Do cartesianismo ao espinosismo

Do cartesianismo ao espinosismo

“O vulgar filosófico começa pelas criaturas, Descartes começou pela mente, ele começa por Deus”. Leibniz acerca de Espinosa1

Quando o jovem Bento de Espinosa (1632-1677) desperta para a Filosofia, a grande referência que ele -encontra, dominando o panorama das letras e das ciências, -é – o cartesianismo.

Embora francês de nascimento, René Descartes (1596-1650) é quase um compatriota de Espinosa, tendo vivido na Holanda longos anos, que abrangem todo o período de sua produção filosófica. É aí que ele publica suas obras, é aí que o seu pensamento primeiro difunde-se, encontra aliados e adversários. Para nós, a séculos de distância, será sempre difícil avaliar toda a significação do formidável movimento de idéias acarretado pelo cartesianismo. Este novíssimo pensamento constitui um grande acontecimento intelectual que vem revirar o mundo do saber estabelecido, abrindo perspectivas excepcionais, muitas ainda insuspeitadas, para uma cultura em franca transformação.

É essa doutrina viva que Espinosa descobre muito cedo. Poucos terão como ele sabido estimar toda a amplitude da revolução que ocorria e a ela aderido com tanto afinco e paixão. O cartesianismo lhe surge como um marco que não pode ser simplesmente ignorado por quem, em meados do século 17, quer pensar e, sobretudo, pensar modernamente. De fato, é na escola de -Descartes que o jovem Bento dá seus primeiros passos filosóficos.

No prefácio das Obras póstumas de Espinosa, redigido por amigos que privaram de sua intimidade, a formação do filósofo é descrita assim: desde cedo ele foi nutrido nas letras e estudou teologia; uma vez decidido a dedicar-se à Filosofia, buscou dedicar-se por inteiro a ela, e nem quis preceptores nem aderiu a qualquer filósofo; não obstante, afirma o texto, “para realizar esse propósito, os escritos filosóficos do nobilíssimo e sumo filósofo René Descartes lhe foram de grande auxílio”2.

Tem-se aí uma indicação preciosa para podermos avaliar toda a peculiaridade da postura de Espinosa perante o cartesianismo.

Ainda que tenha sido por vezes identificado como “cartesiano”, ele nunca foi um sequaz da filosofia do francês, dela se afastando em vários pontos; por outro lado, fato notável, tampouco se preocupou em refutá-la encarniçadamente. O que as Obras póstumas nos sugerem é que a relação entre Espinosa e o cartesianismo é, primordialmente, uma relação de aprendizado; como se ele aprendesse a filosofar e pensar modernamente lendo e estudando Descartes. E por isso mesmo pôde divergir do cartesianismo com a serenidade e a segurança de quem o havia bem-digerido e refletido.

Eis uma das constantes da obra espinosana: um duradouro e profundo diálogo com o legado cartesiano que vai da juventude à madureza do filósofo. Uma reflexão que não passa pelo mero esquadrinhamento do cartesianismo em busca de seus erros e acertos, mas revela toda sua profundidade na medida em que Espinosa desce ao âmago da revolução cartesiana e põe-se a meditar sobre o seu elemento fundamental: o método, ou seja, o problema do modo correto de filosofar, e muito particularmente a introdução da geometria ou matemática como procedimento modelar para a Filosofia.

Esse é o ponto que o próprio Descartes, renovador em praticamente todos os campos do saber que afrontou, identificava como sua maior novidade3. E é essa uma das questões cruciais de Espinosa, tanto do jovem – não se enganará o leitor que ler o Tratado da emenda do intelecto como testemunha da meditação prolongada sobre o Discurso do método – quanto do filósofo maduro. Com efeito, se é no descuido com a correta “ordem do filosofar” (ordo philosophandi) que a Ética chegará a identificar a causa dos maiores erros4; estará aí também, na estrita observância da boa ordem, ao menos a condição de possibilidade dos grandes acertos.

Ora, o diálogo que Espinosa trava com o cartesianismo tem seu momento mais importante em 1663; neste ano o filósofo publica sua primeira obra, os Princípios da filosofia de René Descartes demonstrados à maneira geométrica. O trabalho nasceu de um curso de física cartesiana que Espinosa dera a um jovem; ao tomar conhecimento do material, os amigos insistiram em sua edição e um deles, Luís Meyer, encarregou-se de redigir o prefácio. Este texto, que mereceu a chancela do autor do livro, é bastante eloqüente quanto à importância do cartesianismo na renovação filosófica conhecida pela modernidade. Sobre o mundo do saber só havia as trevas da incerteza, com a nobre exceção da matemática, até que Descartes, “o mais esplêndido astro do século”, deu à Filosofia “fundamentos inconcussos” construídos “com ordem e certeza matemática”. Não o fez, contudo, prossegue Meyer, seguindo a melhor das vias, aquela encontrada nos Elementos de Euclides; e daí o escopo de Espinosa: expor geometricamente os princípios de uma filosofia que, geométrica embora, não o era com o devido rigor.

Ao compreender esse projeto e seu alcance podemos igualmente apreender algo do teor e da riqueza da meditação de Espinosa sobre o cartesianismo, como aquele se -enriqueceu no trato com as dificuldades deste.

Para Descartes, uma obra é geométrica quando nela se raciocina com ordem, quer dizer, “as coisas que são propostas como primeiras devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e as seguintes devem depois ser dispostas de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem”. No entanto, há duas maneiras (rationes), ambas geométricas, de efetivar essa mesma ordem, isto é, de demonstrar. Pela análise, dita a posteriori na medida em que “mostra a verdadeira via pela qual uma coisa foi metodicamente descoberta e faz ver como os efeitos dependem das causas”; ou pela síntese, via a priori que “examina as causas por seus efeitos”, demonstrando por meio de “uma longa série de definições, postulados, axiomas, teoremas e problemas”5.

Ora, o francês admitia, seguindo a tradição, que o ideal era começar pela via analítica (a descoberta) e, logo em seguida, demonstrar o descoberto pela via sintética. Mas nunca fez isso. O procedimento, ele alegava, era fácil na geometria, mas muito difícil na metafísica, quase impossível, em razão da pouca clareza dos princípios nesta matéria. Mas só por isso? Espinosa, provavelmente, sabia que não.

Tratando-se de uma via apriorística, a síntese deveria partir do que é primeiro, do que é causa e pudesse, assim, tornar-se princípio explicativo dos efeitos (“conhecer é conhecer pela causa”, dizia a antiga máxima); logo, como Deus é causa de tudo, a síntese exigiria começar por Deus. No cartesianismo, entretanto, a divindade é concebida como um ser transcendente e infinito, por natureza inapreensível ao nosso intelecto finito. Como então proceder, nesse sistema, a uma síntese? Fazê-lo seria pôr como princípio, e princípio de inteligibilidade de todas as coisas, aquilo que nos é por natureza ininteligível. Quer dizer, Descartes só poderia cumprir a exigência da reversão da análise em síntese ou perpetrando um absurdo ou transformando sua concepção de Deus. Já que não estava disposto a ceder a nenhuma das alternativas, sempre preferiu a análise, seguindo em suas obras um invariável percurso analítico que iniciava pela dúvida, passava pensamento, chegava ao cógito (a verdade primeira da própria existência, o “penso, logo existo”) e só então ia ao verdadeiro princípio e causa de tudo, Deus.

Quando Espinosa, nos Princípios, põe-se a demonstrar sinteticamente o cartesianismo, isso não muda. Fiel ao preceito de não se afastar de Descartes nem criticá-lo nem corrigi-lo, ele apresenta as teses cartesianas tais quais encontradas no escritos de Descartes, em geral literalmente. Não obstante, sob a nova roupagem, o cartesianismo surge de maneira bem particular e pouco ortodoxa. Espinosa inicia como bom cartesiano, a dúvida, porém, tão cara a Descartes, é quase de todo suprimida; a verdade do cógito perde muito de seu caráter experiencial e se vê metida em proposições; sobretudo, a primeira parte da obra torna-se uma longa investigação sobre o ser de Deus. Mudança de ênfases, por certo, mas não de conteúdos; estes são os mesmos, a nova disposição é que lhes confere um inédito valor.

Tudo se passa como se Espinosa, um aplicado estudioso do cartesianismo, tivesse desmontado o mecanismo conceitual desse sistema e, em seguida, remontando-o, dado origem a uma nova máquina que, se não era inteiramente outra (eram as mesmas peças!), tampouco era completamente a mesma, funcionando de uma forma que talvez merecesse protestos de Descartes. Porém, isso é admirável, toda a reversão se dá, em última instância, pelo cumprimento rigoroso das exigências metódicas do próprio cartesianismo. Espinosa testa os limites desse sistema, vai a fundo e desenvolve todas as suas potencialidades.

Não espanta que muitos leitores tenham a impressão de topar o espinosismo quando na verdade há apenas um cartesianismo diferente, radical demais para Descartes, sem dúvida, mas ainda cartesianismo. Bom aluno de Descartes, Espinosa não precisa refutá-lo, uma vez que aprendeu a pensar com ele, a partir dele e contra ele.

Nesse sentido, os Princípios da filosofia de René -Descartes demonstrados à maneira geométrica são um acerto de contas com o passado, por um lado; por outro, uma espécie de treino para o futuro. Em 1663, Espinosa já está certo de que as dificuldades deixadas pela filosofia cartesiana só poderão chegar a bom termo se ele seguir – para usar a fórmula do prefácio de Meyer – “uma outra via que a aberta e palmilhada por Descartes”, ou seja, insistir na mais rigorosa ordem geométrica, sem nada ceder a compromissos com um Deus transcendente. O exercício sobre Descartes, ao fim e ao cabo, é mais uma demonstração de que a boa “ordem do filosofar” exige começar pela natureza de Deus; e é por aí, de fato, que a sua obra magna, a Ética, começará. Ética, não por acaso, demonstrada segundo a ordem geométrica. Mas então a história já será outra, com quase nada de cartesianismo e tudo de espinosismo.

NOTAS

1 Citado por Georges Friedmann, Leibniz et Spinoza, Paris, Gallimard, 1962, p. 73.

2 O texto original do prefácio foi reeditado por F. Akkerman e H. G. Hubbeling, “The preface to Spinoza’s posthumous works, 1677, and its author (c. 1619/20-1683)”, Lias, VI, 1971-1; a citação vem da p. 111.

3 Consultem-se, por exemplo, o Discurso do método e as Segundas respostas, ambos disponíveis na coleção Os pensadores.

4 Ética, II, prop. 10, escólio.

5 Cf. o final das Segundas respostas.

Homero Santiago
é professor de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP)

BIBLIOGRAFIA

Obras sobre Espinosa

CHAUÍ, Marilena. “Espinosa, vida e obra”. Em Os pensadores. Espinosa. São Paulo: Abril Cultural, 1983, pp. v-xxii.

_____. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 2005.

_____. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo; Companhia das Letras, 1999.

_____. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

NADLER, Steven. Espinosa, vida e obra. Lisboa: Publicações Europa-América, 2003.

SCALA, André. Espinosa. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

Obras de Espinosa

Oeuvres complètes. Paris: Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1954.

Os pensadores. Espinosa. São Paulo: Abril Cultural, 1983. O volume contém as seguintes obras: Pensamentos metafísicos, Tratado da correção do intelecto, Ética, Tratado político, Correspondência (parte).

Ética. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. (Tradução de Lívio Xavier).

Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio.

Tratado da reforma da inteligência. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Tradução, introdução e notas de Lívio Teixeira.

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