Entrevista – Boris Fausto

Entrevista – Boris Fausto

O historiador Boris Fausto fala sobre seu novo livro e analisa os resquícios do populismo na atual política latino-americana

Wilker Sousa

Criada na Itália no final dos anos 1970, a micro-história tornou-se um gênero prestigiado no ocidente. Detendo-se em fatos que ficam à margem de abordagens históricas mais amplas, a micro-história faz do corriqueiro e do fait divers pretextos para uma análise sociocultural relevante. Ao contrário da linguagem acadêmica, esse gênero vale-se de recursos típicos da narrativa ficcional, o que acaba por aproximar a História daquele leitor não iniciado. O mais recente livro do historiador Boris Fausto, O crime do restaurante chinês, constitui um típico exemplo de micro-história.

Na São Paulo de 1938, em plena quarta-feira de cinzas, uma chacina abalou a cidade: em um restaurante chinês, localizado na rua Wenceslau Braz, nº 13, quatro pessoas haviam sido brutalmente assassinadas, três delas a golpes de mão de pilão, a outra, por estrangulamento. As vítimas eram Ho-Fung e Maria Akiau, casal dono do restaurante, e seus empregados José Kulikevicius e Severino Lindolfo da Rocha. O acontecimento movimentou a opinião pública. Na busca por suspeitos, a polícia concentrou-se em Arias de Oliveira, jovem negro e pobre, que trabalhara no restaurante.

A partir de então, o tom racista e condenatório perpassa o tratamento dado ao acusado. Polícia e parte da imprensa tratam-no como “preto suspeito”.

A análise e os desdobramentos do crime servem de ponto de partida para o autor discutir outros fatos relevantes da época, como a Copa do Mundo, realizada na França, e as manifestações populares, em especial, o carnaval da São Paulo dos anos 1930. O olhar arguto do historiador permite tecer uma relação ora explícita, ora implícita entre os aspectos socioculturais daquele período da história nacional e a tragédia do restaurante chinês. Racismo, relações multiculturais, descompasso entre pobreza e desenvolvimento tecnológico, jornalismo, futebol e carnaval, um amálgama de fatores socioculturais sob o crivo histórico de Boris Fausto.

Nesta entrevista, o historiador fala das principais questões de seu novo livro, comenta o interesse do brasileiro pela história do país e analisa aspectos populistas presentes na política latino-americana atual.

CULT – A micro-história busca, entre outros aspectos, “extrair de fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão social relevante”. De que forma O crime do restaurante chinês contempla essa premissa?

Boris Fausto – Primeiro porque o crime é importante. Seja pela repercussão que teve na cidade, seja pelo vulto que essa questão teve. Há também uma contraposição ao presente. Hoje vários crimes se sucedem uns após os outros, sem grande repercussão. Por outro lado, o crime é uma possibilidade não é um pretexto. É uma possibilidade de se fazer uma introdução no sistema Judiciário Criminal e mostrar não só a existência do racismo – isso é conhecido –, mas como ele é um fenômeno mais complexo do que às vezes se imagina. É também uma oportunidade para explorar um fragmento, um ano da vida da cidade marcado por uma cena de futebol e mobilização popular.

CULT – O tratamento dado ao tema, com uma linguagem objetiva e fluida, além de estruturas narrativas típicas de romances policiais, permite uma maior visibilidade junto àquele público leitor não habituado ao discurso acadêmico?

Boris – Exatamente. A venda do livro está, até certo ponto, surpreendente. A percepção era de que esse objeto requeria um tipo de narrativa aproximada do romance policial e até da linguagem cinematográfica. A cena inicial [na qual o cozinheiro Pedro Adukas chega ao trabalho e se depara com as quatro vítimas] tem uma marca minha de leitor de romance policial e de quem gosta de cinema desde os doze anos. 

CULT – Como o sr. analisa a atual proliferação de publicações sobre História – sejam revistas em bancas de jornais, sejam livros como 1808, do jornalista Laurentino Gomes? As barreiras entre academia e grande público têm sido transpostas?

Boris – Para falar do Brasil, eu acho muito salutar essa vontade de conhecer o passado e a História. Isso corresponde à presença de um consumidor de classe média razoavelmente ilustrado, letrado. É um público que apareceu. Não é aquele velho público que ia à Livraria Francesa comprar livros importados em francês – uma elite culta, mas muito reduzida. Esse novo público está consumindo coisas das mais variadas.

Eu acredito que o fato de ser jornalista não é nenhum impedimento para que se escreva sobre História. Eu não tenho o menor preconceito em relação a isso. Acho que tem uma certa especificidade, uma maneira de trabalhar do historiador que tem o seu lugar acadêmico, mais reflexivo. Mas o papel do jornalista, do bom jornalista, não é nada desprezível. Então, acho positivo que esses livros vendam muito bem. Tem lugar para todo tipo de trabalho.

Há alguns temas que despertam a atenção, é engraçado. O Brasil virou monarquista. Muita gente quer saber sobre o Império, pressupondo que era uma época boa, mas se esquecem da escravidão. O livro do Laurentino Gomes vendeu muito bem, mas não só este. Os livros da edição perfis da Companhia das Letras que mais venderam foram aqueles de personagens do Império. O meu “Getúlio” [Getúlio Vargas – O poder e o sorriso] até vendeu bem, mas não tanto quanto o “Pedro II” [Dom Pedro II – Ser ou não ser], do José Murilo de Carvalho e o “Pedro I” [Dom Pedro I – O herói sem nenhum caráter], da Izabel Lustosa. O Getúlio não pode concorrer com essa gente.

CULT – Voltando ao livro, um dos aspectos que mais chama a atenção é a “naturalização do racismo”. A alusão à cor de Arias por parte da imprensa e da justiça é constante e usada de forma a acentuar sua possível culpa. Na sua opinião, tal comportamento permanece, ainda que de forma velada?

Boris – Aí há duas coisas. A primeira, mais complexa. O caso do Arias [acusado do crime] mostra algo complexo sobre o racismo: ele existia na sociedade brasileira e ainda existe hoje, isso é inquestionável. É o chamado “racismo ordinário” – expressão que os franceses usam como algo que se relaciona ao cotidiano, que está na cara. Esse racismo existe. Porque toda hora é o preto isso, o preto aquilo. Mas ao mesmo tempo existe uma outra coisa: o fato de que o Arias foi pouco a pouco se tornando um personagem simpático. Primeiro porque o discurso da imprensa vai mudando ao longo do processo e depois porque o promotor, em um de seus recursos, diz “Aconteceu de novo a simpatia pelos delinquentes”. Tanto que o Paulo Lauro, advogado de defesa, que era mulato, saiu aplaudido ruidosamente do segundo julgamento. Então, claro que existe o racismo, mas, em certas situações concretas, ele pode não prevalecer.

CULT – Essa simpatia que Arias foi conquistando junto à opinião pública relaciona-se, em certa medida, com a semelhança física do acusado com o jogador Leônidas da Silva, estrela da seleção de 1938? A mudança do discurso relaciona-se com isso?

Boris – O discurso da imprensa possivelmente, o do público certamente. Eu fui um tanto prudente nessa associação, pois não está escrita em lugar nenhum. Eu cheguei a essa associação porque o Leônidas é uma figura muito presente na minha memória. Eu o vi jogar no Pacaembu, quando veio para o São Paulo. Quando eu vi o Arias, notei que era a cara do Leônidas, até porque eu estava trabalhando com fotos da Copa do Mundo, então explorei isso. 

CULT – No tratamento dado ao crime, a imprensa é ora condenadora e racista, ora simpática ao acusado Arias. Como o sr. analisa a postura do jornalismo em relação ao crime?

Boris – Vou me ater ao jornal impresso. Na época, assim como hoje, havia jornais mais sensacionalistas e outros mais sisudos. O Estadão censura o sensacionalismo. O Sérgio Milliet, por exemplo, chegou a afirmar que “agora que a massa aprendeu a ler, os jornais se desvirtuaram da sua função”, ou seja, no Estadão a cobertura foi muito sóbria. Por outro lado, havia a cobertura do jornal A Gazeta, muito lido da época. Era um jornal leve. Não era uma coisa imprestável, de jeito nenhum, mas era mais sensacionalista. Então o trato foi muito diferente.

CULT – Trazendo o assunto para tragédias mais recentes, cito como exemplo a cobertura da morte do casal von Richthofen e da menina Isabella Nardoni. Como o sr. analisa a diferença de tratamento por parte da imprensa entre essas tragédias e aquelas que ocorrem na periferia?

Boris – Aí há duas questões. A primeira delas é um tratamento da imprensa de acordo com a categoria social dos indivíduos. Isso é inegável. No caso do crime que trato no livro, se fosse a morte de um “paulista de 400 anos”, ou seja, de uma família muito tradicional, a repercussão teria sido ainda maior. Mas, apesar disso, a repercussão do crime do restaurante chinês foi grande. Quando você cita o caso do casal von Richthofen e da menina Isabella, são exemplos que vão caindo no esquecimento. No caso do crime do restaurante chinês, tem algumas coisas curiosas. Antes, houve o “crime do castelinho”, que foi um crime de gente importante. Houve uma versão de que um membro da família teria matado a mãe, o irmão e se suicidou em seguida. Essa versão colou, mas muita gente não acredita nela. Consta que o suicida morreu com dois tiros! O crime teve repercussão na época, mas inferior ao do restaurante chinês que permaneceu, inclusive porque o Arias foi sendo julgado ao longo de anos. Ficava aquela questão: Vai ter um novo julgamento. Ele vai ganhar ou não? Era uma expectativa quase futebolística. Durante a Copa do Mundo, o crime entra em uma fase mais burocrática, com depoimentos de testemunhas etc. A Copa toma conta da imprensa. Quando ela acaba, e aproxima-se o segundo julgamento, o caso volta com destaque aos jornais até o desfecho. 

CULT – Seu livro A Revolução de 30 é tido como referência nos estudos daquele período, bem como sobre a prática populista de Vargas. Na sua opinião, quais traços do populismo ainda permanecem no atual contexto político da América Latina?

Boris – Com algumas modificações, o Chavez é um populista adaptado aos novos tempos. É um populista a pleno vapor. No plano econômico, inflação não é problema para ele, o que é uma característica do populismo. Perón dizia: “Não quero saber de inflação. Isso é coisa de economista. Eu sou político”. Aí vem a pergunta: “O Lula é um populista?”. É e não é. Ele usa alguns dos recursos do populismo num outro contexto. Populismo econômico ele não fez, a não ser no gasto público e no emprego da turma. Houve o cuidado do Banco Central com a inflação e a busca persistente pela estabilidade econômica. Os populistas não fazem isso. Essa política foi herdada do Fernando Henrique, algo que o Lula inteligentemente percebeu. Ou seja, como ele poderia ter continuidade no poder jogando em duas frentes. Assim ele conseguiu o encanto dos banqueiros e do pessoal do Bolsa Família.

CULT – Em 2004, o sr. afirmou em entrevista que “se o governo Lula não desse certo, a crença do brasileiro de que é possível mudar as coisas pelo processo democrático se desgastaria”. Passados cinco anos, o sr. acredita que o governo deu certo?

Boris – Começo pelo comparativo que fica mais fácil. Se olharmos para a Argentina, Venezuela e mesmo para a Bolívia – embora a Bolívia seja um caso distinto por conta da questão indígena – nós estamos em uma situação muito melhor.

Riscos de um regime formalmente autoritário, o que se relaciona àquela minha declaração, eu acho que não existem. O governo Lula teve aspectos muito surpreendentes. Para o bem ou para o mal, houve uma capacidade de comunicação muito grande com a grande massa, o que prestigia a figura do chefe do Executivo. Realizou-se uma política social a qual Lula e sua equipe de comunicação conseguiram passar que foi ele quem inventou, mas não foi. Mas é fato que ele avançou, inclusive aumentando o número de pessoas beneficiadas. A área econômica foi outro grande mérito. Houve a manutenção, não só de uma equipe, mas de uma linha de política econômica que se revelou coerente. O tratamento da crise, por exemplo, na parte técnica, está sendo bem feito.

Por outro lado, a ideia de que o PT é um partido símbolo da ética na política – aspecto que, mesmo eu não sendo petista considerava o diferencial do partido – não se sustenta mais. A não ser para uma pessoa ingênua ou beneficiada pelo governo. Mas, no balanço geral, eu diria que nós estamos razoavelmente bem. O que há é essa decepção com a ética e o aprofundamento do padrão não ético (para ser delicado), que  são muito graves. A absorção dos escândalos como algo natural e a apatia política são aspectos negativos do governo Lula.

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