dossiê O samba mora na filosofia | Apresentação

dossiê O samba mora na filosofia | Apresentação
O compositor Cartola em 1971 (Foto: Arquivo Nacional/ Fundo Correio da Manhã)

 

Jackson do Pandeiro, grande filósofo popular brasileiro, anuncia: “Lá vai, lá vou eu de samba/ A ordem é samba/ Somente samba e nada mais”. Mas, ao contrário do que ensina a música, lá vamos nós de samba justamente porque não é samba que eles, da academia, querem. Então, agora, nós também vamos castigar!

Em 2012, há exatos dez anos, começou a ser gestado um livro que nos parece inaugural para as questões aqui reunidas: Sambo, logo penso, organizado por Wallace Lopes Silva e publicado em 2015 pela editora Hexis, com textos do organizador e de Renato Noguera, Marcelo Moraes, Felipe Ribeiro Siqueira (Felipe Filósofo), Sylvia Arcury, Filipe Gradim, Marcelo Rangel, Guilherme Cestino e Eduardo Barbosa. Ao provocar pesquisadores da área de filosofia a refletirem sobre o samba, o livro abre caminhos para o que os organizadores deste dossiê têm pensado nos últimos anos. Seus ecos encontram-se desde a “filosofia dessa coisa de pele” e a “ontologia do Meu Lugar”, em que Marcelo José Derzi Moraes se assume herdeiro de Jorge Aragão e Arlindo Cruz, até a “ética dos pés” de Rafael Haddock-Lobo, inspirada em Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Clementina de Jesus e Fabiana Cozza.

Na passarela dos últimos anos, dedicando-nos aos saberes das periferias e à cultura popular, chegamos à mesma conclusão do aforismo cantado pelo Fundo de Quintal: “samba é filosofia, fidalguia do salão/ tem a força e a magia que acende o coração”. Então, deixa acontecer naturalmente, já que Noel Rosa e Candeia, além de outros e outras sambistas, reforçam a ideia de que o samba mora na filosofia.

Inúmeros são os sambistas, mestres e mestras que criaram um verdadeiro sistema filosófico do samba: Leci, Martinho, Aluísio, Marquinhos PQD, Sombrinha, Dona Ivone, Paulo César, Arlindo, Cartola, Bezerra, Mauro Diniz, Monarco, Jovelina, Serginho Meriti, Clara Nunes, Xande, Mart’nália, Clementina, Reinaldo, Oswaldo dos Santos, Jorjão, Dominguinhos, Joãozinho Trinta, Nelson Sargento. Entre tantos outros e outras que nós não conseguimos dar conta nesta apresentação, mas que contribuíram e ainda contribuem para que seja possível pensar o samba como filosofia. Isso porque nos limitamos a falar apenas das músicas, mas podemos mencionar a escritura que é a dança do Delegado da Mangueira, que produz pinturas no espaço, construindo uma nova temporalidade em cada movimento; ou a lógica das Tias, que preservam a história e a memória da escola e da comunidade, e que trazem também a importância da comida como uma ética do comer bem; ou ainda a magia do mestre Ciça ao conduzir a bateria. Não nos esqueçamos da potência filosófica do miudinho da Tia Eunice, que nos ensina que o pequeno pode ser grande; da potência da voz de Jamelão, que move multidões; do canto sedutor de Zeca Pagodinho, que nos acerta na veia e nos enfeitiça – um dos muitos truques do seu balancê.

Todos esses movimentos e elementos podem e precisam ser pensados a partir da filosofia, pois carregam em si uma força transformadora que não se entrega às estruturas que imobilizam o pensamento. Até porque “o mundo passa por mim todos os dias/ enquanto eu passo pelo mundo uma vez”, canta a Velha Guarda da Portela. Mas não é uma filosofia do samba no sentido de que o samba seria seu objeto. O samba é o próprio sujeito do filosofar. Nesse sentido, só podemos falar de uma filosofia “do” samba se considerarmos uma filosofia que venha dele, que o pense a partir de uma escuta e do acolhimento de questões que o próprio samba coloca à filosofia.

Uma geosambalidade, como proposta por Wallace Lopes, que transborda os espaços nos quais se manifesta o samba, pensando suas múltiplas origens, é uma inspiração para entender o devir-samba do mundo, que, cantando, dançando, compondo, tocando ou comendo, estamos produzindo na forma de filosofia popular brasileira, FPB. Por todo o Brasil, nos terreiros, nas quadras, nas ruas ou nos bares, mulheres, homens, pretos, brancos e mestiços têm um compromisso: não deixar o samba morrer, cantando os brasis possíveis. Movido pelas forças ancestrais e escolhendo suas heranças, o samba resiste pelos que foram e pelos que estão por vir, sendo, portanto, uma prática de ser e existir, um modo de vida, pois: a ordem é samba.

O samba produz uma atmosfera filosófica que, pensando em Donga, queixo-me às rosas, mas se alguém perguntar o que é o amor para mim, não sei responder, não sei explicar. Então, eu posso perguntar: o que é a vida afinal? Será que é fazer o que o mestre mandou? Ou é sentir lirismo? Já que, “Carnaval te amo, na vida és tudo pra mim”. Pois, quando a gira girou, ninguém suportou. Mas sob o farol das estrelas, no céu da cidade de neon, essa atmosfera espectral resiste às práticas e políticas da morte, da negação e do apagamento, atravessando o tempo e o espaço.

Numa lógica espectral, criando outros lugares, outras temporalidades, Paulinho da Viola faz um samba sobre o infinito, que se manifesta nos corpos e nas vozes em rodas de samba, criando outras histórias possíveis, histórias à margem, da margem, que descentralizam os centros e fazem as cidades entrarem na gira. Mas, sabendo da filosofia pharmakológica do mestre Aluísio Machado, o tempo, a espera, a temperança são importantes para viver bem, uma vez que relógio que atrasa não adianta e remédio que cura também pode matar. Por esse motivo, a importância de tanto samba nos ensinar a ética dos pés, conforme diz mestre Aluísio: chega como eu cheguei, pisa como eu pisei. Porque olha que lei é lei. Então, seguimos a Lei: a ordem é samba.

Em uma verdadeira gira-macumbística, quem conhece o caminho encontra o jeitinho, tem sempre um lugar. E é sem perceber que a noitada virou madrugada em que deslocamentos acontecem, abalando as estruturas tão consolidadas da filosofia tradicional. Então, do fundo do quintal, do batuque na cozinha, das favelas e dos subúrbios, um acorde se lança ao tempo: samba é filosofia, a ordem é samba.

O deslocamento promovido pelo samba, marcado pelo surdo e pelo tantã, faz a filosofia estremecer e, desestabilizada, o samba desvela que a filosofia, além de espírito, é corpo também, que é razão, mas também desejo. O lugar indecidível ao qual o samba conduz a filosofia, com gingado, do tipo que balança mas não cai, na cadência do samba, faz a gente pensar nessa coisa de pele cantada por Jorge Aragão, que move o corpo e o espírito, que faz colidir razão e desejo, mostrando-nos que nem tudo que é bom vem de fora. Então, atento às escutas, acolhendo os ensinamentos das políticas das Tias, chegamos devagarinho seguindo os passos da grande mestra Dona Ivone Lara. Assim, abertos à ética do deixa, presente na obra filosófica de Leci Brandão, cantamos “deixa o samba chegar”, pois a ordem é samba.

E em meio a repetições que parecem não se cansar, exegeses hiperespecializadas, falso rigor e tecnicalidades insossas, apostamos, uma vez mais, do fundo de nossos quintais, que tem alguma coisa mudando na vã filosofia. “Mas iremos achar o tom/ um acorde com lindo som/ e fazer com que fique bom/ outra vez o nosso cantar/ e a gente vai ser feliz/ olha nós outra vez no ar/ o show tem que continuar.”

Antes de nos despedirmos, sobretudo acreditando que ainda temos muito tempo pra usar nossos anéis de bamba, deixamos aos filósofos mais novos, como um pedido final, este dossiê apoteótico.

 

Rafael Haddock-Lobo é professor do PPGBIOS, do PPGFIL-UERJ e do Departamento de Filosofia do IFCS-UFRJ, onde coordena o Laboratório X de Encruzilhadas Filosóficas.

Marcelo José Derzi Moraes é doutor em Filosofia pela UERJ, professor da UERJ e do PPGBIOS, onde também é coordenador adjunto, e coordenador do Grupo de Estudos Negritudes e Transgressões Epistêmicas.


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