Entre a Cila do sublime e a Caríbdis do ridículo
Em Sala dos professores, o mais recente espetáculo da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, com texto de Leonardo Cortez e direção de Marcelo Lazzaratto, três camadas de significação parecem se entrelaçar. A primeira delas é a mais visível: no plano referencial, a peça trata de uma profissão absolutamente em crise nos dias de hoje, o magistério, e o faz sob um recorte específico, focalizando alguns problemas que se abatem sobre professores do ensino particular, divididos entre o exercício da consciência crítica que seria inerente à atividade docente e a adoção de posturas pragmáticas, típicas da mentalidade neoliberal do “salve-se quem puder”. A segunda esfera de significado por onde a peça transita diz respeito à forma escolhida pelo dramaturgo para abordar tais questões. O gênero dominante é o da comédia de costumes, cuja agilidade, aqui, sabe muito bem tirar partido das situações criadas em cena e das boas doses de ironia e mordacidade que surgem em torno delas. Mas o texto também explora os recursos de uma comicidade mais delirante, nonsense, absurda, que, de certo modo, entra em choque com aquele primeiro registro de humor, digamos, mais convencional. Por fim, há um terceiro nível semântico, de tipo talvez mais complexo, que constitui a natureza da experiência de recepção a que se submete o espectador diante da obra.
Os professores que estiverem presentes na plateia (caso deste crítico, inclusive) reconhecerão de imediato o grau de intimidade com o qual Leonardo Cortez – ator, dramaturgo, docente – lida com este universo tão particular. Há inúmeras situações que ocorrem em qualquer ambiente de ensino privado, como as pequenas hostilidades entre professores e alunos, exacerbadas ou sublimadas, a depender dos contextos em que se dão; a vacuidade de certos discursos docentes, pretensamente críticos, mas muitas vezes calcados em puro proselitismo; as pequenas disputas de poder; a rotina estressante de reuniões e comissões; as relações afetivas colaterais vividas em segredo; a difícil relação entre professores e direção e entre estes e as sociedades mantenedoras… O perfil traçado por Cortez é, de modo geral, bastante empático aos mestres, mas não abre mão de torná-los alvos de vez em quando de alguma censura e mesmo repúdio. O dramaturgo não construiu personagens complexos, ricamente matizados, às voltas com dilemas interiores e escolhas dramáticas. Antes, ele optou por apresentar tipos gerais – impalpáveis, no nível do esquematismo psicológico ao qual estão a serviço, porém consistentes em virtude dos discursos que representam. E aqui registram-se, então, dois pontos bem positivos do espetáculo e do texto, respectivamente. No plano da atuação, Carolina Fabri, Pedro Haddad, Rodrigo Spina, Marina Vieira, Wallyson Motta e os atores convidados Leonardo Cortez e Laís Marques sugerem com muita habilidade técnica – e variedade de estilo – as nuances cômicas e os matizes ideológicos que subsistem por detrás das máscaras que cada um deles empunha. Já, na esfera do texto, em muitos momentos, observar de perto tais seres causa em nós certo incômodo, certo desconforto. Como se houvesse muito mais coisas medíocres e estreitas – intelectualmente, inclusive – entre a sala dos professores e as salas de aula do que foram sonhadas em nosso fascínio pela pedagogia.
O gênero por onde texto e encenação transitam priva de interessante hibridismo formal. Seria dramático, se não fosse cômico; seria trágico, se não fosse patético; seria épico, se não fosse absurdo… Em relação ao primeiro par, a recusa ao drama aqui é quase que obrigatória. No momento em que alunos da rede pública tomam para si o protagonismo na luta pela educação, qualquer exercício de fabulação dramática em torno da figura do professor soaria anacrônica e inócua. Irresponsável, até. Porque a estrutura sempre aberta da vida social desautorizaria o aprisionamento do tema “educação” na pequena cela do drama, sendo praticamente incontornável sua conversão em puro melodrama. No tocante ao par seguinte, se há algum componente trágico, ele não está presente na gravidade da situação – trabalhada no nível temático – e, sim, na condução do personagem vivido por Pedro Haddad, dividido entre as esferas do ideal e do real. Apegado aos hábitos do cotidiano, o personagem luta dia-a-dia para preservar a memória de suas aulas, avançando ironicamente rumo ao esquecimento de si mesmo. Levando-se em conta que paira sobre ele ainda a ameaça de que a própria escola possa, institucionalmente, vir a esquecê-lo, a dimensão trágica do personagem é quase completa. Quanto ao terceiro par, não se trata mesmo de uma criação épica – assentada sobre um dialogismo que analisa a macroestrutura. O texto opta, antes, pelo exame do que é microscópico. A partir da moldura delineada pelos elementos contidos nas três duplas formais já aludidas (dramático-cômico; trágico-patético; épico-absurdo) texto e encenação investem em uma comicidade que se inicia orientada pelo código da comédia de costumes, mas que resvala o tempo todo em um humorismo mais afeito à linguagem do patético e do absurdo. Que não se ria dos professores somente pelo que eles fazem, mas também por aquilo que eles representam em um universo de sentido bem mais amplo.
Assim, chegamos ao terceiro nível dessa criação, que dá conta do tipo de experiência pela qual passa o espectador diante do tema abordado e do gênero praticado. Sala dos professores oferece à plateia algumas pistas falsas, e isso é muito bom. Não se vai discutir ampla ou profundamente a crise da educação. Não serão produzidos discursos sobre os descalabros que se abatem sobre o atual sistema de ensino. Professores não serão apresentados em suas interioridades complexas. E nenhum boi será nomeado – política ou ideologicamente. Mais despretensioso em sua elaboração, o espetáculo se contenta em explorar alguns modos de representação do universo da educação e jogá-los sobre nós, para que nos desincumbamos deles.
Ao perceber que o riso nasce no palco basicamente de uma situação angustiante – a tecnocracia venceu, e os professores hoje são figuras desimportantes, habitantes de um não lugar chamado sala de aula –, o espectador talvez sinta que seja necessário não somente lamentar a conjuntura, mas também compreendê-la para além do nível da indignação. Algumas obras anteriores à Sala dos professores trataram da relação professo-aluno, cada uma a seu modo, com traços muito particulares. A lição, de Ionesco, reverte parodicamente o mundo do conhecimento e o transforma em lugar para a irrupção da violência contra o homem; Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde, usa a sala de aula como metáfora para o exercício de toda sorte de despotismos; A aurora da minha vida, de Naum Alves de Souza recupera o veio memorialístico que vê a escola como manifestação de um tempo-espaço feliz; Prof!, Profa!, do dramaturgo belga Jean Pierre Dopagne, investe em uma contundente metáfora: somente a barbárie possa provavelmente se opor à letargia dominante no terreno da educação formal.
Curiosamente, o texto de Leonardo Cortez e o espetáculo dirigido por Marcelo Lazzaratto acabam privando de certas elementos estilístico-formais presentes em tais criações, mesmo sem o saber. Diante de um sistema educacional – seja ele público ou privado – em total ruína, talvez nos caiba experimentar algumas sensações, contemplar algumas ideias: humanistas ou anti-humanistas, libertárias ou despóticas, nostálgicas ou melancólicas, civilizadas ou selvagens. Ao percebermos que a frase final da peça, que associa docência e heroísmo, é proferida de modo absolutamente ambíguo, ou polifônico até, saímos mais aliviados da sala de espetáculos, conscientes de que o teatro nos armou mais uma arapuca. O sublime e o ridículo se equivalem e é preciso saber o que fazer com eles para que não sejamos vítimas – seja de tramas que explorem a grandeza da alma de alguns heróis, seja de ideologias que triunfem sobre a pequenez de nosso poder de atuação.
Sala dos professores – Cia. de Teatro Elevador
Onde: Espaço Elevador (Rua Treze de Maio, 222)
Quando: Até 29 de maio (no dia 21/5 não haverá espetáculo); sábados, às 21h; domingos, às 18h
Quanto: R$ 20,00 e gratuito para alunos e professores da rede pública de ensino básico (somente na bilheteria)
Info: (11) 3477-7732