Diana: a necessária fratura do cotidiano em tempos de pandemia

Diana: a necessária fratura do cotidiano em tempos de pandemia
Celso Frateschi em cena no monólogo "Diana", exibido pelo Sesc no projeto #EmCasaComSesc (Foto: Edson Kumasaka/Divulgação)

 

A fratura

A experiência estética provoca uma fratura na ordem dos acontecimentos cotidianos, ela descontinua a ordinariedade e leva o espectador/leitor a um outro plano, em que a vida desvela uma vida outra, aquela a que a estesia dá acesso. Assim ensina Algirdas Julien Greimas em Da imperfeição. Essa ruptura conduz à outra realidade para a qual somos transportados; no trajeto, o peso, as dores, as agruras do cotidiano ficam para trás, mergulhamos em um universo que por desequilibrar a ordem vigente leva-nos à (re)equilibração, seja pela reflexão, seja pelo efeito do objeto que nos afeta, pela catarse. Desse modo, quando saímos da leitura de um livro, de uma sessão de cinema, de um espetáculo de música, da sala de teatro não somos os mesmos. O caminho que ali trilhamos quebrou o cotidiano.  Não se suturam as fraturas, os ossos se refazem, as cicatrizes ficam – maiores ou menores.

Talvez a fratura causada pelo teatro seja a mais radical. Em algumas peças, além da dimensão da palavra, das imagens e signos, a duplicidade cena/plateia é enlaçada pela visão, pelo olhar que o ator dirige ao público e que este lhe devolve, materializando a experiência extraordinária do acontecimento estético. Poderíamos pensar que a troca de olhares entre o ator e o público no teatro é como o enjambement de um poema: o olhar do ator é um verso prestes a despenhar, mas o olhar do público, de uma pessoa específica na plateia, ao cruzar o olhar do ator impede a queda; ao devolver o olhar o público também é um verso prestes a despenhar, é a vez do olhar do ator acolhê-lo – na dor, na angústia, no riso, na pantomima. É nesse momento que a fratura se torna exposta e o cotidiano é apenas alguma coisa longínqua que paradoxalmente está logo ali, à distância dos aplausos que anunciarão o retorno da ordinariedade dos dias e das noites.

Diana

Em 2019, o Teatro Ágora comemorou 20 anos de atividades com a encenação de Diana, texto e interpretação de Celso Frateschi e direção de Rudifran Pompeu. A peça marcou a abertura do Ágora em 1999, e já tinha sido encenada antes disso, entre outros, por Cassio Scapin e Angelo Brandini. Trata-se de um monólogo, em que um professor de língua, com mestrado e doutorado pela FFLCH-USP, é tomado de um profundo desalento: a dificuldade de lecionar na periferia, a traição da mulher, de quem não suporta nem o cheiro, a desilusão com as palavras que se desdobra na descrença em relação à humanidade. Passa a conversar com objetos inanimados. Defronta-se um dia com a estátua “Depois do Banho”, de Victor Brecheret, localizada no Largo do Arouche, em São Paulo. A obra é de 1932 e marca do modernismo paulistano.  Em meados dos anos de 1960, época em que se ambienta a peça, já figurava como um dos ícones da cidade.

Para o professor, a estátua é mais do que a passante para Baudelaire; é uma mulher nua, de bronze, à sua espera, com os seios úmidos de garoa, encoberta do voyeurismo de Deus por galhos de uma árvore; quase a imitação da água da mulher cabralina. Ele se apaixona ou, mais preciso seria dizer, apaixonam-se, pois que diante da delicadeza do texto e de sua encenação, no plano surreal que o monólogo instaura, o espectador é tentado a crer que Diana também está apaixonada – todos estamos. Entretanto, a dureza dos fatos interdita os delírios de afeto mais sublimes. Confundido com um ativista de esquerda, o professor é preso pela polícia militar.

A partir daí não há mais volta para o jogo de enjambements que se estabelece entre os olhares. Os deslocamentos do ator no palco fortalecem a atmosfera de múltiplos questionamentos por parte do preso e que, por meio da encenação atingem o público: o corpo solitário, deitado no chão, perguntando-se sobre as razões do confinamento e, para além disso, sobre as razões da existência. Um abismo se abre diante da incompreensão do professor acerca de sua detenção, ou mesmo da realidade da cela e do interrogatório tão distintos do que é para ele verdadeiro, a praça, os seios de Diana, a outra dimensão da existência que a praça poderia oferecer.

Na medida em que avança a peça, estruturada em oito cenas breves, fica mais aguda a experiência estética, de tal modo que o público pode descarregar-se da vida ordinária para viver a do professor, a qual, ao mesmo tempo, irmana-se com a sua, aquela que ficou do lado de fora da sala do Ágora, perto da bilheteria, esperando o momento dos aplausos para voltar à cena e ocupar seu lugar dentro de cada um.

Depoimento 1

Assisti à encenação de Diana em novembro passado. Vivi a experiência extraordinária de um caminho de fraturas do qual ainda não me refiz: felizmente. O texto de Celso Frateschi, potente e lírico, e a sua atuação generosa, precisa e contundente, instigaram interrogações sobre o que é estar no mundo hoje, afinal, por onde andará a outridade, como diz Octavio Paz, que deveria permear nossas relações? Qual é o valor da palavra, de sua carnadura? Mas, para além do texto e da encenação, muitos aspectos tornaram a fratura mais complexa e também de algum modo atuaram, no sentido de criar meios para o acontecimento do enjambement dos olhares-versos de que falei logo acima: a sala, a disposição dos lugares e a cena; a iluminação de Wagner Freire, direção de movimento de Vivien Buckup e trilha sonora original de Demian Pinto; o figurino e o cenário de Sylvia Moreira. Cenário que, aliás, homenageou mortos e desaparecidos na ditadura militar: lâmpadas dispostas em filas (ou séries?), lumes, fragílimos corpos, que se acenderam um dia e se apagaram com o silenciamento, com a tortura, com a morte.

A supra-realidade a que o teatro nos convida acessar é composta por múltiplos instrumentos, os quais, tal como um caleidoscópio reorganizam/desequilibram nosso mundo interior: não encontramos respostas no teatro, aliás, a arte, em si, nada responde, mas reivindica de nós, a partir da estesia, a formulação de perguntas. Naquela ocasião, apesar de já atravessarmos um contexto bastante dramático de forte ameaça à democracia do país, havia razões para comemorar. Era aniversário do Teatro. E o Ágora, para além da reminiscência grega que o nome sugere, é também a praça dos convites drummondiana: não só o lugar de onde se mira, como diz a etimologia da palavra teatro, mas o lugar de estar, em si ou fora de si, num caminho outro.

A pandemia

Eis que vem a pandemia e todas as salas de teatro do mundo se fecham. Fechamo-nos em nossos lares, pois esta é a melhor maneira de preservarmos a vida – o ar que respiramos pode roubar o ar dos pulmões do nosso próximo, dos que amamos, dos que encontramos pelas ruas, parques, estações de trem. O isolamento social é árduo, mas necessário, fundamental. A pandemia se alastra por todos os órgãos sociais, aliás, já vivíamos um estado de emergência há muito tempo. A Covid-19 não tem dificuldades para avançar porque há pobreza, porque faltam leitos, porque os sistemas de saúde do mundo são reféns do neoliberalismo e, no caso brasileiro, porque a desgovernança e o discurso do ódio oferecem os corpos ao contágio e à morte. Eis que vem a pandemia e todas as salas de espetáculo se fecham. Todavia, a arte é inerente à natureza humana e provoca-nos, sem que notemos, a refletir sobre os conflitos a partir de seu discurso. Nesse momento tão caótico, os artistas se movem, algumas instituições começam a se mover, os horizontes estreitados de chofre se alargam devagar. A arte vai às pessoas e seus lares. De algum modo, é preciso garantir as fraturas na cotidianeidade – é preciso garantir a descontinuidade das penumbras, irromper o breu com algumas lâmpadas.

Depoimento 2

Foram essas lâmpadas, num cenário diferente, que entraram em minha casa na sexta-feira, 15 de maio, enquanto assistia novamente à Diana, no espaço doméstico e ao mesmo tempo dentro do Ágora. Ali, da TV de casa, olhava para mim o professor; de fato, ele olhava para cada uma das pessoas que assistiram à programação do #emcasacomosesc, inciativa importante para fortalecer e garantir o papel crucial da arte e da cultura nesse momento.

Apesar de estar destituída das testemunhas de minha fratura anteriormente mencionadas, quais sejam a sala, a cena, o cenário, a presença física do ator, a ruptura foi maior. Maior porque minha vida hoje, mais que em novembro, está mais próxima da vida do professor, de sua prisão interior ou política; maior porque a dimensão do “estar em casa” e “sair de si” assumiram proporções que eu não esperaria: o teatro veio até mim quando eu não pude ir até ele.  Acabou a peça. Na tela/palco a última lâmpada apagou. Minhas mãos queriam aplaudir, mas pedi a elas um minuto de silêncio. Tempos difíceis, eu lhes disse. Acendi as luzes da minha casa, fraturada, amparada e me lembrei do final de um poema de Haroldo de Campos, mais conhecido como “a musa não se medusa”, por ser este o primeiro verso. Está publicado em entremilênios, livro póstumo de 2009:

[…]

da mão que pinta
da garganta que canta
– onde foram cárceres
nasça o espaço
comunal da paz
compartilhada –
da arte: gesto (pintura) ou (poema) fala:
que se comparte.

DIANA JUNKES é poeta, crítica literária e professora da Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Poesia e Cultura – NEPPOC. É bolsista produtividade em pesquisa do CNPq.


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