“Distanciar é ver em termos históricos”

“Distanciar é ver em termos históricos”
Cena de "O patrão cordial", nova montagem da Companhia do Latão

“Para os filhos de uma época científica, eminentemente produtiva como a nossa,
não pode existir divertimento mais produtivo que tomar uma atitude crítica
em face das crônicas que narram as vicissitudes do convívio social”
(Anatol Rosenfeld)

A Companhia do Latão está apresentando no Sesc Belenzinho, até o próximo dia 15 de dezembro, um espetáculo pleno de possibilidades estéticas e éticas, que procura não somente reatar os fios do melhor teatro político já produzido no Brasil como também propor uma discussão de nível bastante elevado a respeito da prontidão crítica que ainda podem exercer certos espécimes artísticos elaborados fora da lógica discursiva da cultura de massa – chamando especial atenção para a vocação do teatro como linguagem disposta a levar o espectador a entrar em contato com os chamados conteúdos de consciência. Trata-se de O patrão cordial, um roteiro cênico-musical escrito com base na improvisação dos atores do grupo a partir da peça O senhor Puntila e seu criado Matti, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, e de uma das obras fundadoras da historiografia e das ciências sociais brasileiras modernas, o ensaio Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda.

Desde 1996, quando foi criada, a Companhia do Latão vem se dedicando ao teatro épico de matriz brechtiana, tendo já produzido um espesso repertório de espetáculos cujas reflexões críticas nem sempre costumam ser bem compreendidas, dada a avidez que tem nossa crítica cultural de julgar, antes de entender; de rotular, antes de se lançar à análise mais conseqüente. Às formas intransigentes (que muitos preferem rebaixar à condição de um “teatro engajado” e nada mais) de Ensaio sobre o latão (1997), Santa Joana dos Matadouros (1998), O nome do sujeito (1998), A comédia do trabalho (2000), Visões siamesas (2004) e O círculo de giz caucasiano (2006), dentre outras criações, vem juntar-se agora esse O patrão cordial, espetáculo mergulhado em uma historicidade ímpar.

Surgido da reação contra o mecanismo de identificação presente no teatro dramático – quando o público simplesmente se deixa levar pelos acontecimentos emocionais vividos no palco e dirigidos a ele em forma de catarse –, o teatro épico desenvolvido por Brecht (chamado assim pelo dramaturgo e diretor a partir de 1926) opta por narrar um acontecimento em vez de mostrá-lo, fazendo com que os personagens exponham os fatos no lugar de dramatizá-los. Desse modo, o espectador é convidado a exercitar, ao longo do espetáculo, sua consciência crítica, analisando os vários pontos de vista produzidos, seja pelo narrador, o coro, as canções, o próprio encenador…, sobre a fábula que está sendo contada.

Datada de fins dos anos 1950, a presença do teatro épico no Brasil fecundou não somente o terreno da criação artística como também a área dos estudos literários e teatrais. A dramaturgia e os escritos teóricos de Brecht inspiraram o trabalho de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho, por exemplo, levando a cena brasileira a experimentar formas teatrais que explicitassem a relação entre arte e política, tão necessária às décadas de 1950 e 1960. Seguiram-se, desde então, diversas possibilidades de abordagem do gênero épico, desde as experiências com objetivos explicitamente políticos – como no caso da Companhia do Latão – até aquelas que fazem uso das estratégias épicas com vista a chamar a atenção para o jogo metalingüístico que o teatro pode proporcionar. Em relação à esfera da crítica, a noção do épico atingiu notória relevância no ensaísmo tão fascinante quanto rigoroso de Anatol Rosenfeld, Roberto Schwarz e Iná Camargo Costa, somente para registrar três nomes dos mais conhecidos. É essa densa memória da presença do teatro épico entre nós que as peças da Companhia do Latão procuram evocar, estabelecendo com ela, como não poderia deixar de ser, uma relação fecundamente dialética.

A estrutura narrativa de O patrão cordial segue integralmente a de O sr. Puntila e seu criado Matti, peça escrita por Brecht em 1940 na qual o efeito de distanciamento começa a funcionar a partir da própria estrutura épica da peça. Puntila, um fazendeiro finlandês abastado, é um sujeito peculiar: embriagado, é um homem bondoso e patriarcal; sóbrio, transforma-se em um egoísta contumaz. Desse modo, o personagem vive em constante contradição consigo mesmo, uma vez que o Puntila sentimental e o Puntila impiedoso se embatem e se criticam mutuamente, levando o espectador a identificar nessa postura de retro-estranhamento o efeito de distanciamento que a fábula pretende atingir. Diz Anatol Rosenfeld sobre a peça: “Se no estado social da normalidade [Puntila] é um ser associal, no estado associal da embriaguez passa a ser um homem de sentimentos sociais. Como em outras peças em que os criminosos proclamam valores burgueses e até cristãos, aqui o embriagado torna-se portador de valores elevados. Puntila é, portanto, associal em todas as circunstâncias; a sua maldade é ‘normal’, a sua bondade ‘anormal’ e por isso sem valor. É um indivíduo em si mesmo destrutivo – segundo Brecht devido à sociedade em que vive e à função que nela exerce. Quanto mais se esforça por ser humano, a fim de corresponder aos valores ideais pregados pela nossa sociedade, tanto mais se animaliza e se ‘aliena’ no sentido social (só mesmo um louco tem o privilégio de poder ser bondoso); e quanto mais se ajusta, no estado sóbrio, à dura realidade social, tanto mais se animaliza em face dos valores supremos proclamados por esta mesma sociedade”.

O procedimento de trabalho do Latão faz com que, em O patrão cordial, Puntila se transforme em Cornélio, um fazendeiro da região do Vale do Paraíba, no início dos anos 1970, quando o “milagre econômico” produzido pela ditadura militar chamou muitos brasileiros a ingressarem, entusiasmados, nas fileiras do capitalismo empreendedor, embora poucos, de fato, tenham sido escolhidos a nelas permanecer. Para além do Puntila brechtiano, Cornélio é o brasileiro que se verga ao peso das “relações de simpatia”, procurando reduzir as relações impessoais – próprias da esfera pública onde se insere o mundo do trabalho – a um padrão pessoal e afetivo. Sobre a caracterização do conceito de cordialidade (que Sérgio Buarque de Holanda tomou do escritor Ribeiro Couto), diz Antonio Candido: “O ‘homem cordial’ não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos e aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez. O ‘homem cordial’ é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários”. O encontro entre Puntila e Cornélio, então, faz com que a Companhia do Latão explore, com a sagacidade habitual, o imaginário das relações de trabalho no país, representadas por indivíduos que lutam com suas funções sociais. Passadas quase oito décadas da publicação de Raízes do Brasil e quarenta anos depois do milagre econômico, o mundo do trabalho no Brasil – alerta o espetáculo – continua pautado por uma “mentalidade cordial” (a expressão é de Antonio Candido), que cria uma sociabilidade apenas aparente e, portanto, inócua na estruturação de uma ordem coletiva.

Paralelamente a esse amplo e denso espectro de reflexões, o espectador de O patrão cordial é brindado pelo trabalho de altíssimo nível realizado pelos atores do grupo – cada um a seu modo lançando-se com muita vivacidade ao jogo do ator-narrador. Ney Piacentini dota Puntila de um domínio vocal e corporal típicos do excelente ator que ele é. Helena Albergaria atinge com Vidinha (no original, Eva) momentos muito intensos, desdobrando-se, como é preciso, tanto em sujeito da narração como em objeto da narrativa. Há ainda uma outra figura feminina cuja performance, embora mais discreta, é igualmente arrebatadora: trata-se de Adriana Mendonça, que, além da bela voz ao cantar, empresta às três personagens que desempenha (a cozinheira, a moça do bar, a mulher do capitão) uma energia pulsante. A presença em cena de Renan Rovida também é digna de nota. O ator confere ao camponês comunista e à “noiva” de Puntila uma aura de patética dignidade, para a qual concorrem uma máscara facial e uma expressão corporal bastante envolventes. Rogério Bandeira dá a Vítor (o Matti do original) a firmeza e a sensualidade que o papel requer, escudado pela vibrante presença que tem em cena. Ricardo Monastero “estranha” o attaché Hélio ao limite da histrionice e se sai muito bem da empreitada. Carlos Escher (o agregado e a moça da loja) e Rony Koren (o trabalhador, a moça do leite e o garçom) também logram bons momentos em cena, afinados que estão com o trabalho de atuação coletiva diligentemente construído.

Outro recurso notável diz respeito à direção musical a cargo de Martin Eikmeier, que também participa do espetáculo tocando acordeom ao lado do violonista Alessandro Ferreira. Ambos os músicos, à margem do palco, além de acompanharem os atores nos songs, executam peças autônomas que transmitem impulsos sonoros muito ricos (ligados à musicalidade popular interiorana), cuja função é comentar o texto e acrescentar-lhe novos horizontes. No comando de toda essa complexa estrutura (registre-se ainda a plena eficiência do cenário e dos figurinos de Cássio Brasil e da iluminação de Melissa Guimarães), destaca-se a direção firme de Sérgio de Carvalho – cuja perspicácia intelectual soa tão rara nos dias de hoje.

Em tempos nos quais imperam discursos apologéticos tanto sobre o capitalismo triunfante quanto sobre a pós-modernidade inescapável, vale a pena querer ouvir o que a Companhia do Latão tem a dizer. Bertolt Brecht e Sérgio Buarque de Holanda continuam atuais, e os temas encenados em O patrão cordial repercutem diariamente na vida brasileira. Para os interessados (e – por que, não? – para os anti-brechtianos ferrenhos também), recomenda-se, além da peça, a leitura de Brecht e a questão do método, livro no qual o crítico norte-americano Fredric Jameson dota a investigação teórica que empreende a respeito da obra do dramaturgo alemão de argumentos desconcertantemente inteligentes. Por fim, um aviso aos anti-brechtianos ferrenhamente cordiais: é fazendo uso da inteligência racional e não da convicção pessoal que se deve entrar no espetáculo e experimentar o que ele tem a propor.

O patrão cordial
Onde:
Sesc Belenzinho – R. Padre Adelino, 1000 – Belenzinho (SP)
Quando: até 15/12 – sex. e sáb., às 21h30; dom., às 18h30
Quanto: R$ 25
Info.: (11) 2076-9700


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