Em busca de um teatro degenerado

Em busca de um teatro degenerado

Fotos: Bob Sousa

Primeiro mote

“Lavar para me sujar/Isso é sujar-me em verdade/lavar para a sujidade/fora melhor não lavar:/de que serve pois andar/lavando antes que mo deis?/Lavai-vos, quando o sujeis/e porque vos fique o ensaio,/depois de foder lavai-o,/mas antes não o laveis”. Gregório de Matos, Décimas.

O meu lado homem, um cabaré d’escárnio é o recital inclassificável que o ator Luís Mármora está apresentando no Instituto Cultural Capobianco, ao lado dos músicos Luiz Gayotto (piano e violão), Ernani Sanchez (guitarra), Lelena Anhaia (baixo), Simone Julian (sopro) e Nina Blauth (bateria). Concebido pelo próprio intérprete, o espetáculo é baseado nas Cartas de um sedutor, de Hilda Hilst, e conta com direção artística e iluminação de Marcelo Romagnoli, direção musical de Luiz Gayotto, figurino de Marichilene Artisevskis e cenografia de Rafael Bicudo. Mármora, Gayotto e Romagnoli assinam juntos a adaptação e o roteiro.

Segundo mote

“Gotas/caem em golpes/a terra sorve/em grandes goles/chuva/que a pele não enxuga/a caminho de uma ruga/água viva/água vulva”. Alice Ruiz, Gotas.

A experiência se mostra avessa à classificação por estar organizada em torno da prosa improvável, despudorada, impenetrável e bela de Hilda Hilst. Se como dramaturga, a escritora concebeu uma obra que Anatol Rosenfeld entendeu ser “uma espécie de unicórnio dentro da dramaturgia brasileira”, como prosadora, Hilda não deixou de produzir menos estranhamento e torpor. Assim, O meu lado homem, um cabaré d’escárnio priva de uma grande qualidade: fazer uso de uma palavra ambivalente, que se divide entre a “metafísica” e a “putaria das grossas”, como questiona o personagem de Contos d’escárnio – textos grotescos, a outra experiência em prosa da autora que também serve de mote ao recital, na qual parte de seu título, inclusive, foi inspirado.

Terceiro mote

“Não sei onde vi um queijo,/Que despertou-me desejo/De logo dar-lhe um beijo!/Comprido e não redondo,/Feito em forma de pombo/Apalpei-o pelo lombo/E quando eu quis cortá-lo,/Gritou o queijo: Badalo!/Toca a rebate! Fá-lo/Já depressa, quando antes/Que diante de mim – pedantes/Sinto em forma de amantes!”. Qorpo-Santo, Um queijo.

Os eventos narrativo-descritivos de Cartas de um sedutor servem de mote à personagem que Luís Mármora encarna no palco, Sápata Magáli, a diva de um cabaré transgênero sobre o qual paira uma atmosfera que misturas os registros do confessional, do grotesco, do sentimental e do metalinguístico. De tempos em tempos ela interrompe o encadeamento dos episódios e das declarações relatadas, na prosa de Hilda, por um homem a sua casta irmã Cordélia, para cantar algumas canções, também entremeadas por pequenas conversas com os músicos. De cabaret, como se sabe, era chamado qualquer bar ou café parisiense, na segunda metade do século XIX, que servisse bebidas alcóolicas e refeições. Posteriormente, o nome foi dado a um determinado tipo de espetáculo que oferecia “atrações variadas” em seu cardápio. O meu lado homem, um cabaré d’escárnio não faz por menos, provendo a plateia de uma genuína mistura de deboche, autenticidade, lirismo e grossura.

Quarto mote

“– Mui decentes eu não acho/teus vestidos, minha prima: são altos demais embaixo/são baixos demais em cima!”. Belmiro Braga, [Mui decentes eu não acho].

Fundamental para que o unicórnio fronteiriço ao ornitorrinco – que constitui a forma, afinal, da experiência – se revele para nós um animal não tão arisco, nem tão amigável também, diga-se de passagem, é a atuação de Luís Mármora, um dos atores mais talentosos de sua geração, sem sombra de dúvida. Que usa a voz como instrumento de uma expressividade própria, autônoma, incorrendo naquele tipo de performatividade atraente de ouvir, e difícil de explicar. A voz “que continua” de que fala Guimarães Rosa.

Quinto mote

“O velho Tomé de Souza,/Governador da Bahia,/Casou-se, e no mesmo dia/Passou a pica na esposa./Ele fez como a raposa,/Comeu na frente e atrás,/Depois indo até o cais/Onde os navio trafega,/Enrabou o padre Nóbrega./Os anos não voltam mais!” Zé Limeira, [Os anos não voltam mais].

É por meio dessa voz que as palavras lúdicas, lúbricas e lúcidas de Hilda Hilst chegam aos ouvidos do espectador. E penetram em ondas mais fundas lá onde devem penetrar: na intelecção movediça, pronta a virar sensação; na percepção mais fluida, doida para se precipitar em razão. É como se o oráculo-Hilda por ora tivesse encontrado sua pitonisa ideal, provocando um furor sexual entre o deus do teatro e as musas da eloquência e da poesia lírica, respectivamente. Dioniso copulando com Calíope sem tirar as mãos, em momento algum, do sexo de Erato.

Sexto mote

“Que tens, caralho, que pesar te oprime/que assim te vejo murcho e cabisbaixo, sumido entre essa basta pentelheira/mole, caindo pela perna abaixo?/Nessa postura merencória e triste/para trás tanto vergas o focinho,/que eu cuido vais beijar, lá no traseiro,/teu sórdido vizinho!”. Bernardo Guimarães, Elixir do pajé.

Bandalheira, erotismo e erudição aqui se misturam, porque Hilda Hilst nunca esteve só de brincadeira! Talvez por isso se possa falar do encontro em cena dos avatares de Brecht, Artaud e Dercy Gonçalves. Convivendo sem pudor. Quando o ardor da crueldade está em vias de chamuscar a cena, o racionalismo do teatro dialético é chamado a resfriá-la, mas fracassa também porque de tempos em tempos a perereca da vizinha escapa da gaiola.

Sétimo mote

“Na França, pescoço é cou/(como anda tudo a esmo!)/No Japão, Ku é ministro,/No Brasil, cu é cu mesmo…” Barão de Itararé, Na França pescoço é cou.

O meu lado homem, um cabaré d’escárnio reverencia o velho teatro rebolado em sua vocação bizarra de tratar altas ideias por meio do baixo ventre.

Oitavo mote

“Conos, escravos meus, e meus senhores;/O que mais ergue as pontas do bigode,/menos levanta o facho dos amores./Ninguém nesta impotência aqui me acode;/Recolha espinhos quem colheu mais flores;/Tome no cu – quem fornicar não pode”.Múcio Teixeira, Unde salus?

Não se trata de escândalo, choque ou perversão descontrolados. Ninguém haverá de abandonar o teatro atingido em sua dignidade moral. Há uma espécie de vigilância rigorosa sobre tudo. Controle de efeitos sensoriais e intelectivos. Controle de desqualidade intencional. Em terra brasileira de musical norte-americano, quem desafina tendo Hilda Hilst por companhia é rei!

Nono mote

“Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas/detêm a mão ansiosa: Devagar./Cada pétala ou sépala seja lentamente/acariciada, céu; e vista pouse. Beijo abstrato, antes do beijo ritual, na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado”. Carlos Drummond de Andrade, Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas.

O meu lado homem, um cabaré d’escárnio é teatro disforme, metade experimentação, metade espetáculo; híbrido de brincadeira e de sarau. Degenerado como é bom que seja, em meio a tanto discurso que se leva muito a sério.

Décimo mote

“Araras versáteis. Prato de anêmonas./O efebo passou entre as meninas trêfegas./O rombudo bastão luzia na mornura das calças e do dia./Ela abriu as coxas de esmalte, louça e umedecida laca/E vergastou a cona com minúsculo açoite./O moço ajoelhou-se esfuçando-lhe os meios/E uma língua de agulha, de fogo, de molusco/Empapou-se de mel nos refolhos robustos./Ela gritava um êxtase de gosmas e de lírios/Quando no instante alguém/Numa manobra ágil de jovem marinheiro/Arrancou do efebo as luzidias calças/Suspendeu-lhe o traseiro e aaaaaiiiii…/E gozaram os três entre os pios dos pássaros/Das araras versáteis e das meninas trêfegas.” Hilda Hilst, Araras versáteis.

Ao final da apresentação, alguns recados foram dados: a flor do lodo também é delicada; a expressão licenciosa também tem suas filigranas; a literatura de Hilda Hilst ainda está por ser descoberta; a uma cena paulistana vai muito bem ser obscena.

O meu lado homem, um cabaré d’escárnio

Onde: Instituto Cultural Capobianco – Teatro da Memória (Rua Álvaro de Carvalho 97, São Paulo )
Quando: Até 9 de março; Terças e quartas, às 21h
Quanto: Entrada franca
Info: (11) 3255-8065.

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