Dissecação
O problema aconteceu com um deles: vestido de bermudas, camiseta com estampa de posto de gasolina, um tênis jovial de quem se acostumou ao surf, à rua, a não ter pressa. Na mão, onde outros traziam bisturi, ele escondia a pequena faca. Exigia, como garoto mimado, participar da dissecação.
O morto fora preparado um dia antes. A expectativa dos convidados cuidadosamente selecionados era imensa. Nenhum alarde, como convinha à solenidade da ocasião. Os participantes estavam cientes de seu papel na atividade com a qual estavam habituados. À sua maneira cada um sabia-se parte do coletivo. Conheciam a importância fundamental da clandestinidade que importa nesses contextos. A família reunira-se para o fim de semana na casa grande. O segredo quanto ao local da ação e ao seu sentido fora cuidadosamente preservado.
Os interessados compareceram ao evento munidos de variados instrumentos cortantes, em geral singelos. Canivetes e facas, adagas e navalhas podiam ser escondidas com facilidade na bolsa ou na manga. Uma beata da igreja, uma anã, vários médicos, donas de casa, uma mulher grávida, vendedoras de lojas do centro, funcionários públicos, professores e diretores de escolas. A vizinhança e os estrangeiros, todos com a mesma seriedade. As crianças presentes, trazidas pelos pais, preferiam brincar lá fora.
O homem de bermudas era um penetra. A anfitriã, que media cada um dos presentes milimetricamente, travando com cada um relações cordiais, percebeu algum sinal de desproporção. Desconfiada com o modo como ele trazia a faca, fingiu não entender por que estava armado. O segurança, disfarçado de garçom, retirou-o para fora sem que o inexperiente judas apresentasse grande resistência.
Foi preciso dispersar a ação. O cadáver era agora o problema. Posto na geladeira estaria saudavelmente esquecido até a próxima oportunidade.