O cânone e seu outro
No decorrer do último meio século, o modelo dos estudos literários descansou na oposição entre o cânone e seu outro, a cultura popular. O dictum de um crítico de arte, Clement Greenberg, pode aliás sintetizá-lo: vanguarda ou kitsch? Porém, as guerras teóricas dos anos 80 mudaram radicalmente o panorama. Com as abordagens desconstrutivas e pós-estruturais, isto é, com o tópico da “morte da literatura”, as oposições entre alta e baixa cultura, ruptura e permanência, centro e periferia tornaram-se insustentáveis. As guerras teóricas recentes mostram que, em última análise, a literatura comparada fornece teorias da guerra e que, ao mudar o cenário e o objeto das lutas (não mais o indivíduo, não mais o valor, não mais a disciplina, não mais a nação), o específico da literatura comparada deve sua passagem ao ato, sua dissolução, sua transgressão, seu movimento ao exterior de si.
Não é fortuito que comparativismo e guerra se vejam assim associados. A dimensão universal, central ao comparativismo, só se consolida, de fato, manu militari, no início do século XX. Sobre esse tópico Edward Said escreveu um clássico: Cultura e imperialismo. Porém, esse movimento de reorganização dos mapas geopolíticos e acadêmicos trouxe consigo uma nova definição do próprio objeto. A arte passou a perseguir uma beleza de choque, convulsiva, que, não raro, se apropria de elementos primitivos para aprofundar a percepção e aguçar a sensibilidade. Uma vez alcançado, porém, o conceito de universal muda constante e conseqüentemente. A estética dadá se assumirá como detentora de muitas nacionalidades/racionalidades imultâneas, ao passo que o surrealismo associará suas intervenções ora ao universal particularizado (o stalinismo) ora ao universal em transformação constante (a revolução permanente).
Após as análises frankfurtianas sobre a dialética da modernidade, compreende-se melhor até mesmo aquilo que Adorno ou Horkheimer teriam dificuldade em aceitar, isto é, que um saber sem ilusão é uma pura ilusão e que não existe mito puro, como nos diz aliás Michel Serres, a não ser o saber puro de todo o mito. Fundem-se aí, em conseqüência, a poesia e o mito, o cânone e seu outro, dimensões que, para serem analisadas, passam a requerer novos conceitos operacionais, tais como, o sagrado e o profano, o heterogêneo e o homogêneo.
Diríamos, então, que aquilo se apresenta irredutível a toda assimilação e detentor, portanto, de algum tipo de aura (o assassino, o louco, o poeta maldito) define-se como heterogêneo. Narra-se nas vidas infames de Foucault e pratica-se para além dos marcos da profissão e da disciplina. Por que, afinal de contas, deveríamos ser probos se Marx viveu de bolsas, Nietzsche ou Kierkegaard se recusaram a atender ao bem comum, Blanqui ou Wilde foram confinados a uma cela e Maiakóvski ou Benjamin encontraram a via ao exterior no suicídio? Contrária à economia do dom, heterogênea, desvenda-se pelo contrário, em todos esses casos, como pano de fundo, a sociedade homogênea, de intercâmbio e acumulação, para a qual toda a heterogeneidade se transforma em subversão.
Tais princípios de heterogeneidade arrancam a arte do isolamento autoconfiante e da satisfação indulgente. A literatura não é, sob essa perspectiva, ou melhor, não pode ser uma reles carta de burguesia ou distinção. A literatura situa-se, portanto, para além de uma simples recondução, populista e redistributiva, dos bens simbólicos, mas, ao mesmo tempo, posta-se ainda para além do refúgio onde se acoberta e monopoliza toda a distinção social.
Sabemos que, como toda disciplina, a literatura comparada depende, visceralmente, do desenvolvimento de lutas mais amplas; daí que o fim da Guerra Fria tenha ferido seu estatuto universalista e afete, em conseqüência, o estudo da arte e da literatura. A pax americana desta última década apresenta-nos, com efeito, um novo avatar da guerra: a luta por megafusões. Não seria, aliás, o pluralismo acadêmico um sintoma particular de megafusão disciplinar? É provável. Mas para que melhor se entenda o que quero dizer, permitam-me esquematizar o processo de fusões a que, na falta de melhor rótulo, chamamos modernidade.
Tomando nossa região como contexto, creio poder aventar uma primeira onda de luta e guerra, a do Paraguai, que, em cada tradição nacional envolvida, profissionaliza os exércitos e politiza as forças armadas, cunhando até o gentílico regional deste Estado que hoje os acolhe: barriga-verde. A ela se segue uma segunda guerra ou onda de modernização, protagonizada dessa vez pelo capitão de indústrias que capitaliza para si, dissolvendo-a, a sociedade produzida pela onda precedente. A primeira onda guerreira declara uma tríplice aliança, uma lei comum para os países da região. A guerra posterior, de modernização industrial, cinde-os e em conseqüência os separa, estimulando a concorrência entre si, porém eufemizando também a acumulação e, para tanto, lança mão do perigo externo e de todos os fantasmas do contágio por contato. É a dilemática guerra antropofágica (tupy or not tupy) degradada, muitas vezes, a clichê eufórico: o de que todo modernismo é, por força, nacionalismo quando não protecionismo.
O período pós-ditadura, no entanto, simula ter ultrapassado esses conflitos, harmonizados agora sob uma espécie peculiar de pax latino-americana, o regime de intercâmbios do Mercosul. É necessário, porém, mais do que nunca, interpretar esse período como modulação diferencial da guerra nômade. Trata-se, com efeito, da passagem do mercado de bens para o mercado de capitais. Como a renda dos investimentos produtivos a longo prazo é menor que o lucro que se obtém com as aplicações a curto prazo, a própria fusão estratégica do capital monetário aparece agora subordinada à fusão estratégica do capital fictício. A poesia e o mito são, como sabemos, a chave dos príncipes da moeda e suas engenharias geopolíticas.
A poesia, disse-nos Mallarmé, remunera os defeitos das línguas. Na guerra disciplinar em curso, um mero avatar da guerra simbólica contemporânea, a literatura comparada visa remunerar os defeitos das particularidades. Para tanto, busca ir além do particular, regional ou nacional, tendo que lutar agora com a emergência de novos saberes, via de regra, comprometidos com o inves timento a curto prazo, empenhados eles mesmos em ultrapassar o próprio conceito de universal. São os estudos da cultura, já praticados na Inglaterra pauperizada pelo fim do colonialismo, mas globalizados, irreversivelmente, pela nova ordem mundial.
Para muitos de nós, a luta antitra dicionalista dos anos 70 traduziu-se na premissa anti-racionalista, para não dizer antiteológica, da intenção do autor. Para criticá-la e ultrapassá-la, atravessamos o estruturalismo dogmático e o pós-estruturalismo desconstrutor, promovendo a semiose ilimitada, a função leitor e uma autonomia radical da leitura. Porém, permaneceu a atitude anti-, o que pressupõe sempre o dilema, a duplicidade, quando não o sistema. Talvez a mudança mais espetacular que vem se operando em nossa disciplina seja a de modificarem as estratégias de guerra.
A alta modernidade construiu, eufórica, sólidas equações guerreiras, contidas, entretanto, em um campo específico, o que tornava a luta uma espécie de torneio ou cerimonial, uma festa, enfim. A baixa modernidade, por sua vez, não apenas cansada, mas radicalmente exausta de sua própria construção, defende a igualdade de todos perante as normas ao preço de transformar a luta em confrontos constantes e contínuos, choques mortíferos de economia generalizada e disseminação proliferante, que apagam as fronteiras entre o positivo e o negativo, o puro e o impuro.
Certamente não é um consolo, mas a situação contemporânea, salvo melhor juízo, já não se ajusta ao dilema; ela não deixa de desdobrar inesperadas variações da situação precedente. Não é essa, por acaso, uma estratégia comparatista radicalizada até o ponto de não mais a reconhecermos como familiar a nossas práticas? Não essa, precisamente, a fortuna atual de um debate fundador como o de Picard/Barthes? A entrada do modelo lingüístico estruturalista abriu, de fato, a porta a novos e incessantes desvios do modelo eugenicamente literário defendido por Picard e fundado em “l’intention claire et lucide” do texto original. Mas se hoje, a distância, podemos ver em Barthes o partisão de um recepcionismo à outrance, não é menos válido reconhecer, na retomada desse debate, um curioso retour à l’ordre que nos clona um Barthes cada vez mais parecido com Picard, e, portanto, expurgado de sua primitiva crítica culturalista.
Conquanto estejamos num congresso que articula a literatura a instâncias ético-políticas, as dos estudos culturais, é bom frisar que, para a atual gestão da Abralic, o ético-político não é um momento instituinte do social. Admitimos, com efeito, uma evidente expansão do político às custas do social, porém admitimos também que essa politização, na medida em que implica a produção contingente do vínculo social, aponta sempre para um descentramento da sociedade em relação a si própria, donde aquilo que torna possível a literatura e a política (a autonomia e contingência dos atos de instituição) é aquilo mesmo que as torna, simultaneamente, impossíveis.
É evidente que definir uma possibilidade em termos de sua impossibilidade constitui heresia heterodoxa para toda perspectiva transcendentalista, mas o fato é que o ato institucional falta sempre em seu lugar e é essa característica de indecibilidade que legitima o caráter democrático infinito.
Se, no tocante a questões estéticas, um julgamento de valor se quer não-ambíguo é porque, conjuntamente ao juízo estético, ele aplica algum princípio normativo, impossível de ser fornecido pela noção pluralista de tolerância, princípio este que nos permitiria discriminar o que deve do que não deve ser aceito. Se essa norma existisse universalmente e, mais do que isso, se fosse pacificamente aceita, estaria resolvido nosso problema e poderíamos voltar felizes para casa. Entretanto, o julgamento transcendentalista não pode ser bem-sucedido já que, se ele for capaz de traçar uma fronteira inequívoca entre o canônico e o anticanônico, é porque, previamente, identificou essa fronteira com uma outra, inconfessa quando não inconfessável, que separa o (eticamente) aceitável e o (eticamente) repudiável, em outras palavras, uma fronteira que hierarquiza instituição alta e baixa.
É pertinente, portanto, discriminar a reivindicação modernista de diversidade cultural, de fundo nacional-populista, da postulação pós-modernista de diferença cultural, de extração pós-colonial ou global.
A diversidade é uma categoria da literatura comparada que, no Brasil, compreende um arco que vai de Gilberto Freyre a Oswald de Andrade, incluindo, obviamente os sucessores como Darcy Ribeiro. A diferença, entretanto, analisa no interior dos estudos culturais os processos de significação por meio dos quais as camadas culturais tendem a se diferenciar entre si e na era da modernidade-mundo e do internacional-popular. Enquanto a diversidade cultural legitima enunciados, a diferença cultural discrimina enunciações. Tributária, em conseqüência, do conceito letrado, urbano, funcionalista e, em última análise, dicotomicamente nacionalista de cultura, a tese racionalista da diversidade, longe de fundar a tolerância ou o progressismo pluralista da nação moderna, dissolve, belicamente, o significado desses conceitos, porque, se aquilo que aceito se identifica àquilo que moralmente aprovo, não estou tolerando, a rigor, coisa alguma. Quando muito, estou redefinindo os limites de uma porção perfeitamente intolerante, além de imaginariamente narcísica, que rebaixa a contingência imanente da instituição à espontaneidade transcendente de uma intuição.
No que tange à questão estética, portanto, cabe então dissociar o julgamento de valor de toda premissa ética, em virtude da necessidade de uma sociedade funcionar de acordo com um grau relativo de diferenciação interna para, precisamente, preservar o espírito democrático.
Não devemos esquecer que uma sociedade que tentasse intransigentemente impor uma concepção unívoca e estrita do bem estaria, constantemente, à beira da guerra. Mas, por esse mesmo motivo, a saída não é o laissez-faire. A tolerância não pode ser irrestrita já que a intolerância funciona como condição de possibilidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidade da própria tolerância. É redutor, portanto, fazer a instância de avaliação descansar em modelos concretos, tidos como representantes da alta literatura. O valor que eles encerram é antes um ponto vertiginoso, acéfalo e vazio, fruto de uma decisão que mais se parece com a loucura do que com o bom senso, que é secreta sem ser privada, que é irredutível ao espaço público e à publicidade mas, contudo, abre-se constantemente à possibilidade da politização como promessa irrealizável no devir.
Quando, em 1936, já se discutia, no Brasil, a força do projeto moderno e o limite dos campos da literatura e a sociologia, uma crítica, uma mulher, se perguntava se não se teria ido longe demais na revolta vanguardista, recomendando que, entre a atitude hierática e o relaxamento, devia haver um meio-termo. “O caos pode ser um início ou um fim”, dizia Lúcia Miguel Pereira. Hoje, entretanto, no retorno feminino desse mesmo conselho, cabe resgatar o caos fecundo de outra mulher, Clarice Lispector, e argumentar que a conversão e a institucionalização são apenas momentos de estabilização de algo confuso e caótico, donde o próprio da literatura não é a responsabilidade da forma, no sentido de correspondência entre um sujeito transcendental e algo exterior a si, mas uma forma irresponsável, que não responde nem corresponde aos imperativos de identificação, isto é, uma forma em que o outro ainda permanece inapropriável e esquivo aos mecanismos identificatórios.
Os bárbaros apostamos no caos porque ele é, ao mesmo tempo, um risco e uma chance, um fim, porém, também um início, em outras palavras, um “grande uivo eterno” em que se mesclam, de maneira indecidível, o possível e o impossível. Os bárbaros também temos nosso Mallarmé, aquele do leito terminal que, diante das janelas e antes de Duchamp, deseja que la vitre soit l’art, soit la mysticité porque seu objetivo, não necessariamente pós-utópico, é d’enfoncer le cristal par le monstre insulté/ Et de s’enfuir avec mes deux ailes sans plume/ au risque de tomber pendant l’eternité.
Não há, certamente, em nossa área tarefa mais árdua do que definir em que consiste a operação de comparar e foi, justamente, com vistas a parar com a confusão disciplinar que o Relatório Bernheimer ensaiou uma definição indefinitória:
“O espaço da comparação envolve atualmente comparações entre as produções artísticas normalmente estudadas por diferentes disciplinas; entre várias cons truções culturais dessas disciplinas; entre tradições culturais ocidentais; tanto as culturas altas e populares quanto as não-Ocidentais; entre as produções culturais anteriores e posteriores ao contato de populações colonizadas; entre construções de gênero definidas como femininas e aquelas definidas como masculinas ou entre orientações sexuais definidas como normais e essas outras definidas como gay; entre modelos raciais e étnicos de significação; entre articulações hermenêuticas de sentido e análises materialistas de seus modos de produção e circulação; e muito mais.”
Nessa heteróclita relação, como na enciclopédia chinesa de Borges, o que espanta não é a extravagância de certas proximidades, mas a impossibilidade de um espaço onde essas variedades possam ser próximas umas das outras. É o próprio espaço comum do debate, o espaço literário, que sai arruinado, e não apenas a incongruência da própria enumeração, tão impossível quanto infinita. Esse espaço literário revela ser não mais um instrumento dócil aos projetos hu manistas, mas um espaço vazio e incontrolável por definição, em que a experiência literária exibe sua realidade inobjetiva ou, para dizê-lo com Foucault, “un écart plutôt qu’un repli, une dispersion plutôt qu’un retour”.
Raúl Antelo
ensaísta e professor de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina, presidente da Abralic durante o biênio 1996-98
Texto extraído do discurso de abertura do VI Congresso da Abralic
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j’ai lu cette article à 29 setembre 2023.