Carlos Heitor Cony, entre o espanto e a indignação
O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony (Reprodução)
A rebeldia de Carlos Heitor Cony chega diariamente ao leitor, através de suas crônicas. Indignado, o escritor não doura a pílula e cutuca a ferida social brasileira, aponta as contradições entre o discurso e as mazelas do governo. O Brasil sempre esteve na mira desse escritor. Depois de ficar cerca de 20 anos sem publicar, ele retornou com Quase memória, reconstruindo a imagem de seu pai, o personagem central do livro. Seus romances anteriores passaram por uma revisão e começaram a ser reeditados. Agora, a Companhia das Letras publica seu novo título Romance sem palavras, onde ele conta a história de três brasileiros que resistiram ativamente à ditadura nos anos 60. Sem nostalgia, Cony amarra sua obra flagrando-os em meados dos anos 90, levando outro tipo de vida, mais acomodados, trabalhando, investindo na Bolsa. Como ele diz nessa entrevista, feita por telefone, o livro traz seu espanto em perceber como muitos daqueles que atuaram no passado hoje encontram-se sedados.
CULT – Depois de quase 20 anos sem publicar, você retornou com Quase memória. Numa nota inicial, você dizia que achava que não teria “nada mais o que dizer”. Bom, depois desse romance vieram outros, como o recém-lançado Romance sem palavras. O que modificou a sua perspectiva em relação ao romance de lá para cá?
Carlos Heitor Cony – No livro, havia uma nota na qual eu dizia que eu não tinha mais nada a dizer – mas não que eu não tinha mais nada a contar. Há uma diferença entre dizer e contar. Dizer alguma coisa carrega uma verdade, uma revelação. Já o contar tem mais de crônica, de contar o que aconteceu. Depois de Quase memória, passei a contar.
CULT – Este novo livro traça a história de três personagens no final dos anos 60 e nos meados dos anos 90. Aos poucos, a literatura brasileira atual tem procurado fazer essa ponte do presente com os anos da ditadura. Você acredita que estamos num momento de reflexão sobre a história recente brasileira?
C.H.C. – Todo tempo é de reflexão. No caso da minha geração, a reflexão mais comum é sobre o período da ditadura. Por volta de 1965, muita gente aderiu à luta armada e muitas pessoas dessa época foram traídas, outras morreram no caminho. E houve aqueles que sobreviveram, que, ou depuseram as armas, penduraram as chuteiras, ou mantiveram alguma atuação de outras maneiras. Eu já havia tratado da luta armada em Pessach: A travessia, que foi escrito em 1967, ou seja, antes do AI-5. Nesse livro, eu era contra a luta armada, mas depois do AI-5 todas as alternativas se fecharam e uma das poucas saídas que restaram foi a luta armada. Eu entrei na luta contra a ditadura, porém sem participar da luta armada. Continuo contra qualquer governo que não tenha uma política social. Por isso fui contra o governo de Sarney, de Collor e agora de Fernando Henrique.
CULT – De 60 para cá, o que mudou na vida desses personagens?
C.H.C.- O importante é ver como essas pessoas entraram tão puramente e tão belamente na luta armada e como hoje, passado tanto tempo, entram em outro tipo de vida do mesmo modo, tão belamente, tão puramente. Um dos personagens, por exemplo, hoje joga na Bolsa, é uma pessoa bem-sucedida. Quer dizer, a vida continuou para elas. O livro é uma reflexão um pouco amarga sobre o repouso do guerreiro. Eu fico admirado de ver como dada geração arriscou a vida e hoje encontra-se sedada.
CULT – De que forma você vê a crônica diária e o trabalho de romancista
C.H.C – Na literatura, eu expresso meu espanto. E no jornal, através da crônica, eu sou mais indignado. São atividades para mim completamente separadas. Em 64, por exemplo, quando eu estava sendo procurado pelo ministro da Guerra, acabei me refugiando e escrevi o romance Antes, o verão, mas nele não trato da questão política. Recentemente, foi reeditado um romance meu que foi escrito há 40 anos. O romance tem maior perenidade. Pode ser que esse livro que estou lançando agora venha a ser reeditado daqui a 40 anos. Já a crônica é a indignação de agora, para o camarada ficar com raiva do FHC, dos acordos com o FMI. No romance, está o espanto; na crônica, a indignação.
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Lido em 01-10-2023.