Direito de resposta de Leonardo Rafael Leite da Rocha ao texto “Entre o preto e o branco: as parditudes como ode à mestiçagem”

Direito de resposta de Leonardo Rafael Leite da Rocha ao texto “Entre o preto e o branco: as parditudes como ode à mestiçagem”

 

Direito de resposta de Leonardo Rafael Leite da Rocha ao texto “Entre o preto e o branco: as parditudes como ode à mestiçagem”, de Matheus de Moura, publicado na Cult 307, de julho de 2024:

A Revista Cult, de propriedade da Editora Bregantini, publicou em 25 de junho de 2024 o dossiê “A questão do pardo no Brasil: discussões sobre identidade, desigualdade racial, política de cotas, fronteiras coloniais, colorismo e autodeclaração”. Fui entrevistado para uma das matérias deste dossiê, intitulada “Entre o preto e o branco: as parditudes como ode à mestiçagem”, de autoria do jornalista Matheus de Moura. Venho por meio deste direito de resposta esclarecer publicamente as graves distorções e afirmações equivocadas feitas na referida matéria, que alteraram o sentido das minhas declarações e posicionamentos.

Iniciarei pelo ponto mais sério: o uso da palavra “ressentimento” pelo jornalista responsável pela matéria, especialmente no trecho a seguir: “em todos esses discursos apresentados […] o ressentimento contra negros ou contra a categoria negro parece imperar tácita ou explicitamente” (p.33). Ao usar o termo “ressentimento contra negros” para descrever os discursos analisados, incluindo os meus, o jornalista sugere que todos os entrevistados compartilham desse sentimento. Em momento algum o texto sequer considera que minhas críticas e discordâncias são endereçadas a ideias específicas propugnadas por movimentos políticos; ao invés disso, afirma que nutro ressentimento contra pessoas negras.

Criticar uma ideia é diferente de nutrir ressentimentos contra um grupo inteiro de pessoas. O que tenho são críticas e divergências em relação a uma ideia específica: a de que os pardos devem ser necessariamente classificados como negros. Pois se assim o for, o estado do Amazonas seria um dos mais “negros” do Brasil: 73,7% (68,79% pardos + 4,91% pretos). No entanto, essa conclusão se mostra insustentável quando consideramos que, em 1872, 63,9% da população do Amazonas era cabocla, uma categoria ainda hoje viva na cultura popular (vide as toadas do Festival de Parintins), mas ignorada no debate racial. Aos que defendem que “os pardos são negros” (ignorando a pluralidade que lhes é constitutiva), pergunto: poderiam apresentar teorias ou hipóteses que expliquem quais fatores históricos ou demográficos levaram o Amazonas a passar de 63,9% caboclo para 73,7% negro em apenas um século e meio? Considerando que a maioria dos pardos amazonenses descende de indígenas e não de africanos, uma mudança demográfica de tal magnitude seria atípica e de uma escala sem precedentes. Esta é a questão que fundamenta minha crítica. Convido-os a identificar traços de “ressentimento” na crítica e questionamento que estou apresentando.

Este não foi o único problema na matéria em questão: meu nome aparece, junto ao de outros entrevistados, na subseção do texto intitulada “Os ‘movimentos’ de mestiços” (p.30), onde Moura afirma que passei “a levantar a bandeira da mestiçagem” (p.31), sugerindo que sou ativista de algum movimento mestiço. Bem, interessar-se pela temática, estudá-la e debatê-la é diferente de se filiar a um movimento e militar por ele – algo que, até o momento, não fiz. Aliás, no momento da concessão da entrevista, deixei isso claro antes mesmo de responder à primeira pergunta: “não sou ativista de nenhum movimento político”, afirmei a Moura. Esse detalhe importante, por algum motivo, foi omitido da matéria.

O jornalista também afirma que eu proponho “outras categorias de análise: caboclo (considerado ofensivo em alguns territórios do Norte, o que ele mesmo reconhece), mulato (considerado ofensivo por pessoas negras em geral) e moreno […] todos dentro da categoria pardo” (p.32). Aqui, Moura atribui diretamente a mim uma proposta que é, na verdade, do antropólogo Antônio Risério, que fora devidamente citado na entrevista. No livro “Mestiçagem, identidade e liberdade” (2023), o antropólogo (não eu) propõe a “tripartição” da categoria parda a que Moura se refere no texto. Além disso, o jornalista comete uma imprecisão factual ao dizer que sou “neto de indígenas” (p.31), quando, na verdade, lhe afirmei que sou bisneto. Meus avós, assim como eu, são descendentes de indígenas. Caboclos – o que é motivo de orgulho para nossa família.

Também afirma que eu disse que Gilberto Freyre “foi uma das pessoas que mais combateram o racismo […] e isso tem que ser celebrado” (p.31). Essa afirmação não reflete o contexto completo das declarações que, de boa-fé, concedi durante a entrevista, porém foram omitidas na matéria. Esclareço que mencionei que Freyre publicou “Casa Grande & Senzala” em 1933, época em que o mundo testemunhava a consolidação das leis Jim Crow e a ascensão do nazismo, bem como o regime de segregação que deu origem ao apartheid na África do Sul – todos estes regimes tinham um repúdio comum à miscigenação. O fato de Freyre ter abordado a miscigenação de forma positiva em plena década de 1930 foi, de fato, historicamente relevante. Entretanto, ao longo dos últimos 90 anos, o conhecimento científico evoluiu e sabemos que a miscigenação não eliminou o racismo. O fato de eu reconhecer a importância da obra de Freyre para o contexto e pensamento de sua época não significa que eu faça “ode” ao mito da democracia racial, como a matéria parece querer sugerir.

Moura afirma ainda que “para esses defensores centrais da mestiçagem [onde me inclui], o Nação Mestiça faz um trabalho importante com seu ativismo” (p.32). Esclareço que sequer citei o movimento Nação Mestiça – com o qual, na verdade, tenho divergências ideológicas. Ainda assim, a matéria sugere que estou alinhado ao mesmo espectro ideológico do Nação Mestiça, o que fica evidente na frase final: “muitas dessas comunidades e narrativas acabam por andar na corda bamba, ora segurando a mão do conservadorismo centrista, ora se apoiando nas franjas da extrema direita” (p.33). No entanto, quando se deseja compreender a identificação política de alguém, é apropriado perguntar diretamente à pessoa – o que não ocorreu comigo na ocasião da entrevista. Se me perguntasse, Moura saberia que me identifico com a social-democracia, uma ideologia de centro-esquerda, e não necessitaria inferir que sou de “extrema-direita” ou “conservador”.

Não que ser conservador seja um problema ou uma ofensa – vivemos em uma democracia, e esse é um posicionamento político válido, ao qual adere nada menos que metade do eleitorado. Contudo, não é essa a ideologia com a qual me identifico. A conclusão apressada e a rotulação política indevida na matéria demonstram um jornalismo panfletário e sem rigor, assim como uma falta de respeito à minha própria autoidentificação. Atualmente, qualquer crítica aos movimentos identitários tende a ser rapidamente associada à “extrema-direita”, independentemente da real orientação política da pessoa. Seja um conservador, um marxista, um liberal ou um social-democrata: todos podem ser rotulados como “extremistas de direita” se divergem das ideias dos movimentos identitários. A matéria de Moura é um exemplo dessas simplificações maniqueístas que comprometem o debate público contemporâneo.

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