Divino amor: um corpo para a fé evangélica
Cena de 'Divino amor', de Gabriel Mascaro; filme vislumbra um futuro político que inaugura um peculiar bem comum (Foto: Divulgação)
O que é um corpo político? Na capa que escolheu para ilustrar o seu mais célebre livro, Thomas Hobbes realça uma multidão com rostos apagados que compõem uma figura humana, superior, enorme. Coroada, ela segura uma espada com a mão direita, simbolizando a segurança, e, na mão esquerda, o cetro, remetendo à soberania, essa alma artificial que anima o conjunto do corpo. A figura da capa, para Hobbes, é o Leviatã, o Estado, um homem artificial destinado a reger seus súditos. O corpo político, nesse metáfora visual, adquire traços sublimes, pois, ao sair do “estado da natureza”, o indivíduo seria transcendido por um tecido social, coeso, que lhe ultrapassa.
A teologia política ocidental moderna tem no corpo um dos seus principais tormentos. O historiador Ernst Kantorowicz narrou com primor o percurso teológico e jurídico, iniciado na era Tudor, que urdiu a duplicação do corpo do monarca, ora individual, e humano, ora metafísico, politico – e divino. Com um corpo terreno e outro transcendental, a formulação do duplo corpo do monarca elucida um gesto ambíguo. De um lado uma forma de vislumbrar um Estado absolutista, que possui no epíteto “L’Etat c’est moi”, a sua mais célebre tradução. De outro, a formulação de uma linguagem política que sedimentou uma esfera pública e um bem comum moderno.
De forma provocadora, o mais recente filme de Gabriel Mascaro possui o corpo no centro da sua trama, e atualiza as formulações de Hobbes e Kantorowicz. Um corpo genuíno, que bem ilustra essas aproximações entre teologia e biopolíticas com feixes contemporâneos. Partindo de um retrato das comunidades evangélicas no Brasil, Mascaro vislumbra um futuro político que inaugura um peculiar bem comum. Sua trama mostra uma religião sequiosa para domar o corpo estatal, e coroar-se, como se fosse um novo Leviatã.
O Brasil de 2027, na ficção de Mascaro, é uma feliz distopia, decorada, nas suas festas, por rosas e lilases. Acrescente uma pitada de um Estado autoritário que tenha no amor o seu principal mote – um amor aliado à fé. À primeira vista, a ideia de uma futura “sociedade do amor” soa tentadora, prima de um paraíso com feições terrenas. Quem, afinal, não crê no amor? A trajetória de Joana (Dira Paes), contudo, mostrará vários ângulos de dominações dos corpos, mentes e biografias que apostam na força desse nobre sentimento como pura transcendência. Nesse país de um futuro próximo o carnaval foi abolido e paulatinamente trocado pela festa do “amor supremo”.
Na trama, Joana é a mais crédula das personagens. Bem casada com um vendedor de coroa de flores para defuntos, ela trabalha numa repartição pública, responsável por conduzir processos de divórcios. Ao seu modo, Joana persiste em dissuadir os casais da separação. Ela se considera vocacionada para implementar uma burocracia mais “humanizada”. Joana, no entanto, manipula os valores cristãos vinculados ao casamento e fere os princípios legais de um Estado que, na narrativa, ainda é oficialmente laico.
Os atos de Joana rimam intimidade com burocracia, e aglutinam um autoritarismo cheio de cordialidades e jeitinhos à brasileira. Nos seus momentos de dúvida, Joana estaciona seu carro num drive-thru para se confessar, receber conselhos, cantar hinos. Ela quer, ela precisa engravidar. O rebento, no entanto, nunca vem. Pacata, inteiramente dedicada à fé, Joana leva às últimas consequências sua crença no amor supremo, o qual, paradoxalmente, será o principal motivo da sua queda.
Divino amor propicia uma importante síntese dos retratos de evangélicos no cinema brasileiro. Desde o período da retomada, no início dos anos 2000, os evangélicos foram constantemente representados de forma estereotipada, sugerindo um perigoso maniqueísmo entre sua moralidade e sua subversão. Uma personagem como Kika, interpretada pela mesma Dira Paes, em Amarelo manga (2002), de Claudio Assis, ouvia nas ruas que “o pudor é a melhor forma de perversão”. Aglutine sequências de cultos que revelavam pastores mercenários; ingenuidades, formas de ridicularizar os sincretismos com gritos histriônicos e transes gratuitos. Mais cauteloso, Divino amor ultrapassa esses estereótipos. Mascaro elabora um atento panorama da fé evangélica, que tem na conversa direta do crente com Deus um dos seus principais fundamentos.
Embora com traços de ficção científica, o filme de Mascaro é seguro no seu viés antropológico, outro fator que o distingue das representações clichês dos evangélicos. Os ambientes decorativos sugerem uma turva atmosfera estética. Ora soam como um filme kitsch, ora a narrativa distancia-se e cria frestas de um ambiente brega tido como sofisticado. A afinidade do tino antropológico com a tinta “Sci-Fi”, aliás, é similar aos cosmos imaginados por Ursula K. Le Guin, quando as transformações das técnicas corporais ocorrem em universos distintos do humano contemporâneo.
Serviçal do amor, o corpo de Joana é totalmente instrumentalizado pelo Estado, e outras associações para-estatais, como se uma multidão de indivíduos já atuasse autonomamente numa constante obsessão para sair do estado da natureza. O corpo de Joana restringe-se a zelar pela manutenção do ambiente familiar, heterossexual, cristão. Danilo (Júlio Machado), seu marido, fica de ponta cabeça, num bizarro aparelho para disseminar energia à sua bolsa escrotal. Procriar é moral – e urgente. Caso um rebento não venha, o amor do casal tende a embotar-se. Os corpos também estão sujeitos a uma dominação abstrata, quando os mapas genéticos cruzam informações sobre gravidez, natalidade, paternidade. É uma alusão aos atuais regimes políticos calcados em Big Datas, que transformam esses dados em potentes e incontroláveis manipulações.
O corpo é um constante dos filmes de Gabriel Mascaro. Em Domésticas (2012), os corpos de empregadas são vistos, observados, enquadrados e revelam uma vigília, já que captados pelas retinas adolescente dos filhos do patrão. Com Boi néon (2015) Mascaro realça os diálogos corporais e de trocas entre homens e animais, como o boi do título. Irema (Juliano Cazarré) toca, acaricia, e coleciona partes dos bois de vaquejadas para compor um peculiar armário. Numa cena antológica, Cazarré masturba um cavalo garanhão para roubar seu valiosíssimo sêmen. Na sequência final acompanha-se uma transa entre Irema e uma mulher grávida, numa junção de corpos bastante rara de se ver no cinema. Em Divino amor o corpo torna-se um vetor de recalque e superação, já que o prazer precisa ser minuciosamente controlado para perpetuar a fertilização estatal.
“Quem ama não trai. Quem ama, partilha”. É com esse lema que os casais superaram, pela fé no amor, as tantas e normais crises que os conduziriam ao divórcio. Todos os corpos inclinam-se para essa biopolítica, essa rede de poder que transforma o amor num liame invisível, num feixe de união comum, que une todos os indivíduos de uma sociedade. Ou, ao contrário, aparta-os, radicalmente, quando alguns sujeitos não seguem à risca os preceitos morais da fé evangélica. É por esse viés que o amor revela-se mais uma forma de vigília, de aprisionamento e dominação do que, propriamente, uma transcendência espiritual e individual. O amor aponta uma espada, porta um cetro. O amor revela um corpo político, que é ora terreno, ora transcendental.
De forma ímpar e original, Divino amor dialoga com diversos filmes brasileiros contemporâneos que propõem retratos do nosso recente cenário político. Obras como Era uma vez Brasília (2017), de Adirley Queirós e Sonâmbulos (2018), de Tiago Mata Machado, realçam a escuridão de uma aporia que contaminou o imaginário político após o impeachment de Dilma Rousseff. Ambos são filmes densamente noturnos que enfatizam a imobilidade e a asfixia como formas de abordar a falência da democracia representativa da Nova República. O mais recente filme de Mascaro flerta com um prisma oposto. Sua distopia é colorida e em vários momentos a sociedade brasileira pulsa num ritmo esquisito, como se estivesse embalada por uma festa rave.
Tal como uma faca só lâmina, a fina ironia do diretor pernambucano talha tanto os afãs de redenção quanto uma prepotente crítica à fé evangélica. Subliminar, invisível, é a voz de um Messias que conduz a narrativa. Num timbre anômalo, emerge um ente sem forma definida. Por uma fala ainda não reconhecível, mas inteligível, esse Messias consubstancia-se num corpo inefável, ansioso e seguro para inventar um novo religar. Um corpo abstrato, que dispensa instituições, na forma, talvez, de um Leviatã digital. Um corpo sem nome – e seriam sem nomes os desígnios dos sujeitos livres, os vetores e tendões dos corpos dominantes. Uma voz que nina e embala o horror feérico de um futuro impronunciável.
PABLO GONÇALO é doutor em Comunicação pela UFRJ e professor adjunto do curso de Audiovisual e Publicidade da UnB