Encontro com um poeta
(Foto: Bob Sousa)
Muito além de servir de mote a um sem-número de atividades lúdicas adotadas pelo teatro-educação, o argumento que o segundo chefe Horácio, o lanceiro, defende com engenho e poesia no episódio “As sete maneiras de usar a lança”, de Os horácios e os curiácios, de Bertolt Brecht – “Vou escalando a serra. A minha lança/ é o meu bastão. Ela é o meu terceiro pé/ O que não dói/ O que não cansa/ Em uma coisa existem muitas coisas. (…) Minha lança já foi galho de árvore/ E volta a ser. Com ela eu cruzo a fenda/ Em uma coisa existem muitas coisas” (na tradução de Mário da Silva) –, pode ser aplicado integramente a certas encenações teatrais por meio das quais o espectador tem acesso a um pluralismo de significantes que irradiam os mais diversos significados, caso da montagem de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, em cartaz no Tuca até o próximo dia 24 de julho. Há muitos objetos históricos e conceituais implicados no espetáculo em questão. E há inúmeros objetos formais implícitos nele também. Explorados, aliás, com engenho e poesia por todos os artistas envolvidos nessa criação. Como convém a um poeta do porte de João Cabral.
O peso maior que recai sobre a obra, e que muitas vezes se converte em um fardo difícil de carregar, é a fama lograda pela quarta montagem do texto, que estreou em 1965, também no Tuca, e apresentou-se, no ano seguinte, no Festival Internacional de Teatro de Nancy, na França. O grande êxito obtido por essa versão acabou por relegar ao esquecimento as montagens anteriores. A primeira, em 1958, em Belém do Pará, adaptada pelo professor de filosofia Benedito Nunes, consagrada no 1º Festival Nacional de Teatro de Estudantes, realizado no mesmo ano em Recife, sob a direção de Paschoal Carlos Magno. A segunda, produzida por Cacilda Becker, em 1960, em São Paulo, para inaugurar o projeto de teatro experimental da atriz, tendo Walmor Chagas no elenco e cenografia de Flávio Império. Mal-recebida pela crítica e pelo público, aliás. A terceira, ocorrida com sucesso em 1963, sob a direção de Luiz Carlos Maciel, na Escola de Teatro da Universidade da Bahia, com texto de apresentação assinado por Glauber Rocha. Apesar da recepção calorosa que a peça e a encenação obtiveram nas montagens de 1958 e 1963, é a versão de 1965 que se tornou “histórica”, dela emanando uma espécie de aura de clássico absoluto – seja por ter tornado popular a poesia de João Cabral, seja pela música do então compositor estreante Chico Buarque, seja ainda por seu contexto sócio-histórico, de heroica resistência à ditadura civil-militar instalada no país em 1964 – que enternece os espectadores mais velhos e os historiadores de teatro e alimenta a memória afetiva de quem, inclusive, não a assistiu.
Pois bem, a homenagem à emblemática experiência de 1965 está na base da encenação atual. Entretanto, mais do que ficar no registro meramente encomiástico, a grande qualidade do trabalho de Elias Andreato e Marco França, respectivamente, os diretores cênico e musical do espetáculo, é extrair da obra, por meio de uma sensível compreensão de seus principais traços estilísticos e formais, nem sempre fáceis de virem à tona, o inequívoco vigor que ela ainda conserva. Investir na forma é o grande achado de um espetáculo “executado” muitíssimo bem por todos os intérpretes e músicos presentes no palco. Investir na forma, nesse caso, é ir ao encontro da poesia de ritmo metálico e plena de construções cerebrais de João Cabral de Melo Neto, que, pouco antes de conceber o hoje famoso “auto de Natal pernambucano” – a pedido da filha do amigo Aníbal Machado, Maria Clara Machado, que, desde o Natal de 1953, quando criou O boi e o burro a caminho de Belém, sua primeira peça infantil, vinha procurando um outro auto natalino para encenar em seu pequeno teatro O Tablado, mas acabou não montando o texto por achar difícil o resultado da encomenda –, escreveu o ensaio “Da função moderna da poesia”, em que defende: “Embora o que se costuma chamar de ‘poesia moderna’ seja uma coisa multiforme demais, não é excessivo querer descobrir nela um denominador comum: seu espírito de pesquisa formal”.
O poeta afastou-se do caráter confessional da geração de 1945 da qual faz parte, mostrando-se avesso e dizendo não, fosse ao automatismo do surrealismo, fosse à chamada “inspiração”, que ele tanto reprovava. Os sentimentos íntimos e as questões sobre “estar-no-mundo” não lhe interessavam; o que valia para ele era o sentido consciente da ordenação das palavras e a luta contra o acaso, que fariam despertar no leitor não as emoções baratas que o enredam e aprisionam, e, sim, a razão e a inteligência emancipadoras. Nesse sentido, o tratamento formal dado por João Cabral à Morte e Vida Severina muito se assemelha à técnica por meio da qual Graciliano Ramos livra seus personagens, igualmente nordestinos sofridos, de serem alvo da comiseração mais inútil por parte do leitor. Inútil e hipócrita.
Formalmente, como apontam a poeta Marly de Oliveira, no prefácio das obras completas de João Cabral de Melo Neto para a editora Nova Aguilar, e o pesquisador Fabio Freixieiro, no livro Da razão à emoção, o auto de Natal presta homenagem (alguns pesquisadores irão complementar “em chave de paródia”) às várias literaturas ibéricas, o romancero e a poesia primitiva espanhola, reunindo em um todo coerente e coeso materiais de formatos e procedências diversos. Vejamos alguns exemplos. Os monólogos de Severino usam os heptassílabos e a assonância do romance ibérico (“Estava a bela infanta, no seu jardim assentada/ Com o pente de ouro fino, seus cabelos penteava”, Senhas de esposo; “Como há muitos Severinos, /que é santo de romaria,/ deram então pra me chamar/ Severino de Maria”, Morte e Vida Severina); a cena do Irmão das Almas faz referência explícita a uma balada catalã; o episódio da mulher da janela evoca um poema narrativo em português arcaico, apropriado pelo folclore pernambucano; a conversa entre Severino e Mestre Carpina alude às antigas disputas poéticas dialogadas de origem provençal, que na versão galega de que João Cabral se serviu ganhou o nome de tenção. Já em sua macroestrutura, a peça deixa os velhos autos de Natal europeus serem penetrados pela poesia pastoril, vinda de Portugal e introduzida no Nordeste brasileiro no século 16, com a qual estabelece uma relação de tempos em tempos parafrástica: “Pastoras, belas pastoras/ Que na relva estais deitadas:/ Descansais e não sabeis/ Que a luz do céu é chegada?”; Loa de pastoril pernambucano; “Compadre José, compadre,/ que na relva estais deitado:/ conversais e não sabeis/ que vosso filho é chegado?”, Morte e Vida Severina.
A despeito de seu conhecido repúdio à música em geral e à musicalidade do verso, em especial, João Cabral investe, na obra, em um tipo de ritmo que se destaca e confere à palavra, falada ou cantada, um caráter de pura performatividade, reconhecendo a “parceria” que seu antípoda, o músico Chico Buarque, estabeleceu com sua métrica na terceira versão do espetáculo (a sugestão de transformar o auto em um musical partiu de Silnei Siqueira, que, tendo visto a malograda montagem produzida por Cacilda Becker, achava o texto árido demais):
A coisa extraordinária que eu encontrei na música de Chico, baseada nos versos de Morte e Vida Severina, foi um respeito integral pelo verso em si. A música segue cada verso, no ritmo total. A música segue cada ritmo, crescendo ou não, de cada parte do poema. Eu tenho a impressão que é o único caso que eu conheço de uma música que saiu diretamente do poema, e não uma coisa sobreposta ao poema… Ele pegou o texto, respeitou o texto e, com o talento extraordinário dele, fez uma música que eu considero inteiramente apropriada ao texto.
Duas anedotas cabem contar aqui. Uma a respeito da controversa relação do poeta com a arte da música. Murilo Mendes não se furtou a ironizar o amigo, afirmando que foi com o auto que João Cabral aproximou-se “do canto, da musicalidade que sempre quis evitar”. A outra trata da dúvida que o poeta expôs ao compositor Chico Buarque: por que ele não teria incluído na canção “Todo o céu e a terra lhe cantam louvor” os versos “Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto celebram os sociólogos do lugar”? Seria pela crítica que tais versos faziam a Gilberto Freyre? Chico prontamente respondeu que não se tratava disso. O único motivo seria a expressão “sociólogos do lugar”, para o compositor, “imusicável”.
O motivo desta longa introdução não é outro senão destacar a qualidade da execução formal de texto e música por parte dos atores e cantores que fazem parte da montagem de 2022, oriundos, vale destacar, de várias cidades brasileiras – na maioria, nordestinas – o que constitui por si só um bem-vindo, e necessário, princípio para a formação de elencos em um país multicultural como o nosso. Naturalmente, o destaque vai para aqueles mais expostos em cena – Dudu Galvão (Severino), Jonathan Faria (Mestre Carpina), Badu Morais (Mulher da Janela), Jana Figarella (Mulher do Funeral), Patricia Gaspar (Primeira Cigana), Andréa Bassitt (Segunda Cigana), João Pedro Attuy (Primeiro Coveiro) e Raphael Mota (Segundo Coveiro) –, embora os retirantes vividos por Beatriz Amado, Fernando Rubro, Gabriella Britto, Ivan Vellame e Pablo Áscoli também sejam interpretados com a mesma energia e talento. Do fundo do palco, os músicos Beatriz França (contrabaixo acústico e baixo elétrico), Bruno Menegatti (rabeca e violão), Dicinho Areias (sanfona), Raphael Coelho (percussão) e Ricardo Dutra (viola e violão) recobrem as cenas com um tipo de musicalidade que, para os espíritos mais sensíveis, fala diretamente à alma brasileira. A performance total também é igualmente bem executada pelo cenário de Elifas Andreato, o figurino de Fabio Namatame, o desenho de luz de Elias Andreato e Junior Docini, o desenho de som de Marcelo Claret e a direção de movimento de Roberto Alencar.
A formação desse grupo é um verdadeiro achado, porque todos atuam em um espetáculo musical sui generis, encarnando o imemorial espírito grego da mousiké (base das tragédias, que muitos críticos, após a encenação de 1965, identificaram como a força-motriz do texto), cujo conceito se refere não somente à arte dos sons, como também à poesia e à dança simultaneamente. O que todos fazem em cena ou fora dela é primeiramente compreender e depois transmitir à plateia que o texto de João Cabral não é meramente um veículo de informações referenciais (um retrato fiel do triste destino do homem do campo); antes, ele é pretexto para que toda uma cultura músico-performativa brasileira, de raiz ibérica e semente greco-latina, penetre pelos olhos e ouvidos do espectador, despertando-lhe a razão e a inteligência, como queria o poeta. A primeira camada, a do realismo sociológico, é atenuada pelo tom alegórico e pela linguagem poética, ambas a serviço de uma grande ironia formal, a perspectiva materialista da obra, que inverte parodicamente a função do auto natalino: em vez de se celebrar o nascimento de um deus, lamentam-se as agruras dos homens. Às voltas com a injusta tarefa de morrer, porque outros homens os submetem à tirania.
Elias Andreato e Marco França (responsável também pelos arranjos, aboios e lamentos) dão à performance uma dimensão múltipla, respeitando a dramaturgia musical no que ela tem de pedregosa e seca. A emoção que eles extraem dos vários signos em cena é sempre estética, nunca genuinamente psicológica, evocando a defesa da afeição poética que faz Paul Valéry:
Um poema sobre o papel nada mais é do que uma escrita submetida a tudo o que se pode fazer de uma escrita. Mas, entre todas as suas possibilidades, existe uma, e uma apenas, que coloca finalmente esse texto nas condições em que ele adquirirá força e forma de ação. Um poema é um discurso que exige e que provoca uma ligação contínua entre a voz que existe e a voz que vem e que deve vir. E essa voz deve ser tal que se imponha e excite o estado afetivo do qual o texto seja a única expressão verbal.
Por fim, há que se celebrar o fato de o espectador brasileiro ter à disposição um espetáculo de grande beleza, intensidade épica e penetrante significado social. Um musical que escapa à lógica da indústria cultural e constitui uma espécie de oratório profano, roçando com muita originalidade as franjas da tragicidade helênica. E por fim também, há que se imprecar contra o que nos marca como nação: o movimento circular da tragédia, aquilo que não tem começo nem fim. No mesmo ano em que Morte e Vida Severina foi concebido, 1955, criava-se a primeira liga camponesa do Nordeste, logo transformada no símbolo máximo da luta pela reforma agrária. Quase sete décadas depois, a luta pela posse e o uso da terra continua renhida, embora haja aqueles que não se acanhem em falar da modernidade do agronegócio. Tudo é uma questão de impacto estético e essência trágica, afinal.
MORTE E VIDA SEVERINA
TUCA/PUC-SP (470 lugares)
Rua Monte Alegre, 1024 – Perdizes – São Paulo
Sextas e sábados, às 21h; domingos, às 19h
Ingressos: R$ 80,00 (sextas-feiras); R$ 100,00 (sábados e domingos)
Duração: 90 minutos
Classificação: 12 anos
Até 24 de julho
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, onde atualmente é diretor.