Dionisíaca paulistana

Dionisíaca paulistana

Gólgota Picnic, de Roberto Cafaggini

por Welington Andrade

“Nosso Teatro atual não está à la page de nossa sensibilidade e é a ruína do Teatro.”
Ortega y Gasset

Todos os cultores de teatro mundo afora devem a Psístrato, o perspicaz tirano de Atenas no século 6 a.C., duas das contribuições mais consequentes para a história do teatro, em particular, e para o desenvolvimento da cultura ocidental, de modo geral. Entusiasta do comércio e das artes, o tirano (vocábulo que no mundo grego antigo não implica a noção de despotismo e, sim, a de alguém que está fora da linha de sucessão do trono – não nos esqueçamos de que Sófocles batizou sua peça de Oedipus Tyrannus, porque o rei, supostamente um estrangeiro, toma o poder em Tebas sem fazer parte daquela casa real) foi o fundador das Panateias, festas em honra a Palas Atenas, e das Grandes Dionisíacas, festas rituais e dramáticas em honra a Dioniso. Além disso, em 534 a.C., Psístrato convidou o ator Téspis a participar da Grande Dionisíaca, e este introduziu no festival uma novidade, criando a figura do solista (hypokrites), que apresentava o espetáculo e dialogava diretamente com o condutor do coro. Foi essa invenção que levou o primitivo culto a Dioniso a abandonar sua condição ritual e a caminhar em direção a um estatuto propriamente artístico, fazendo com que a incipiente arte do teatro pouco a pouco fosse investida da fama e do penhor de uma grande festividade pública. Diz Margot Berthold, em sua História do teatro mundial, que “nenhum dos presentes na Dionisíaca de 534 a.C. poderia sonhar com o alcance das implicações que este acréscimo inovador de diálogo ao rito traria para a história da civilização”.

No mês em que São Paulo abriga um festival internacional de teatro, cuja programação aponta para uma consistência estética e uma articulação sociocultural notáveis, os paulistanos certamente serão convidados a refletir sobre as contribuições à vida cultural e intelectual da cidade que um evento de tal porte pode trazer. Espraiada por vários teatros paulistanos, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) acontece de 8 a 16 de março, apresentando espetáculos da Itália, França, Espanha, Lituânia, Argentina, Turquia, África do Sul, Uruguai e Chile. Paralelamente ao rico e variado repertório de criações teatrais, cujas marcas distintivas são a experimentação e a inovação de linguagens, o evento – nascido de um encontro entre Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, e Guilherme Marques, diretor geral do Centro Internacional de Teatro Ecum (CIT-Ecum) – organizou uma série de atividades que tomam não somente a arte específica do teatro, mas também o próprio cidadão paulistano, como objetos de suas preocupações.

Impossível conceber a vitalidade teatral de uma cidade sem que ela tenha como contrapartida um amplo universo educacional e intelectual a seu dispor. Se, por um lado, os estudos teatrais têm ganhado uma espessura e uma densidade bastante visíveis nos últimos anos – graças, sobretudo, às pesquisas universitárias que vêm chegando com certa regularidade ao mercado editorial –, por outro, o espectador não especializado ainda carece de políticas culturais públicas que ampliem a oferta de espetáculos para além dos eixos tradicionais e garantam o seu acesso a projetos educativos e de ação cultural que qualifiquem sua sensibilidade e sua intelecção a respeito do fenômeno teatral. Seria cômico, se não fosse trágico, mas é bastante comum ouvir artistas e intelectuais queixando-se da falta de adoção de uma política cultural permanente que comece logo a dar resultados na esfera da formação de público – impactando a recepção da arte, da cultura e até mesmo da educação em nosso país.

Os doze espetáculos que integram a Mostra procuram investir em uma teatralidade pulsante, inquieta, disposta a fazer tremer grande parte de nossas convicções bem-pensantes. Da Itália chega Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, espetáculo criado pelo diretor italiano Romeo Castellucci, que integra um ciclo de pesquisas cênicas dedicadas ao rosto humano. A montagem argentina Cineastas, dirigida por Mariano Pensotti, trata da vida íntima e pública dos diretores de cinema. Gólgota picnic, do espanhol Rodrigo García, revisita o calvário de Jesus Cristo sob uma perspectiva crítica aos valores de adoração e mercantilização da fé. Na versão de Hamlet, do diretor lituano Oskaras Korsunovas, o texto de Shakespeare é transposto para o espaço de um camarim, com seus espelhos de maquiagem que, aos poucos, transformam-se no reino da Dinamarca. Da França chegam duas criações: Nós somos semelhantes a esses sapos… e Ali, a cargo da companhia Les Mains, lês Pieds et la Tête Aussi. O espetáculo sul-africano Ubu e a Comissão da Verdade, dirigido por William Kentridge, baseia-se nos interrogatórios da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul e no hoje já clássico texto de Alfred Jarry. Criada a partir de uma experiência de abuso sexual, a performance Eu não sou bonita, da espanhola Angélica Liddell, apresenta uma crítica à sociedade patriarcal e aos papéis que ela impõe às mulheres desde o nascimento. O espetáculo turco Anti-Prometeu, com direção de Sahika Tekand, discute a tragédia do homem contemporâneo preso em seu pequeno mundo pessoal, incapaz de interferir na realidade que o circunda. A montagembrasileira De repente fica tudo preto de gente, de Marcelo Evelin, investiga o conceito de massa a partir do livro de Elias Canetti, Massa e poder. O uruguaio Bem-vindo a casa, dirigido por Roberto Suárez, constitui uma tragicomédia que gira em torno do destino do homem-elefante. Por fim, Escola, do chileno Guillermo Calderón, repercute os recentes atos públicos de resistência política e o espírito das manifestações que vêm tomando as ruas em diferentes países.

Além das apresentações teatrais, propriamente, e da realização de um fórum de encontros e de práticas de intercâmbios artísticos, que pretendem estreitar os laços de convivência profissional entre os mais variados participantes do evento, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo concentra grande parte de sua programação na realização de atividades de pesquisa e de reflexão (Diálogos Transversais, Percursos em Perspectiva, Espaço de Ensaios, Pensamento-em-Processo, Prática da Crítica, Metacrítica e Crítica da Crítica), reunidas sob o nome de “Olhares Críticos” e a cargo de professores, jornalistas, críticos, pesquisadores e intelectuais de intensa atuação na cultura brasileira.

Teria um festival como esse o poder de desenvolver novas relações do cidadão paulistano com os equipamentos culturais da cidade? Teria também ele o poder de estimular novos comportamentos e de convidar ao exercício de um novo pensamento político – já que as teatralidades contemporâneas têm seguido firmes em seu propósito de ocupar a polis como o maior dos palcos cênicos? Se o evento começar a ocorrer regularmente e fecundar uma série de ações culturais correlatas, certamente as respostas serão bastante positivas.

Ainda vivemos uma realidade em que é nítido o contraste entre as antigas formas da cultura institucionalizada e um conjunto de novas práticas e mentalidades culturais dispostas a estabelecer outros tipos de socialização. Um projeto de ação cultural não pode refletir uma realidade que lhe seja estranha. É a cultura que elabora o jeito de o cidadão ser e estar no mundo. A própria consciência de cidadania nasce e se desenvolve com a cultura. E quando esta se exprime sob a forma de uma arte teatral genuína, inquieta e transgressora, o pensamento e o mundo do cidadão tendem a melhorar.

welingtonandrade@revistacult.com.br

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