Entre máscaras e papeis
Ivam Cabral, cofundador d’Os Satyros, assina roteiro e atua na peça. (Foto: André Stéfano)
Welington Andrade
“O mundo nada mais é que correlação objetiva da pessoa;
portanto, a cada pessoa individual corresponde um mundo individual”.
Max Scheler
A longevidade de uma companhia de teatro é uma meta com a qual talvez poucos diretores, atores e dramaturgos no Brasil ousem sonhar. A estabilidade do grupo sedimenta seu projeto artístico, estabelece com o público vínculos mais duradouros e convida à necessária experimentação de repertório e de linguagens. Assim é que o fato de uma companhia como Os Satyros chegar já a seu 25º ano de existência deve ser celebrado por todos aqueles que creem que o teatro ainda tem muito a dizer nos tempos atuais.
Fundada em 1989 por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázques, com a montagem de Aventuras de Arlequim, a companhia iria se tornar nacionalmente conhecida com o espetáculo Sade ou noites com os professores imorais, sua primeira incursão por A filosofia na alcova, do Marquês de Sade, autor que orientou boa parte do repertório artístico e político do grupo e esteve no centro das comemorações de suas duas décadas. Entretanto, a trajetória d’Os Satyros – uma das mais consequentes no panorama geral da cena contemporânea brasileira – deve ser avaliada menos pelo bom número de espetáculos com temas polêmicos, difíceis de serem digeridos pelo grande público, que eles conceberam e mais pela ousadia de tratar tais assuntos pelo viés de uma teatralidade viva e inquieta.
Para comemorar suas duas décadas e meia de existência, a companhia está apresentando em seu pequeno teatro na praça Roosevelt o espetáculo Pessoas perfeitas, dirigido por Rodolfo García Vásquez. A peça retrata um grupo de cidadãos anônimos de uma grande metrópole como São Paulo, às voltas com suas vidas ao rés-do-chão, de onde brotam dramas íntimos, pequenas alegrias, afeições patéticas e alguma dose de lirismo. Do roteiro das cenas – escrito por Ivam Cabral e Rodolfo García Vásquez a partir da observação do comportamento de moradores do centro da cidade e de entrevistas realizadas com eles – emana uma atmosfera muito envolvente que, além de chamar a atenção para o caráter tão singular das histórias de vida ali traçadas, convida o espectador a entrar em contato com imagens muito agudas, concebidas a partir da natureza da categoria da “pessoa”, o mais combalido dos conceitos cunhados no âmbito da psicologia e da filosofia nos últimos tempos, cuja crise de representação espraia-se por todas as artes.
A origem do termo “pessoa” em português remete à forma latina “persona”, mas evoca uma relação com o mundo do teatro, que o espetáculo d’Os Satyros tão habilmente sabe explorar. Em Sobre Shakespeare, o crítico canadense Northrop Frye aponta: “Antigamente os atores em geral usavam máscaras no palco, e a metáfora do ator mascarado acabou originando duas palavras na língua. Uma é “hipócrita”, de origem grega, que se refere ao olhar do ator através da máscara; a outra é “pessoa”, de origem latina, e se refere à fala do ator através dela. Atualmente usamos também a palavra persona para falar do aspecto social de um indivíduo ou do modo de ele enfrentar as outras pessoas. De certa forma esse termo é enganoso, pois pressupõe um ser real debaixo da máscara e, como o solilóquio nos faz lembrar, não há nada por trás de uma persona a não ser uma outra persona”.
Ora, a grande qualidade de Pessoas perfeitas é o fato de a peça não se acomodar à sua superfície documental, dando voz realisticamente a um grupo de indivíduos cujos traços particulares qualquer espectador é capaz de reconhecer, por exemplo, ao caminhar atentamente pelas ruas de São Paulo. Desse modo, no espetáculo, a questão da identidade não está voltada às dimensões antropológica e sociológica do cidadão paulistano. Antes, cada uma das “pessoas perfeitas” a quem Os Satyros resolveram dar vida constitui um ser fracassado por trás de uma máscara, cujo comportamento individual está intimamente associado a uma performance de natureza dramática, potencializada pela função subalterna ou deslocada que ela ocupa na escala social.
O espetáculo fala de seres espectrais tensionados por suas relações com o mundo e consigo mesmos, convertendo tais “sujeitos sujeitados” em ásperas criações teatrais. Talvez três sejam os tipos de máscaras que eles assumam. A jovem interiorana que chega à capital para viver uma experiência mística (Julia Bobrow), o garoto de programa com quem ela começa a namorar (Henrique Melo) e a mãe deste, uma frívola mulher suburbana (Marta Baião), são tipos que tendem ao histriônico e ao caricatural, calcados em manifestações de exagero e exterioridade. Um segundo grupo é formado pela ex-cantora fadada à morte (Adriana Capparelli) e pelo escritor decadente que vaga pela cidade (Fábio Penna) – sobre os quais uma atmosfera de derrisão melodramática assenta tão bem.
Por fim, outro par se forma, a partir do qual o espetáculo atinge momentos de uma tragicomicidade das mais comoventes. Trata-se do açougueiro solitário (Eduardo Chagas) e do zeloso filho de uma mãe com Alzheimer que à noite se transforma em outra pessoa ao fazer uso dos serviços de disque-amizade (Ivam Cabral). A máscara de ambos parece transitar pelo registro do clown branco, devotada à “pureza romântica, melancólica, sentimental”, como atesta o Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos
A investigação satyriana a respeito desses perfeitos fantasmas que o capitalismo moderno tem convidado cada vez mais a perambular, anônimos, pelas ruas das grandes cidades convida a algumas especulações. O variegado supermercado do misticismo, do sexo e da frivolidade vem oferecendo seus atraentes produtos ao indivíduo-massa – despersonalizado e desconectado de qualquer interioridade, mas sempre confiante em sua singularidade exacerbada. A arte tem buscado ungir indiferentemente os talentosos e os incompetentes, transformando-se em um lucrativo negócio para o qual a falsidade é a prova dos nove, hostil, portanto, aos que se orgulham de ter muita verdade interior. Já os afetos mais genuínos continuam a ligar os indivíduos e a lhes oferecer certos remansos frente à impessoalidade que grassa por todos os lados. Mas, hoje, paradoxalmente, tais afetos parecem tão mais reais quanto mais virtuais forem seus canais de expressão.
Todos os atores estão à vontade diante de empreitada sui generis, explorando suas máscaras e seus papeis com muita segurança. (Deve-se à direção de Rodolfo García Vásques, naturalmente, a adesão irrestrita dos intérpretes ao delirante, desconcertante e estranho clima que se cultiva no palco). Entretanto há que se destacar de modo particular o trabalho vocal e corporal de Eduardo Chagas e de Ivam Cabral, que simplesmente iluminam as cenas de que participam ao se lançarem com tanto empenho à diligente composição de suas comoventes figuras. Por meio de cada inflexão de voz, cada gesto, cada olhar, ambos os atores caminham com impressionante domínio técnico e emocional sobre o tênue fio que separa o sublime do grotesco.
Impossível não fazer menção também à participação das violoncelistas Alessandra Giovannoli e Rebeca Friedmann, que se revezam no papel da figura soturna da mãe demente, cuja fala tartamudeante corresponde aos espasmos sonoros extraídos do violoncelo. Embora a personagem não seja defendida por uma atriz e não assuma uma máscara propriamente como as demais, não se pode deixar de pontuar a expressividade de tal figura em cena, construída em cima desta poderosíssima imagem simbólica de alguém que se comunica precariamente pelas cordas retesadas de um instrumento penetrante.
O problema do conceito de pessoa e dos múltiplos papeis que o indivíduo assume ao longo de sua vida há muito tempo vem sendo matéria de investigação da filosofia. Um dos principais representantes do estoicismo latino, o filósofo grego Epicteto (50-125) já advertia no primeiro século da era cristã: “Lembra-te de que aqui não passas de ator de um drama, que será breve ou longo segundo a vontade do poeta. E se lhe agradar que representes a pessoa de um mendigo, esforça-te por representá-la devidamente. Faze o mesmo, se te for destinada a pessoa de um coxo, de um magistrado, de um homem comum. Visto que a ti cabe apenas representar bem qualquer pessoa que te seja destinada, a outro pertence o direito de escolhê-la”.
Ao comemorarem seu 25º ano de existência, Os Satyros estão bebendo uma vez mais nas fontes da filosofia e da psicologia, atrelando-as de modo muito original às esferas da política e do próprio mundo do teatro. Associar o fenômeno teatral a sua inequívoca vocação de arte pública talvez seja a mais importante contribuição que o grupo venha prestando à cultura brasileira. Quem transita hoje pela praça Roosevelt – onde, além da própria sede da companhia e da SP Escola de Teatro, na qual ela também atua, estão instalados mais quatro teatros – revive o ambiente das antigas ágoras gregas, locais de grande afluência do público nos quais se promoviam discussões políticas e festas cívicas.
Pessoas Perfeitas
Onde: Espaço dos Satyros 1 – Praça Franklin Roosevelt, 214 – Consolação
Quando: até 26/10. Quinta a domingo às 21h.
Quanto: De R$ 5 a R$ 20.
Info: (11) 3258-6345.