Do poder da autenticidade no teatro

Do poder da autenticidade no teatro

Fotos Bob Sousa

“Só existe uma receita: ter o maior cuidado na hora de cozinhar”.
HENRY JAMES

Consertando Frank, espetáculo que cumpre sua terceira temporada em São Paulo, é daquelas realizações teatrais cuja autenticidade constitui um valor absoluto. Não há nele transgressões de nenhuma ordem, seja de forma, seja de conteúdo, somente o sopro de uma lidimidade que articula muitíssimo bem os três pilares que dão sustentação à empreitada. Do ponto de vista do texto, de autoria do dramaturgo norte-americano Ken Hanes, as categorias clássicas de enredo e personagens são trabalhadas com bastante engenhosidade, apontando para o poder de resistência que o bom e velho teatro narrativo ainda é capaz de exercer na cena contemporânea. Já em relação à esfera da encenação, concentrada basicamente na performance dos atores, Marco Antônio Pâmio e o trio que atua sob sua direção – Chico Carvalho, Henrique Schafer e Rubens Caribé – investem em um estilo de interpretação que revigora os conceitos realistas clássicos de imitação e empatia, o que leva os intérpretes a um exercício de controle de desempenho dos mais notáveis. Passemos a examinar, então, cada uma dessas linhas de força.

A história do repórter que, persuadido por um psicólogo com quem mantém uma relação amorosa, disfarça-se de paciente a fim de produzir uma matéria jornalística que denuncie um psicoterapeuta responsável por desenvolver um método de reversão da homossexualidade é muito atraente, mas aponta para uma falsa pista: a da discussão do famigerado tema da cura gay. Teria sido muito fácil para Ken Hanes ficar somente na veiculação de um discurso contra o conservadorismo dos tempos atuais nos âmbitos da moral, da sexualidade e dos costumes, bastando para isso que ele trouxesse para dentro da peça aquele conjunto de frases-feitas e de clichês que sustentam o pensamento dos que costumam atacar a homossexualidade, encampando-os como falas reais, se ele fosse um autor de tipo previsível, ou levando-os ao limite do nonsense, se ele fosse de tipo mais inventivo. Entretanto, a trama urdida por Hanes faz deste tópico um elemento enganoso, indeterminado, que rapidamente migra da esfera do conteúdo para a esfera da forma, contaminando a estrutura narrativa geral pela atmosfera de um “vazio que se pretende cheio”. O dramaturgo cria uma expectativa em torno de um assunto, mas essa expectativa é logo esvaziada pelo convite que ele nos faz ao debate a respeito da ambiguidade da natureza humana e acerca dos limites éticos que se interpõem entre uma atividade profissional lastreada pelo racionalismo científico e as convicções pessoais dos indivíduos que desenvolvem aquela atividade.

Desse modo, o esquema narrativo anunciado logo de início – aproximação entre jornalista e psicoterapeuta suspeito, apuração e comprovação do embuste, desmascaramento do psicoterapeuta pelo jornalista e seu companheiro – se apresenta como uma trama tão somente disposta a saciar nosso desejo pelo espetacular, pelo escandaloso, pelo sensacional e, assim, é celeremente desmontado com vista a nos enredar em uma história bem mais cheia de sinuosidades, onde a meia-verdade é que dá o tom. O dramaturgo trama contra nós e nos enreda, tornando frágeis os objetos de nossa saciedade; eis a qualidade de uma narrativa viva, vibrante, entusiasmada. Há ainda que se destacar a grande engenhosidade cênico-discursiva empregada pelo dramaturgo, que com agilidade incomum faz os personagens conviverem em dois planos básicos: o da realidade e o da vida interior. Cada uma das três figuras em cena está sempre posicionada de modo a se relacionar com um dos outros dois no plano real, sem abrir mão de ouvir a voz do terceiro indivíduo – tão próxima de si – como um elemento de sua própria vivência interior. Trata-se de um recurso de carpintaria teatral típico das dramaturgias de longa tradição, como a inglesa e a norte-americana, fascinantes por nos proporem esses jogos cênicos.

No plano do tratamento dos personagens, a ambivalência é a prova dos nove, fazendo desencadear aos olhos do espectador uma série de duplos cuja marca é a difusão, o apagamento das fronteiras mais claras: um jornalista que vira paciente do psicoterapeuta que ele quer desmascarar; um jornalista que vira oponente do seu amante, que iria ajudá-lo naquele desmascaramento; um psicoterapeuta que atua profissionalmente por uma motivação pessoal, familiar, e que, embora não se releve o arrematado embusteiro que todos esperam dele, não consegue dar provas da consistência de seu método de cura; um ex-skinhead que vira terapeuta e quer “justiçar” as vítimas de pessoas que têm comportamentos sociais perniciosos, como psicoterapeutas sem escrúpulo e jovens disfuncionais, como ele mesmo um dia foi. As combinações são muitas e exercem grande poder de atração sobre o espectador, que percebe na fluidez dessas figuras o mesmo traço de indeterminação que paira sobre a trama, levando à experiência do “equilíbrio delicado” – tão cara à dramaturgia de Edward Albee, Harold Pinter e Tennessee Williams, por exemplo.

Curioso pensar que, ainda que os modos de subjetivação clássicos – que deram larga sustentação, na história da literatura e no teatro, à categoria de personagem – tenham entrado em crise na pós-modernidade, é à subjetividade convencional, ligada à noção de pessoa (e, por extensão, de personagem) que ainda nos apegamos para tentar compreender nossa interioridade mais profunda. Assim, a mola do drama – mal lubrificada ou totalmente já obsoleta – ainda move o teatro e atrai o espectador. Eu, pós-moderno, sei que o Frank, o Jonathan e o Apsey criados por Ken Hanes não existem e talvez estejam ali diante de mim somente para me ludibriar, arremessando-me para dentro de uma estrutura fechada que me seduz, distrai e aprisiona enquanto a vida verdadeira segue verdadeiramente seu curso sem mim. Entretanto, essas figuras esquemáticas ou maneiristas ainda conseguem preservar dentro delas alguma coisa que me atrai e com a qual me irmano, como se pode depreender da análise da categoria da personagem feita por Patrice Pavis, em seu Dicionário de teatro: “Permutas, desdobramentos, ampliações grotescas de personagens, de fato, só propiciam a conscientização do problema da consciência psicológica ou social. Elas trazem sua pedra para a demolição do edifício do sujeito e da pessoa com um humanismo já exaurido. Porém elas nada podem contra a constituição de novos heróis ou anti-heróis: heróis positivos de todas as causas imagináveis, heróis constituídos apenas por seu inconsciente, figura paródica do bufão ou do marginal, heróis dos mitos publicitários ou da contracultura”.

Por fim, há que se falar do elemento principal que faz a história contada por Ken Hanes e os personagens que nela transitam nos soarem tão envolventes: a interpretação dos atores. Chico Carvalho, Henrique Schafer e Rubens Caribé demonstram um desempenho técnico muitíssimo bem afinado com o propósito do texto e da encenação. A técnica que cada um deles detém é visível e está comprometida com o chamado controle de desempenho, que leva o espectador mais atento a perceber, de um lado, o jogo de atuação que se estabelece entre os três e, de outro, as zonas de emoção – sempre controladas, diga-se, de passagem – a que tal jogo pode conduzir. O trio está, única e exclusivamente, comprometido com a autenticidade da interpretação, fazendo soprar sobre a estrutura narrativa e as figuras dramáticas que defendem o hálito quente de uma sinceridade teatral que poucos atores, a rigor, são capazes de emitir. Credite-se ao diretor Marco Antonio Pâmio, naturalmente, a grande responsabilidade pelo domínio do processo que levou a encenação a este resultado. E insista-se nisso: Consertando Frank é um belo exercício de “autenticidade teatral” – binômio que não deixa dúvida quanto à rugosidade semântica de sua composição.

Desde o início do ano, a temporada teatral de São Paulo vem bridando os espectadores com atuações memoráveis de intérpretes cujos talentos valem por si só a ida ao teatro. Denise Weinberg em O testamento de Maria, Sylvia Prado em Navalha na carne; Clara Carvalho em Anti-Nelson Rodrigues; Fernanda D’Umbra em Pessoas sublimes, Luciano Chirolli em Memórias de Adriano, Luís Mármora, em O meu lado homem, um cabaré d’escárnio. (Há muito mais exemplos, sem dúvida alguma, que não cabem aqui). Chico Carvalho, Henrique Schafer e Rubens Caribé – há mais tempo na estrada com este projeto – integram-se perfeitamente a esse grupo de profissionais, sobre os quais repousam todos os olhos ao estarem no cinema e na televisão, quase invisíveis quando se dedicam somente ao teatro, a quem a crítica homenageia por meio das palavras da atriz-matriarca do teatro moderno no Brasil, Cacilda Becker: “Sou um instrumento de minha própria arte, sou o meu próprio violino. Não tenho memórias, mas sensações. Padeço de uma sensação permanente de insegurança, sinto medo da vida. Creio que hoje sou um instrumento de certo modo afinado”.

Consertando Frank
Onde Teatro MuBE Nova Cultural (Rua Alemanha, 221, Jardim Europa, São Paulo).
Quando até 13 de março (sábados, às 19h; domingos, às 18h).
Quanto R$ 50,00
Info (11) 4301-7521

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