O mandarim: entrevista com Carlos Heitor Cony

O mandarim: entrevista com Carlos Heitor Cony

Para Carlos Heitor Cony, adaptador da obra de Verne para o público juvenil, o autor francês “tem a limpidez de estilo característica de Balzac, Voltaire ou Zola”

No final dos anos 1930, um garoto que queria ser padre devorou os livros de Jules Verne, a maioria deles no original, no seminário onde estudava no Rio de Janeiro. A obra de Verne fascinou-o com suas aventuras fantásticas, o ajudou a aprender francês e a tomar gosto pela literatura. Na década 1970, já um escritor, ele reencontrou a obra de Verne ao ser convidado pela editora Ediouro para adaptar três obras do autor francês: Viagem ao centro da Terra, A ilha misteriosa e Um capitão de quinze anos. Foi aí que descobriu o grande escritor por trás do título “pai da ficção científica”. Suas adaptações de Verne ajudaram a criar o hábito da leitura em milhares de garotos brasileiros, que se fascinaram pela obra de Verne da mesma maneira que havia acontecido com ele três décadas antes.

O garoto era Carlos Heitor Cony. Mais conhecido como jornalista e romancista, ele foi também um voraz adaptador de clássicos da literatura para o público infanto-juvenil de autores como Dostoievski, Melville, Twain, Dumas, Gogol, Eça de Queiros e Manoel Antônio de Almeida.

O escritor define seu trabalho de adaptador como uma “condensação” dos originais. “Eu apenas traduzia e recontava o texto de maneira mais densa, sem interferir na história ou no estilo.” Portanto, segundo ele, não existe um “Verne do Cony”. Da mesma forma que não há um Verne de Paulo Mendes Campos, que também fez adaptações dos livros do escritor francês. “O bom adaptador não falseia o original.”

Para Cony, a primeira parte de Viagem ao centro da Terra é uma obra-prima, um dos momentos mais inspirados da literatura francesa do século 19. “O Verne fez no nível literário o mesmo que Da Vinci na parte técnica: imaginou uma realidade que só iria se concretizar no futuro distante.” Entre as 28 adaptações feitas por Cony, as três de Verne ocupam um lugar especial. “Foi o autor que mais permaneceu dentro de mim”, diz o escritor, de 79 anos. Na entrevista a seguir, Carlos Heitor Cony fala em detalhes sobre sua longa relação com Jules Verne.

CULT – O senhor conheceu a obra do Verne ainda na infância?
Carlos Heitor Cony –
Eu comecei a entender francês lendo Verne no original. Tinha 11, 12 anos, estava no ginásio. O Verne era um escritor liberado no seminário, porque não questionava a fé, os bons costumes. Era um autor light. E ainda o é. Não me apaixonei, mas gostei muito. Li quase toda a obra dele ainda na adolescência, em francês ou português. O único que ficou para a idade adulta foi Miguel Strogoff, que li quando tinha 20 e poucos anos, depois de ver uma adaptação para o cinema. Verne ajudou a despertar meu gosto pela leitura, ao lado de adaptações de Monteiro Lobato para clássicos como Dom Quixote ou Gulliver. Tanto é que, quando fui cobrir a Copa do Mundo na França, em 1998, aproveitei para visitar a casa de Verne em Nantes. Não havia nada demais ali. Mas tive essa curiosidade, porque tenho grande intimidade com a obra dele.

CULT – Qual a diferença entre o Verne que o senhor conheceu na infância e o que o reencontrou ao fazer as adaptações?
C.H.C. –
Na infância, eu me interessava pelo lado da aventura. Só fui descobrir o grande escritor na hora de adaptar. A primeira parte de Viagem ao centro da Terra, por exemplo, é uma obra-prima. A análise da obsessão de um homem por uma idéia, narrada pelo sobrinho dele, é um dos melhores pedaços de literatura francesa do século 19. Quanto à segunda parte, que é a da ação, já não me diz muito hoje.

CULT – É seu livro preferido do Verne?
C.H.C. –
Sim. Mas gosto muito também de Vinte mil léguas submarinas e de Viagem à Lua. E também de Miguel Strogoff, que não tem nada de ficção científica. A história do homem salvo da cegueira pelas próprias lágrimas é genial. O incrível de Verne é que ele escreve com grande intimidade sobre a Rússia do século 18 sem nunca ter ido ao país.

CULT – Como o senhor definiria o trabalho de adaptação? O senhor reescrevia ou resumia os livros?
C.H.C. –
Não. Era uma condensação. Eu eliminava pontos mortos, alguns diálogos, detalhes técnicos. Deixava o texto mais denso. Mas preservava a história, o clima e principalmente a expectativa. Todo livro do Verne tem um lado misterioso que é fundamental.

CULT – O senhor adaptava direto do original em francês? Isso significava também traduzir o livro?
C.H.C. –
No caso de escritores franceses, italianos e espanhóis, eu traduzia direto do original. Com autores alemães e russos, línguas que não domino, eu geralmente partia da tradução francesa. Mas eu nunca fazia uma tradução literal, palavra por palavra. Eu apenas recontava o livro de maneira condensada, sem interferir na história ou no estilo. Só mexi mesmo na adaptação do Memórias de um sargento de milícias. Tomei algumas liberdades, introduzi uns cacos. Mas só fiz isso porque o Manuel Antônio de Almeida foi uma grande influência na minha obra. Foi o autor que me balizou, que me chamou para a literatura. Já meus livros têm pouco a ver com Verne. Não cultivo a literatura de ação ou de ficção científica. Minha obra tem um ponto de vista mais introspectivo.

CULT – Não seria possível falar, então, em um “Verne do Cony”?
C.H.C. –
Não. Era um trabalho profissional, que ajudou a me sustentar nos anos 1970. Os livros eram escolhidos pela editora. Eu fiz adaptações de vários autores, às vezes duas ao mesmo tempo. Não era como no caso do Fausto de Gérard de Nerval, que fez uma leitura própria do livro do Goethe.

CULT – O senhor leu as adaptações de Verne por Paulo Mendes Campos?
C.H.C. –
Não, porque eu já havia lido os livros originais. Mas eu era amigo do Paulinho, que era um grande poeta e ensaísta e sei que ele usou os mesmos parâmetros profissionais que eu. Deve ter feito muito melhor, mas sem interferir na história. Não existe tampouco um “Verne do Campos”. A Clarice Lispector também adaptou livros, mas nunca com seu estilo. E o Orígenes Lessa foi o campeão das adaptações para a Ediouro. Tanto que a editora decidiu pagar o fardão dele na Academia das Letras. Eu acho que fui o segundo autor a fazer mais adaptações. O bom adaptador não falseia o original.

CULT – O senhor conversava com o Paulo Mendes Campos ou outros escritores dessa geração sobre Verne?
C.H.C. –
Não. Infelizmente, não havia muita discussão em torno do nome do Verne. A importância dele como pai da ficção científica é tão patente que de certa forma ele ficou engessado dentro desse título.

CULT – A editora determinava os parâmetros das adaptações?
C.H.C. –
Não. Ela só dava o tamanho, que era de umas 80 laudas das antigas, e o prazo, geralmente de três meses. Também pedia para não deixar palavrões ou cenas de sexo explícito, porque a série era dirigida ao público infanto-juvenil das escolas. Mas isso nem era necessário, porque os livros não tinham nada disso mesmo. Que eu saiba, não houve  adaptação de O Amante de Lady Chatterley.

CULT – As adaptações do Verne fizeram mais sucesso entre o público infanto-juvenil que as de outros autores?
C.H.C. –
Não tenho acesso aos números. Mas, pela repercussão, acho que sim. Acredito que os grandes sucessos dessa coleção foram Viagem ao centro da Terra, Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, e Tom Sawyer, de Mark Twain. Os três são livros de muita ação, o que sempre atraiu os adolescentes. Acho que não existe um adulto nos Estados Unidos que não tenha lido o livro do Twain na adolescência. O mesmo acontece com o de Dumas entre os franceses. 

CULT – Qual o estilo de Verne?
C.H.C. –
Verne tem a limpidez de estilo característica dos romancistas franceses do século 19, como Balzac, Voltaire, Zola. Ele nunca complica. É o contrário do que faziam os poetas franceses da época, como Baudelaire e Mallarmé, que tinham um estilo mais hermético. Além disso, Verne escrevia com muita ironia. Muito antes do Brecht, ele já tinha um distanciamento em relação a seus personagens, ele os criticava sutilmente com o humor. Nesse sentido, é um autor moderno.

CULT – É possível comparar Verne com autores de ficção científica do século 20?
C.H.C. –
Literariamente, Verne é disparado o melhor. Não sou um especialista no gênero, mas acho que ele ficou um tanto nebuloso no século 20. Os escritores têm certo deslumbramento pelo futuro, vivem passando recibo de que estão fazendo ficção científica. Já Verne tratava tudo como se fosse a coisa mais natural do mundo, escrevia sobre ciência ao alcance de todos.

CULT – O senhor diria que Verne é um escritor de entretenimento ou isso seria reduzir sua importância?
C.H.C. –
Não, porque grande parte da grande literatura é de entretenimento, como no caso do Dom Quixote, que é uma obra-prima fundamental da ficção. Os livros de Verne são de entretenimento porque são baseados na ação, mas sempre escritos genialmente e visionariamente.

CULT – O senhor acredita que as adaptações ajudaram a fixar no Brasil a imagem de Verne como um autor infanto-juvenil?
C.H.C. –
Não acredito que Verne fosse visto assim no começo, porque ele escrevia sobre assuntos que eram muito novos. Quando conheci sua obra no final dos anos 1930, ele ainda era muito lido por adultos. As adaptações foram feitas nos anos 1970 para um público que já não via aquelas coisas como novidade e já não estava acostumado com longas descrições ou digressões. Aí talvez ele tenha ficado marcado por essa imagem de autor infanto-juvenil. Mas o que desperta a idolatria a Verne entre jovens é o fato de ele criar imagens inesquecíveis, que permanecem conosco até o fim da vida. A adaptação que mais gostei de fazer foi a do Moby Dick. Mas a que mais permaneceu em mim foi a de Viagem ao centro da Terra. Quem lê Verne não esquece. Eu, pelo menos, nunca esqueci.

Ricardo Calil
Jornalista

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