É assim que o mundo acaba, não com um lamento, mas com uma paródia

Este livro foi publicado pela primeira vez em 2008. Quero acreditar que toda experiência de teoria crítica tem algo de sismografia. A escrita emerge de um lugar onde se sentem tendências que podem se tornar hegemônicas nos tempos subsequentes. O fato é que o mundo acelerou nesses últimos quinze anos. Acordos sociais que pareciam sólidos se desmancharam no ar, os antagonismos sociais se tornaram insuportavelmente evidentes. Diante de um sistema de crises conexas que se estabiliza enquanto crise e ganha dimensão global (crise ecológica, demográfica, social, política, econômica, psíquica, epistêmica) o mundo assiste a consolidação de alternativas autoritárias que, em muitos casos, apoiam-se na história de movimentos fascistas nacionais, normalizando formas de violência social aberta que poderíamos julgar até há pouco improváveis.
Nesse horizonte de decomposição social, não foram poucas as análises que insistiram em procurar dar conta das dinâmicas de forte adesão popular a perspectivas fascistas e de extrema-direita como expressões de alguma forma de déficit moral (discurso do ódio), psicológico (ressentimento, frustração) ou cognitivo (crença em fake news, negacionismo, obscurantismo). Em todos esses casos, era como se regressões viessem inviabilizar o funcionamento normal de nossas sociedades em momentos de crise e instabilidade. Não faltou aqueles e aquelas que acharam por bem reeditar o secular conflito da civilização contra a barbárie, das luzes contra a superstição. Melhor teria sido começar por se perguntar o quanto de barbárie existe no interior da civilização e o quanto de superstição é indissociável das luzes. Um pouco de dialética do esclarecimento nesses momentos faz bem à vida e nos teria economizado muitas discussões pretensamente edificantes que só serviram para alimentar nossa ilusão de superioridade moral e intelectual em um horizonte no qual as alternativas de transformação real foram, em larga medida, jugadas para fora do campo dos progressismos. Ou seja, é muito mais cômodo imaginar que apoiadores de extrema-direita são motivados, por exemplo, pelo ressentimento, pois isso garante que teríamos uma superioridade moral em relação a eles, nossa indignação nada teria de ressentimento. Ela seria justa, mesmo que impotente. No entanto, essas leituras que se apoiam na identificação de formas de déficits nos sujeitos que cerram fileiras com o fascismo e a extrema-direita dizem, na verdade, muito mais a respeito da maneira como o observador gostaria de se ver do que do objeto a ser descrito.
A hipótese desse livro passava por recusar tais leituras sobre a ascensão contemporânea do autoritarismo. As discussões sobre processos de racionalização social que operavam de forma “cínica” já tinham sido levantadas por outros autores. Mas esse livro procurou mostrar que a normalização de tal patologia social era fenômeno importante para entender como dinâmicas autoritárias não eram fruto de “regressões” sociais e sim resultados dos modos “normais” de funcionamento dos processos de socialização e individuação. Ou seja, tratava-se de definir o problema da racionalidade cínica como um setor fundamental das teorias sobre o fascismo contemporâneo. Não era possível entender nada sobre o fascismo contemporâneo sem integrar o problema da generalização de modelos de racionalidade cínica.
Seria então o caso de lembrar como a tese da regressão social parte normalmente da crença na ressurgência de alguma forma de arcaísmo como condição para guinadas autoritárias dentro das sociedades de democracia liberal. Essa é uma tese alentadora pois parece nos garantir que as potencialidades de realização de formas democráticas de vida já estariam presentes em nossos processos de modernização social. Não haveria pois razão alguma para critica-los de forma estrutural. Nesse sentido, a tese do cinismo parte, ao contrário, da constatação de que guinadas autoritárias no interior de sociedades de democracia liberal são um fenômeno “normal”. O dito “iliberalismo” é polo constituinte do liberalismo, não seu oposto. A questão real é outra, a saber: Onde o liberalismo permite a emergência de seus “iliberalismos”? Em situações normais, eles aparecem em todo lugar onde estão autorizadas situações de exceção, estruturas duais de legislação, flexibilização de normas. Ou seja, normalmente em colônias, periferias e na violência contra grupos insurretos. Mas em situação de crise estrutural, como vemos atualmente, tais formas de autoritarismo se generalizam para toda a sociedade. Essa generalização é possível porque há uma matriz autoritária na própria constituição dos indivíduos da democracia liberal. Os indivíduos não são uma garantia de normalidade democrática. Eles não são a garantia de que vivemos em uma sociedade onde liberdades individuais são fundamentais, onde a tolerância à multiplicidade de interesses e modos de vida podem imperar. Na verdade, os indivíduos são constituídos de forma a estarem sempre abertos a discursos autoritários, a práticas de segregação, a estabilizações de violências e apagamentos. Isso é o que procurei explicar nesse livro através de uma ontogênease das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos a partir do problema da racionalidade cínica.
Nesse sentido, seria o caso de lembrar que as discussões sobre o cinismo nos permitem melhor compreender os processos atuais de estabilização da decomposição social. Esse é um dos principais problemas de pesquisa a que me impus a partir de então, a saber, entender como tal estabilização ocorre e suas consequências. Uma das primeiras teses que defendi a esse respeito consistia em afirmar que, diante da explicitação da decomposição das promessas sociais de integração, da redução de tais promessas a mera aparência social, a sociedade entraria em uma dinâmica de funcionamento cínico cada vez mais generalizado.
Saint-Just costumava dizer: “Celui qui plaisante à la tête du gouvernement tend à la tyrannie” [Esse que brinca à frente do governo tende a tirania]. Ou seja, nada mais autoritário do que um poder que ri de si mesmo. Pois uma normatividade que funciona de forma cínica é aquela que traz em si mesma sua própria negação, a consciência de seu próprio impasse, a figura de sua própria crítica, sem que tal contradição lhe impeça de continuar a funcionar. Isso significa que as pessoas são conscientes do caráter impotente das enunciações que eles mesmos sustentam, mas tais enunciados devem continuar a serem ditos, eles devem continuar a circular misturando seriedade e ironia, como se estivéssemos em uma situação de ironização absoluta das condutas. E não será por acaso descobrir que as figuras atuais de lideranças autoritárias são, em sua grande maioria, “cômicas”, “paródicas”. Muitas delas vieram ou passaram longas temporadas no universo da comunicação de massa, com seus personagens que jogam deliberadamente com a caricatura e a estereotipia, que riem de si mesmos a todo momento, que nos fazem a todo momento ficar em dúvida se eles estão a falar a sério ou não. Pois a comicidade cínica é uma formação bem-sucedida de compromisso. Ela permite preservar comportamentos os mais brutais ao mesmo tempo em que abre uma distância possível entre enunciado e enunciador, entre discurso recebido e posição do receptor.
Longe de algo restrito aos modos de funcionamento dos discursos, tal fenômeno mostrava algo mais profundo, a saber, ele explicitava uma forma de estruturação psíquica dos sujeitos. Isso talvez ajude a entender porque Cinismo e falência da crítica era, a sua maneira, um primeiro acerto de contas com o que poderíamos chamar de domesticação da teoria crítica, a partir da segunda geração da dita Escola de Frankfurt. Pois se tratava de mostrar a inanidade de uma crítica baseada na identificação de contradições performativas, na crença de espectros de racionalidade comunicacional em circulação em algum lugar de nossos mundos da vida, como nos propunha Jurgen Habermas. Só era possível operar com tal horizonte restrito de crítica ignorando a generalização de modalidades de clivagens do Eu e de novas formas hegemônicas de agenciamento de conflitos psíquicos que a racionalidade cínica explicitava muito bem. Os sujeitos pressupostos pela racionalidade comunicacional, com suas unidades de personalidade, com sua coerência de condutas, com sua linguagem privatizada que poderia sujeitar-se ao alargamento do horizonte unitário de compreensão da consciência, de tradubitibilidade na linguagem pública, simplesmente não existem. No seu lugar, o que encontramos são sujeitos que lidam com estruturas instáveis de clivagens do Eu e que organizam suas condutas a partir da permanência de tais clivagens. São sujeitos capazes de “sustentar duas ideias distintas na cabeça e continuar funcionando”, como disse uma vez Scott Fitzgerald.
Por isso, foi questão de partir de uma análise da economia libidinal do capitalismo contemporâneo e seus regimes de subjetividade. Regimes esses que não agenciavam conflitos de forma tendencial a partir das dinâmicas da denegação neurótica, com suas divisões do aparelho psíquico em uma verdadeira topologia de espaços separados (consciente/inconsciente, Eu/Isso/Supereu, etc.) mas dos desmentidos perversos tão claramente presentes em estruturas como o fetichismo. Desmentidos que mostravam a perenidade de clivagens que se organizavam sem a necessidade de recalque ou repressão. Clivagens que, por sua vez, operam não entre instâncias psíquicas, mas dentro do próprio Eu. Situação essa que levava sujeitos a aprenderem a flexibilidade imanente das normas, o jogo contínuo com as figuras de uma consciência duplicada. Por isso , o cinismo é uma forma reativa e desesperada de estabilizar uma crise psíuqi8ca profunda, onde as formas tradicionais de síntese psíquica, de individualidade e de identidade não tem mais a força de se impor.
Bem, alguém poderia acusar tal estratégia de pecar por “déficit sociológico”, como Axel Honneth fizera um dia com Theodor Adorno. Muita psicanálise e pouca sociologia, em suma. De minha parte, sempre achei e continuo achando um déficit materialista fundamental não ser capaz de partir de modificações nos processos de socialização e individuação como base de funcionamento real da ideologia. A tese do “déficit sociológico” apenas esconde como alguns não estão mais dispostos a se perguntar sobre como o desenvolvimento paradoxal das estruturas psíquicas no interior das sociedades capitalistas faz das figuras dos indivíduos e de suas personalidades espaços privilegiados para a fundamentação de estruturas autoritárias porque prontas a uma racionalidade cínica que é condição real do autoritarismo. Ou seja, esses estão a dormir uma espécie de sono antropológico acreditando ainda poderem pressupor indivíduos potencialmente unitários, autonomia imanente, personalidade estruturada e não-contraditória, onde nada disso existe dessa forma.
Por sua vez, esse projeto foi articulado a um horizonte histórico de falência de certos regimes de crítica que pareciam nos guiar até então. O primeiro deles era a falência da crítica como desvelamento; crítica como explicitação das formas de produção da aparência. Explicitação essa mobilizada na esperança de que assim quebraríamos as dinâmicas de fascinação da falsa consciência.
Na ocasião em que apresentei essa tese pela primeira vez, eu não tinha a disposição a compreensão real do que tal falência significava. Hoje, seria o caso de partir da defesa de que a crítica da ideologia, para funcionar e não dizer respeito a uma forma de limitação cognitiva da consciência social a ser superada, de uma incapacidade de apreender corretamente a gênese de estruturas do pensamento, precisa de uma dupla fundamentação, a saber, um diagnóstico do sofrimento social e uma espécie de horizonte teológico-político. Inicialmente, ela precisa partir da defesa de que as relações atuais de poder são produtoras de sofrimento. É isto que Marx faz ao defender a crítica como escuta do sofrimento social, ao partir da alienação como saldo fundamental de socialização no capitalismo. Por isso que a tópica da alienação não é o mero resquício de uma antropologia filosófica hegelo-feurbachiana, como gostaria Althusser e os seus. Ela é o eixo fundamental da organização da crítica social, já que permite a emergência da crítica a partir da escuta do sofrimento social: a única base concreta e real para a motivação à ação revolucionária. Nesse sentido, Lukàcs é muito mais consequente ao construir o conceito de reificação como operador central do sofrimento social, além de resultado das dinâmicas de inversão ideológica.
Mas a crítica da ideologia não precisa apenas de um diagnóstico de sofrimento social que leva os sujeitos a questionarem as estruturas de pensar e reprodução institucional da sociedade que aparecem como “naturais”. Ela precisa, ainda, da defesa de uma transformação possível do proletariado em força ofensiva contra o capital, e isto exige uma auto-compreensão do proletariado como figura portadora de um mundo por vir. Podemos falar em força teológico-política porque o processo revolucionário mobiliza assim a capacidade de projeção de futuro, a crença em uma redenção secular, como estratégia política de ruptura e transformação social. Desde a revolta camponeses dos anabatistas, em 1525, a história percebe a necessidade de tal mobilização. Perdida essa dimensão, a consciência do caráter crítico da situação permanece presente, mas sem a força de ação. Ela não é mais consciência potencial de luta, mas a melancólica aceitação desencantada da lei atual do existente. Isso explica porque Adorno insistia que a ideologia agora não estava no mascaramento das dinâmicas de poder e dominação que produziram as estruturas hegemônicas do pensar, mas na aceitação absoluta do existente, mesmo explicitada as relações de poder e violência que lhe caracterizam. Ë através dessa aceitação resignada que a consciência começa a funcionar de forma cínica. Ela acaba por afirmar a necessidade do que é, mesmo que o estado atual seja produtor de experiências profundas de violência, de sofrimento e de injustiça.
Pode-se então perguntar sobre o que faz o proletariado perder essa força teológico-política. Esse é um problema maior da filosofia política contemporânea. Mario Tronti escreveu belas páginas a esse respeito. Primeiro, seria o caso de lembrar que o proletariado como sujeito político potencial ainda existe. A centralidade do trabalho como operador de socialização continua de forma cada vez mais evidente, ainda mais diante do horizonte de decomposição do sistema de defesas trabalhistas com o advento do neoliberalismo. Os regimes de trabalho se intensificaram com redução brutal de salários e aumento da insegurança social. No entanto, para que essa potencialidade proletária passe à existência faz-se necessário uma des-identificação generalizada com instituições, lugares sociais e identidades: única condição para que a despossessão proletária, seu desamparo, torne-se força de projeção de futuro. Ou seja, faz-se necessário a experiência de uma negatividade que faz do desenraizamento em relação a toda representação e lugar natural a condição de outra forma de ação social, esta que tem em vista o desabamento do mundo atual e a abertura à emancipação.
Isso talvez explique porque, depois desse livro, eu tracei um longo caminho onde procurei pensar as condições para uma recuperação da negatividade dialética como forma da teoria crítica pensar rupturas de estrutura. Desse caminho, fazem parte principalmente os livros Grande hotel abismo (Martins fontes, 2012) e Dar corpo ao impossível (Autêntica, 2019). Por outro lado, atualmente dedico minhas pesquisas à problematização do que devemos entender por “emancipação”. O horizonte de crises no qual nos encontramos implica também a crise do que hegemonicamente foi vendido a nós como “liberdade” e “emancipação”. Essa negatividade que faz do desenraizamento em relação a toda representação natural a condição de outra forma de ação social deve ser impulsionada até o ponto em que a própria gramática que usamos para definir nós mesmos e nossos ideais entre em colapso. Eu comecei de forma mais sitemática a pensar tal problema através de Em um com o impulso: experiência estética e emancipação social (Autêntica, 2022). Outros desdobramentos dessa pesquisa virão em breve.
Por fim, seria o caso de lembrar que tais problemas vinculados à racionalidade cínica e seus desdobramentos continuam a se colocar para nós de maneira cada vez mais urgente, já que percebemos como a ressurgência contemporânea do fascismo é uma dinâmica resiliente e em ascensão. Ela exige uma compreensão mais precisa dos desdobramentos da racionalidade cínica, de suas formas de autorização da violência e do horizonte de “estabilização na decomposição” que conhecemos atualmente com nossas crises que se transformaram em verdadeiros regimes de governo. Isso é que pretendo fazer em meu próximo trabalho.
Ao leitor desse livro, gostaria de dizer ainda que várias das suas elaborações seriam por mim revistas, caso ele fosse escrito hoje. Mas essa é uma afirmação trivial. Há quem escreva como quem tem um conjunto limitado de problemas que procura aprofundar. Esses são animados por uma espécie de escrita por aprofundamento, escrita por escavação. Com o tempo, esses que assim escrevem percebem que sua maneira de apresentar problemas passa por certa metamorfose. Certas proposições mostram-se escritas como caminhos provisórios. Mas exatamente por isso, decidi por preservar o texto desse livro tal qual foi escrito. Um pouco como quem acha por bem preservar marcas de um caminho que ele ainda sabe haver muito por trilhar.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.