E se amputassem a poesia? Corpo e linguagem em um poema de Paulo Ferraz
O poeta Paulo Ferraz, autor de 'Vícios de imanência' (2018), entre outros (Foto: Divulgação)
Vícios de imanência (2018) é o quarto livro de Paulo Ferraz. Nele, o rigor, o projeto poético que questiona os limites do poema enquanto objeto estético em tensão com a experiência, sobretudo urbana, dão continuidade à obra anterior do poeta, como tão bem apontam Tarso de Melo, na orelha, e Renan Nuernberger, no belíssimo posfácio que situa o livro no conjunto da obra do poeta e, ao mesmo tempo, por meio de uma leitura atenta e escuta sensível dos versos de Ferraz, dá a ver a envergadura do livro, tanto pelo que carrega das cicatrizes da história, reabrindo feridas, ou impedindo-nos do esquecimento, quanto pela forte presença da cena citadina, conforme eu também já havia mencionado em ensaio anterior, à propósito de De novo nada.
O leitor trafega por momentos líricos, reunidos, em especial, na segunda parte, que passam a compor nessa mesma experiência, as memórias, as madeleines que preenchem de delicadeza e inusitadas formas a história subjetiva, plasmando-a à vida coletiva em São Paulo, Paris, ou qualquer cidade, numa obra em que a cidade é ela mesma uma jeune fille, por mais velha que seja. Aos olhos deste poeta, a cidade é sempre como uma mulher a ser acolhida pelo abrigo dos versos, pelo agasalho da metalinguagem, mesmo considerando tudo o que a urbe moderna em sua violência e iniquidade também mobilizam na obra de Paulo Ferraz, aspectos que são denunciados.
Ou seja, a cidade é uma musa que a despeito de medusar, seduz, inspira. Eu poderia dizer que é paradoxal essa articulação se ela se apresentasse como contraditória, porém, não é assim que a poesia urbana de Ferraz se coloca em relação à cidade, toma-a, antes, em sua integridade e habita-a até as últimas consequências, da denúncia à festa dos afetos, do abjeto à exaltação da beleza, em suma: a cidade é a pele que recobre o poeta; não uma cidade em específico, mas tantas, numa só derme.
A segunda seção, denominada, justamente, jeune fille, tem oito poemas que pulsam no interior de Vícios de imanência de modo a nos lembrar que, também da vida em si, em sua leveza e multiplicidade, não se pode esquecer. É uma seção bem menor que a anterior e a posterior, porém, em seus oito poemas, a poesia inverte seu sinal de ruínas, é descontinuada por um outro tom sem que este, soe, entretanto, como ruptura.
Os vícios de imanência convertem-se na imanência do vício da linguagem, da vida que pulsa e reivindica os afetos, as fraturas. Imanência não mais da forma em si, mas a do sujeito poético, este é seu vício: a intensidade, em seus diferentes matizes, a paixão e a compaixão, a denúncia e a indignação, a delicadeza do capacho frente o amargo da tortura. O eu-poético alcança momentos de arrefecimento em sobre a sombra (a sombra guarda bem mais que a/memória […]) ou sweet suíte (Que durma no capacho/enquanto durmo em ti). A pacificação da temática, porém, não deve iludir o leitor, já que do ponto de vista formal, os elementos que são caros ao poeta, como a crítica da metáfora, a construção dos versos, seu encadeamento sintático, entre outros aspectos, se fazem presentes tanto quanto nos demais momentos do livro.
Além desses oito poemas, os outros 67 estão divididos em duas partes. Na primeira parte, “para não esquecer”, 29 nove poemas voltam-se sobretudo ao olhar das ruínas da história da ditatura, em movimento que vai do Brasil para o mundo e dele retorna ao Brasil. Aqui o poeta é o “Anjo de Klee”, escova a história a contrapelo, benjaminianamente falando, olhando estarrecido para o esfacelamento da experiência, mas em batalha incansável contra o esvaziamento e a desilusão que ameaçam os relatos, a vida, a transmissão do vivido em verbo. Os 29 poemas atravessam de chofre o leitor que deles não poderá mais se separar. É impossível des-ver, mesmo que se recuse a visão.
Cada um dos versos de “para não esquecer” reivindica e rememora, cobrando da história não só a reparação, mas, como testemunho, o retorno à vida de tantos sobreviventes silenciados pelos fatos, pela dor, pelo imponderável. O testemunho é a volta à existência do sobrevivente, mesmo que este retorno seja dado pelos poemas de um poeta que não viveu essa experiência a não ser na carnadura da sensibilidade e da memória coletiva do país.
A terceira parte, “andar de baixo”, composta por 38 poemas, dentre outros aspectos dá a ver o homem subterrâneo de Dostoiévski, revisitado pelos versos, o que sem dúvida radicaliza a experiência de mergulho nos recônditos do ser porque é no verso que as fissuras da alma ou do mundo ou ambas são expostas, por exemplo, em “Paulo Ferraz decide se matar”, “And therefore I forbid my tears”, em “Amanheço com a esquina atravessada pelo guapuvuru […]) e o contundente “Poética”:
…………………………………[…] Mas a poesia não é um
…………………………………prédio de apartamentos é antes
…………………………………uma ruína arqueológica, lemos apenas
…………………………………a parte que sobreviveu, velhas paredes,
…………………………………velhos alicerces, talvez uma janela
…………………………………do que chamamos poema. Tudo o mais
…………………………………devemos nós mesmos reconstruir
…………………………………(FERRAZ, 2018, p. 81)
Enfim, muito há para dizer de Vícios de Imanência. Concluo este breve texto mencionando o poema de abertura, “e se me amputassem a língua”, dedicado ao amigo do poeta, Fabio Aristimunho Vargas. Para mim, este poema abre muitas possibilidades de leitura da poesia e deste mundo amputado dos sentidos que nos irrompe do asfalto ou das pálpebras. Segundo relatou-me Paulo Ferraz, Vargas e ele começaram juntos a estudar catalão e, em seguida, Fabio seguiu para o basco. Numa das aulas, um senhor de setenta anos ou mais diz ao grupo, “estou aqui porque sou um mutilado de guerra”, “eu perdi a minha língua”.
O poema de Ferraz não está circunscrito a essa experiência, mas o ponto de partida vem da perda de uma identidade, de um desamparo, ou ainda, se quisermos, de um relato de trauma que empobreceu as possibilidades de dizer(se) do mutilado. A partir daí a linguagem (do poema) extrapola fronteiras e a reflexão sobre a língua é também convertida em língua da poesia. Como em João Cabral, a linguagem do objeto se converte em objeto da linguagem. A tensão entre a comunicação poética, aberta e transitiva, e a composição poética, fechada em si, intransitiva, articula-se, na língua, corpo-linguagem-experiência, tal qual uma trama. Em outras palavras, a linguagem é uma experiência que começa também no corpo e a ele retorna inscrevendo sentidos, que se entretecem na língua, atravessam o tempo, o espaço, nomeiam a experiência, recortam o mundo, tangenciam corpo e linguagem.
Esse bordado não é, porém, algo harmônico, mas feito de pontas por onde vazam a impossibilidade do dizer, os sentimentos mais profundos e sua carga de imponderável, amor, dor, gozo, choque. Vejamos o poema:
…………e se me amputassem a língua, não
…………esta – este músculo que trago
…………na boca a se debater salivado
…………entre dentes e palato, bandeirola
…………solta ao vento, serpente semiviva,
…………lesma absurda, mãe da algaravia
……………………..– mas aquela, a que comanda os
……………………..movimentos a outra, alheia à carne,
……………………..a que segura o vento e lhe extrai
……………………..a melodia, a que dota a serpente
……………………..com a seiva da palavra, a que
……………………..confere a lesma a leveza de pássaro?
……………………………………….perderia a carne, o músculo, a bandeirola,
……………………………………….a serpente, a lesma, pois ela, a língua, a
……………………………………….minha língua, continuaria em mim, mas
……………………………………….e se me amputassem essa língua? Essa, a
……………………………………….que é filha do meu primeiro choro, essa,
……………………………………….senhora de mim, oleira que me separou
……………………………………….do outro? E se me amputassem a língua,
……………………………………….se me roubassem o último suspiro em
……………………………………….minha língua, meu antichoro? Como
……………………………………….morrer, se morto já estaria, amputado
……………………………………….de minha língua, amputado de mim?
Amputar a língua seria amputar o desejo. O avesso da vida, morte. Seria como se Orfeu olhasse para trás e mais do que perder Eurídice, fosse ele mesmo tragado pelo Hades. A senhora do primeiro choro sabe que ele é irreversível, é uma ruptura. Tomando de empréstimo a noção lacaniana, pode-se dizer que o primeiro choro é um ato: “O ato inaugura algo novo que não existia antes de seu acontecimento e estabelece um corte entre o que veio antes e o depois. Em um instante de corte – o ato tem sempre essa marca de instituir algo novo”, como diz Nina Leite (2011, p. 35).
Ao mesmo tempo, o antichoro é uma nova passagem ao ato, entretanto, não é reverso como o prefixo anti faria supor, mas diverso, choro e antichoro não são opostos, mas dialeticamente constitutivos da língua, máquina do mundo que se abre. Como lugar de ser para além de lugar de fala, é na multiplicidade da passagem ao ato, em seu transbordamento do simbólico, que o lugar de identificação situa um desejo (a), o desejo.
O confisco da língua pela guerra, pelo êxodo, pelo ostracismo anula a potencialidade que tem o sujeito de desejar e a partir daí nomear seu desejo; anula, ainda, a possibilidade de exercício da vida pública, livremente, a partir do que o institui no mundo, por isso é sentido como uma mutilação. Mas não será mutilação o roubo da poesia por um contexto em que a ameaça do totalitarismo assola?
O poema de Paulo Ferraz também traz à tona, em perspectiva mais ampla de reflexão, a essência do ato poético. Ainda com Nina Leite: “A poesia caminha na contramão da rede de inibições que constitui a língua. E para se fazer necessita de um ato de transgressão, um ato no sentido estrito” (2001, p.37). Nesse sentido, o poema rompe com um estado anterior e abre-se à contingência do múltiplo; a poesia é a oleira que num mundo sombrio e gris guarda nosso choro mais íntimo, nosso silêncio mais profundo e preserva do emudecimento a nossa voz. A poesia fabrica trajetos, seiva, melodias, o voo do pássaro. Se nos amputarem a poesia, mutilados serão nossos corpos e a liberdade se tornará tão inatingível que no transbordamento litorâneo não restará nada a não ser a espuma dos homens, a espuma dos nomes, e os restos de tantas línguas amputadas.
Que o poema de Ferraz inspire seus leitores senão à luta pela retificação das utopias, a uma aventura rumo à máquina do mundo interior, pela via da linguagem, mas também, para além dela, ou antes dela, por aquilo que só choro e antichoro são capazes de dizer, o inaudível eco da experiência a que a poesia, em ato, dá acesso.
Diana Junkes é poeta, crítica literária e professora da UFSCar. Escreve mensalmente a coluna “Musa militante”.