Diário de Anita

Diário de Anita

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Diário de Anita de Patrícia Raffaini, ganhador do prémio Escritor Revelação (Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil) de 2023, implicou a publicação do volume pela Editora do SESI;IEB/USP, com uma série de ilustrações em aquarela de Graça Lima. Trata-se do diário imaginado da artista plástica paulistana Anita Malfatti (1889-1964), que vai de julho de 1910 a agosto de 1923, abrangendo os anos de formação da artista, suas primeiras exposições e sua participação na Semana de Arte Moderna. Patrícia Raffaini, a autora, pós-doutorada e pesquisadora da história da literatura para jovens e crianças, conta ter recebido o convite do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) para escrever um livro em estilo infanto-juvenil sobre Anita Malfatti, coisa que conseguiu fazer admiravelmente. Numa escrita cheia de frescor e empatia, fez Anita contar sua vida familiar, seus estudos, suas viagens, suas amizades, suas obras, suas exposições, culminando com a famosa Semana de 1922.

Sabe-se que o pai de Anita era um engenheiro italiano e a mãe uma professora de pintura norteamericana de ascendência alemã. O pai chamava-se Samuel Malfatti e a mãe, Betty Krug. Anita havia nascido com uma deficiência física, o braço e a mão direita eram atrofiados e os pais a levaram a Lucca, na itália, para uma cirurgia que não deu os resultados esperados.

Desde cedo, uma professora particular a treinou a praticar com a mão esquerda. Infelizmente, o pai de Anita morreu cedo, deixando-a órfã, quando adolescente, e provocando na menina um trauma profundo. Sabe-se também que ela não se casou, dedicando sua vida à pintura e ao ensino de sua arte que era, ao mesmo tempo, vocação, escolha, profissão.

A biógrafa conseguiu não só dar uma imagem viva, rica e fidedigna da artista, fruto de pesquisas aprofundadas, consultas em bibliotecas, jornais, revistas, manuscritos, etc., mas apresentar a própria Anita vivenciando esse período de pouco mais que um decênio, como protagonista . Anita tinha sensibilidade e afetividade – como ela mesma diz – meio italianas e meio alemãs –, comovia-se, inspirava-se, mas sempre foi segura em suas escolhas e em seu fazer, o que viria a torná-la um exemplo de realização e caráter.

Sua juventude nos lembra da São Paulo antiga, quando o Theatro Municipal ainda estava em construção (será inaugurado em 14 de outubro de 1911, com O guarani de Carlos Gomes e com uma audiência de 20.000 pessoas), quando na Praça da República havia um circo, e quando a educação das moças implicava compras de partituras na casa Levy e de material de pintura na casa Venorden, sem esquecer a aquisição das roupas da moda na casa Sloper.

Seu tio Jorge, alemão, casado sem filhos, tornou-se seu mecenas. É graças a seu amparo que ela pode estudar na Alemanha e nos Estados Unidos. Ele era um arquiteto muito rigoroso e dava aulas na Politécnica, e era ele quem lhe havia havia inculcado o lema: “nunca aceite o medíocre.” Ao acatar esse princípio durante sua vida afora, as observações de Anita nada têm de pedante, muito pelo contrário: denotam uma jovem recém entrada nos seus vinte anos, amante da natureza, da música, das amizades, da vida familiar, dos longos passeios, das obras dos artistas, procurando e achando a forma de se expressar justamente no desenho e na pintura que foi aprimorar no estrangeiro.

Seus primeiros estudos se deram em Berlim, no fim de 1911, no Museu Real de Artes e Ofícios, onde aprende, visitando exposições e salas de concertos (seu lado italiano adorava óperas!), que o vazio na tela é como o silêncio na música, e que para pintar é preciso, antes, saber desenhar. Com o professor Fritz Burger ela estuda a harmonia das cores e, nas férias ,em Colônia, mergulha nas pinturas de Van Gogh, Cézanne, Gauguin, Signac, Picasso e Edvard Munch, grande representante do movimento de vanguarda, o Expressionismo, nascido na Alemanha em 1910.

De volta a Berlim, frequenta o ateliê de Lovis Corinth, onde faz amizades valiosas que durarão a vida inteira e aprende a representar anatomicamente modelos nus. Começa também a trabalhar com gravuras em metal e com xilogravura. Já se passaram mais de três anos, estamos em 1914, a situação política é incerta e a guerra na Europa parece iminente: é hora de voltar.

Ao voltar, ela visita, em Paris, as obras de Rodin e a Academia Julian. Em Boulogne-sur-mer embarca para o Brasil. Encontra os seus ao chegar em Santos no dia 2 de maio de 1914, e passa a residir com a família na avenida Angélica ,esperando a chegada de uma série de caixotes com desenhos, pinturas e gravuras realizadas nesses três anos e meio. Parte das obras chega, mas — infelizmente — parte se perde. Surge-lhe a ideia de expor uma seleção de sua pinturas naquilo que era, na época, um local privilegiado para exposições: o Mappin Store, na rua 15 de Novembro. Visitam sua exposição, entre outros, os pintores Clodomiro Amazonas, Pedro Alexandrino, e o jornalista Nestor Pestana, que comandaria o Estadão até 1918. A exposição é um sucesso. Altino Arantes e Ramos de Azevedo, que também a visitaram, são cogitados para que lhe seja concedida juma bolsa de cinco anos em Paris, para aprimorar seus estudos artísticos. Entretanto, o mundo é surpreendido pela morte de Francisco Ferdinando em Sarajevo, vítima de um atirador: a Europa entra em guerra e já não é mais viável voltar para lá… “Já que não posso ir a Europa eu vou para Nova York”, pensa ela, sempre entusiasmada. Lá reside parte da família materna. Novamente, o tio que havia patrocinado seus estudos na Alemanha paga-lhe, agora, a viagem, a estada e as taxas de matrícula. Para lá ela viaja no dia 18/11/1914, embarcando no navio inglês da Lloyd que parte de Santos e chega a Nova York, onde ela passa a residir na rua 85, número 211, alojando-se com a família Ward. Na época, em Nova York havia 5 milhões de pessoas, sendo que 2 milhões só em Manhattan. Lá ela se inscreve na Arts Students League, da rua 57 ,e pode escolher disciplinas a seu gosto. Frequenta, entre outros, o curso de anatomia é aprende a pintar objetos em movimento. Num primeiro tempo estranha os colegas: “eles só pintam e vão embora!” Repara, comparando-os se com os da Alemanha que lhe eram mais próximos. Em breve ela conhece uma outra escola de pintura, no Broadway e decide abandonar a da rua 57. Na nova escola, a Independent School of Art,  procura pelo professor Homer Boss que, no momento, ( é época de férias) se encontra na ilha de Monhegan, na Costa do Maine. Ela vai até lá com poucos colegas e fica hipnotizada pelo professor e encantada com o método de ensino dele, que a inicia por uma viagem em um barco a vela. Ela não sente medo algum, apesar do mar revolto. “ Muito bem!”, diz- lhe o professor. Na ilha só há 15 ou 20 famílias que se alimentam de lagosta e bacalhau e a liberdade é total. Ali, embebida de luz, silêncio, cores, sombra, aprende que quando se transpõe a forma é preciso fazê-lo com a cor. Suas pinceladas são fortes, incisivas ( masculinas, dirão, mais tarde, os críticos brasileiros). De volta a Nova York, não frequenta apenas as aulas, mas se imerge na vida cultural da cidade. Apresentações de Isadora Duncan, a grande bailarina que interpreta Édipo rei , Duchamp que expõe seu Nu descendo a escada e a primeira manifestação de sufragistas da história americana, no Central Park, em 23/10/1915, são exemplos disso. O cubismo está no ar. Regozija-se: “ Sou artista! Vivo entre as cores!” Ela é convidada a enviar algumas ilustrações para a revista Vanity Fair. Assiste a performance do bailarino Diaguilev, lê a premio Nóbel sueca Selma Lagerlöf e se entusiasma com a viagem maravilhosa de Niels. Aprende a técnica de trabalho com pastel e carvão. Pinta um modelo italiano e recebe elogios: “ Ele tem caráter!” Pinta e desenha febrilmente. Infelizmente, é hora de pensar em voltar para o Brasil: os Estados Unidos entrarão na guerra.

Embarca num transatlântico inglês com destino a Buenos Aires  e desembarca, de novo, em Santos. “ O que farei no Brasil?” A dúvida dura pouco tempo. Sempre otimista, ela se convence: há um milagre em cada recomeço! Leva para São Paulo boa parte das obras que pintou pensando em novas exposições e mostra duas delas ao tio Jorge. “ Saõ coisas dantescas!” diz ele, diante de A boba e de O homem amarelo. O homem amarelo será o quadro que Mario de Andrade ( por quem Anita passou a nutrir uma profunda amizade) haverá de querer para si. Enquanto planeja a exposição, ela junta-se à mãe nas aulas particulares de pintura, entra para o curso da Cruz Vermelha na Aclimação e participa de um concurso para representar pictoricamente o Saci de Monteiro Lobato. Quem ganha é Ricardo Cipicchia, pintor e autor do “ Porco ensebado”, uma das esculturas em bronze mais famosas do Parque Ibirapuera.

Ela expõe algumas telas pintadas nesse último ano na Galeria Garraux, no Rio de Janeiro e Emiliano Di Cavalcanti, admirador de seus trabalhos , insiste para que ela realize uma mostra em São Paulo, como pintora moderna. O local é a Rua Libero Badaró 111 , espaço cedido pelo conde de Lara. A exposição é aberta em 12 de dezembro de 1917 e ela expõe nada menos que 53 obras, entre as quais Nu cubista e o Homerm amarelo são a sensação. Guilherme de Almeida , Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Edgard Parreiras, o próprio Altino Arantes, governador de São Paulo e muitas outras pessoas gostam da exposição e o demonstram comprando seus

quadros.( A nota dissonante: Monteiro Lobato, no artigo “ A Propósito da Exposição Malfatti” para o jornal O Estado de São Paulo, em 20/12/17, escreve uma frase que se tornará famosa: “Paranoia ou Mistificação?”, entre outras mais “pesadas”, em que assemelha as pinturas de Anita às dos doentes em hospícios, o que o afasta antecipadamente dos modernistas de 1922.)

A “tática destrutiva” de Lobato entristece Anita que passará mais de dois anos sem pintar, dedicando-se apenas ao ensino de pintura e História da Arte.

Estamos em 1918.Há uma epidemia de influenza em São Paulo que mata mais de 2.000 pessoas. Quando a epidemia é debelada a cidade renasce e com ela, Anita também renasce. Passa a frequentar o ateliê de Pedro Alexandrino, visitado por Tarsila do Amaral que se torna sua amiga e , juntas, vão assistir O contratador de diamantes de Afonso Arinos no Theatro Municipal. Em julho decide enviar sua tela Toilette para o Salão Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Aos poucos, volta a pintar intensamente retratos e paisagens ao ar livre. Junta obras para sua terceira exposição individual que será no Club Comercial , na rua São Bento, de 18/11 a 4/12 de 1920. O Diario Popular elogia-a. Cipicchia, Paulo do Valle Jr., Sylvio Penteado, Hugo Adami, Mario de Andrade e Victor Brecheret ( que, mais tarde, ganhará a bolsa para Paris) a aplaudem. Menotti del Picchia, se opondo ao que Lobato escrevera, escreve no Correio Paulistano: “Pensei que seria injusto não colocar uma voz de defesa ao lado dessa interessante pintora que, a meu ver, entre as telas que expõe agora, nos mostra algumas que, em qualquer outro centro, consagrariam o nome de um pintor moderno”. O saldo é positivo, Anita fica animada, leciona no Mackenzie, organiza outra mostra em Santos no começo de 1921 e … a vida continua.

“Hoje Di Cavalcanti veio me visitar com uma boa novidade—aquela ideia que nasceu na exposição dele [ em 15 de novembro de 1921,na rua com o mesmo nome, na livraria O Livro] de fazermos uma grande mostra de pintura moderna cresceu e já arregimentou colaboradores… Paulo Prado, Graça Aranha, Villa-Lobos… conseguiram até chamar Guiomar Novaes que tocará em dois dias; a presença dela é garantia certa de público. Já foram também confirmadas as participações de John Graz, Vicente do Rego Monteiro, Almeida Prado, Ferrignac, Martins Ribeiro, Zina Aita, e – claro – a minha e a de Di …A mostra acabou ficando mesmo muito audaciosa, contará com as esculturas de Brecheret e Haarberg, desenhos e maquetes de arquitetos, um deles amigo de nossa família, Antonio Moya e de Georg Przyrembel. Isso sem falar das conferências que serão feitas por Graça Aranha, Oswald, Mário, Menotti e vários outros”.

De 13 a 17 de fevereiro acontece a famosa Semana. “Hoje di Cavalcanti me mostrou o catálogo impresso, ficou muito bonito, com uma capa que ele mesmo desenhou especialmente para o evento. Nossa mostra se chamará “Semana de arte moderna”. Quando fiquei sabendo, achei engraçado porque, na verdade, serão três dias alternados de apresentações, e não uma semana de fato”. Seu acompanhamento por Anita, que lá expõe “umas vinte telas”, acresce à História por todos conhecida uma série de detalhes, de fatos e de personagens interessantes, não apenas para os jovens a quem se dirige o livro, mas para todos nós.

Só para encerrar: em 17 de março de 1922, Freitas Valle, do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, decide que a bolsa na França será, dessa vez, atribuída à pintora Anita Catarina Malfatti. Todos nós, leitores e torcedores, ficamos contentes e ao terminar de ler o livro, queremos mais. O que terá achado Anita daqueles seus anos parisienses? E do Brasil, depois de sua volta?

Aurora Bernardini é professora, escritora e tradutora. É doutora pela USP com tese sobre o futurismo russo e italiano e fez livre-docência na mesma instituição sobre a poeta russa Marina Tsvetáieva. Já traduziu mais de cinquenta livros, além de ter organizado obras como O futurismo italiano: manifestos, Mitopoéticas: da Rússia às Américas e A estrutura do conto de magia.


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