Do senso comum à audiência
No projeto do livro que lançarei daqui a bastante tempo, apenas em 2014, há um reflexão que eu gostaria de compartilhar com os leitores deste blog. Como ela ainda não está nada pronta, comentários serão bem vindos.
Dizer que não lemos escritores brasileiros contemporâneos é uma daquelas verdades tristes que povoam o cenário do senso comum atual. Diz-se o mesmo do cinema brasileiro. Poderíamos dizer o mesmo de certa música brasileira contemporânea que não anda nos circuitos comercais. O mesmo ainda pode ser dito das artes em geral, pois parece que poucos se ocupam do trabalho de artistas que fazem carreira na pintura ou nas artes visuais em geral. Poderíamos também falar da ciência. Afinal, sempre é bom perguntar o que sabe o senso comum sobre a pesquisa em física ou biomedicina?
Pode parecer repetitvo ler algo sobre o senso comum depois de tanto ter sido falado sobre ele nos manuais de filosofia que andam por aí, mas é um fato que o senso comum impõe verdades e elas atrapalham algumas coisas. Chamamos de senso comum justamente o conjunto dos discursos que valem como opiniões verdadeiras apenas porque são correntes. Platão e Aristóteles sabiam que não haveria filosofia que não partisse do senso comum. Desmontar o senso comum, desmanchar a mera opinião seria o único jeito de seguir no caminho de um pensamento mais cuidadoso sobre as coisas que poderia, em certo momento, ser chamado de “conhecimento.” Claro que podemos sempre dizer, mas quem se importacom isso? Afinal, quando ao mundo da filosofia também corre a “verdade” de que filosofia é algo difícil e que “não existem filósofos no Brasil”.
Estou falando tudo isso para colocar a questão sobre o fundo falso do chamado “senso comum”. Do que se trata quando acreditamos em tais “verdades”? Do fato de que o fundo do senso comum é a sua própria imposição como verdade. Para falar em termos filosóficos é como se faltasse alguma verdade ao senso comum da qual ele mesmo depende para impor-se como verdade. É como se valesse por ser repetido e não questionado. Isso é o que se chama “petição de pincípio”. Assim, antigamente, para algo ser verdade, dependeria de uma autoridade, o rei, o imperador, o pai de família, o padre, o pastor.
Em nossos dias, desde a invenção dos meios de comunicação de massa, temos também a invenção das massas. As massas não existiam antes da igreja tê-las inventado. O cinema, o rádio, a televisão e, por fim, a Internet, existem por que existem massas.
As massas, no entanto, estilhaçam-se a cada dia. Para que exista essa coisa chamada de massa é preciso que haja um quantidade imensa de pessoas que não pensam por conta própria e alguém que pensa por elas. É uma questão geométrica. Um único pastor, um único guia, ou até mesmo um único “filósofo” e temos uma massa que, quanto mais compacta, mais é massa Em contexto chamados de “hegemônicos”, podemos dizer que os “guias” disputam servos teleguiados. No entanto, quando há mais pastores maior é a esponjosidade das massas e, podemos dizer também, que chegamos à fragmentação que implica um desfazimento do caráter compacto de uma massa. Em outras palavras, podemos dizer que quanto mais pastores, no extremo, não teremos mais pastores. A internet parece ter providenciado isso, hoje cada um tem seu meio de comunicação, o seu pedacinho no latifúndio na rede, o seu espaço para fazer o seu jornal. A comunidade no seu sentido mais antigo é o que vai deixando de existir para dar lugar a outros sentidos, inclusive o de que vivemos hoje apenas simulacros de comunidades ou comunidades espectrais como dizem alguns filósofos.
Persiste no novo território dos sentidos, aquilo que chamamos de audiência. A audiência é um conjunto de pessoas que pode ou não ser uma massa. Audiência pode ser o todo ou uma parte do todo. Os veículos de comunicação de massa gostariam que as audiências fossem sempre de massas, porque o poder faz a força e porque os patrocinadores que querem sempre “vender” alguma coisa, vender “mais” alguma coisa, precisam da quantidade. Mas a audiência pode ser pequena e ter alta qualidade.
Coisa que falei no meu livro Olho de Vidro – a televisão e o estado de exceção da imagem (Record, 2011), é que o que está em jogo no contexto da cultura industrializada é a manipulação de um desejo curioso. Trata-se do desejo de fazer parte que anima a audiência, que faz com que as pessoas queiram ver a mesma novela que está passando na televisão ou o que estiver sendo oferecido desde que haja a expectativa de que “todo mundo está vendo”. Como se o fato de que “todos estão vendo” me tornasse parte de uma coisa grandiosa. Difícil questionar este lugar porque nossa experiência contemporânea implica um certo desespero relativo ao lugar social que ocupamos. Quando não podemos fazer nada ou “ser” muita coisa só restam dois caminhos: desmanchar-se no todo pensando igual e querendo a mesma coisa, ou buscar um caminho próprio.
Mas o que seria um caminho próprio que não se medisse simplesmente com a competitividade vigente que parece imposta a todos todos os dias sob as mais diversas formas?