que ele não existe fora de sua construção pelo pensamento político. A direita mundial ganhou uma partida: ela produziu a crença na realidade irrecusável da realidade, na redução do álamo da utopia ao campo do presente. É dignidade da esquerda pensar a utopia a partir de uma consciência de unidade do mundo e dos homens e de pensá-la fora dos relativismos sazonais do calendário político.
CULT – Você leu, ou costuma ler, a obra de seu pai, o poeta e crítico literário Christian Prigent? Você identifica alguma interlocução entre o trabalho de vocês? Ele, por exemplo, interroga-se sobre autores considerados difíceis e um tanto subversivos, concentrando-se especialmente nas vanguardas literárias do fim do século XX na França. Além disso, embora a obra de vocês seja muito diversa, creio existirem certos paralelismos, como o tratamento dado à relação entre a criação poético-literária e o feminino.
Tugny – Li muito pouco a obra de meu pai, mas isso não significa muito: eu li muito poucas obras contemporâneas e isso não se aplica exclusivamente à literatura. Deve haver pontos de contato entre nós, mas creio que quatro coisas nos diferenciam fundamentalmente: ele é um poeta e acredita na ordem, nas coerências, na unidade autogerada; ele é um pós-estruturalista e acredita nas formas como redentoras de uma “depressão do mundo” e esquiva a representação; ele é um escritor dos contornos familiais; é um crítico e um preceptor. Eu não sou poeta, mas romancista e filósofo; não acredito em outra coisa que nas descontinuidades, na incoerência dialética; sou um cristão panteísta que não crê que para o mundo e para a representação haja um sentido a ser encontrado. Eu não escrevo sobre outra coisa senão aquilo que está muito distante da minha biografia. Não farei jamais crítica literária, tenho horror de produzir conteúdo literário fora das minhas ficções.
Quanto ao feminino, é o ar, o bourbon, o “deus escondido” goldmanniano dos meus livros, embora seja seu sujeito apenas raramente. E, quando o é, é um sujeito de amor terno, jamais o objeto de uma revanche. Mas a mãe ser a causa de o logos ser o sujeito do escrever é uma evidência para todos os escritores, meu pai, eu, os próximos, os estranhos.