Despolitizando Lula… de novo
Atividade das mulheres no Acampamento Democrático Lula Livre, em Curitiba (Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação)
E justo quando a gente pensava que nenhum evento político conseguiria abrir uma brecha na cobertura cerrada dada pela mídia ao crime e à tragédia ambientais de Brumadinho, eis que um novo fato relacionado a Lula emerge para o centro de debate público esta semana. Não é fácil que um novo tema consiga um lugar ao sol da atenção pública quando todos os jornais concentram o foco em um único assunto, mas quando se trata de Lula parece que tudo é exceção.
O evento à origem de tudo não parece muito complicado. Vavá, um dos irmãos mais próximos do ex-presidente, de 79 anos, morreu na terça-feira, dia 29, perdendo a luta contra um câncer. Como era de se esperar e como lhe faculta a lei, Lula pediu autorização à Justiça para ir ao enterro do irmão. A partir daí deu-se uma impressionante e compacta mobilização de juízes, membros do Ministério Público e até da Polícia Federal para garantir que Lula não velasse o seu morto. A PF apresentou uma “análise de risco” que nada tinha de análise baseada em dados, mas era um listão hipotético de todas as possibilidades envolvidas na eventualidade de Lula ir velar o irmão: fuga ou resgate, atentados contra Lula ou contra os agentes, comprometimento da ordem pública, protestos. Tudo para dizer que não havia “efetivo policial” disponível para evitar os riscos envolvidos. Imaginem só, haver protestos ou perturbação da ordem pública. Como vamos lidar com essas coisas que pertenciam a outra ordem republicana? Por fim, alegou-se que uma operação desta monta demandaria helicópteros e que todos os helicópteros da República estavam em Brumadinho, que helicóptero é coisa séria.
Nos ambientes da discussão digital, em que a vida nua e crua costuma comparecer sem freios e filtros, o motivo verdadeiro, entretanto, não tardou a aparecer: Lula certamente faria do velório do irmão um comício, como o fez durante a cerimônia em que foi velada dona Marisa Letícia. E isto não se poderia permitir. Aliás, a acusação tem sido muito comum e reiterada: Lula transforma tudo em ato e discurso políticos e isso tem que ser evitado. É preciso despolitizar Lula, anulá-lo, “presidializá-lo”. Lula tem que se resignar a ser um criminoso condenado qualquer.
Naturalmente, o pedido foi prontamente negado pela juíza da vara de execuções penais de Curitiba, Carolina Lebbos, que supostamente há de encontrar um peculiar prazer no múnus de “carcereira de Lula”, e cuja conduta fundamental consiste em negar, proibir e vetar qualquer coisa em que Lula possa ser representado ou reconhecido na sua dimensão original. A pequena carcereira do gigante em correntes, que parece ter como projeto de vida manter-se fiel ao autoengano de que Lula é “um prisioneiro qualquer”, fez o que sempre faz: vetou.
Com isso, enquanto o morto era velado em São Paulo, corria-se uma maratona jurídica previsível e intensa. Antes de tudo, recorre-se protocolarmente ao TRF4, que, como é sabido, compartilha a doutrina segundo a qual para o país é imprescindível um Lula minguante. E apenas para que recitasse o papel que o script lhe reserva no tocante a Lula: negar. Por fim, a corrida de obstáculos, acompanhada cuidadosamente pelo jornalismo e pela opinião pública, chega ao STF, ao plantonista Dias Toffoli. Tudo isso em não mais que dois dias.
Bem, o fato é que Lula não foi ao velório nem ao enterro do irmão. Isso já sabemos.
É bom que se diga, neste momento alucinado em que as opiniões políticas não valem mais pelo seu próprio conteúdo, mas apenas em função do perfil ideológico presumido de quem as profere, que este escriba não se encontra entre aqueles que consideram que Lula é um inocente cordeiro nas garras da Justiça. Mas mesmo aos céticos os eventos desta semana pareceram desproporcionais. O fato, afinal, é este: quando se trata de Lula, tudo se transtorna no Brasil. Tudo é tenso, polarizado e peculiar no debate público, como era de se esperar, mas infelizmente também funciona assim nas instituições da Lei, Ordem e Justiça – MP, Polícia Federal e Magistratura. Tudo para Lula é peculiar, sui generis, justamente enquanto se sugere que se está tentando o contrário disso, tratá-lo como uma pessoa qualquer.
Lula não foi ao velório e isso foi considerado fundamental para o país, no estado de confusão mental em que se encontra. Que fique claro: se Lula tivesse ido ao velório nada perderiam a Justiça, o país, o Direito e a humanidade, como acabou reconhecendo o próprio ministro Dias Toffoli em sua sentença tardia. Mas não se trata do que se perderia no universo do Direito e da Justiça. O que não se queria perder de forma alguma era a sensação política de que Lula continuará sendo punido, humilhado, aniquilado perpetuamente, para satisfação e gozo da parte eleitoralmente vencedora da sociedade. Um componente muito sombrio da alma brasileira neste momento precisa do sangue e da dor de Lula, de modo que nenhuma nova oportunidade de humilhação deve ser desperdiçada.
Mas querem saber de uma coisa? Desconfio que nem é mais a humilhação do próprio Lula o que realmente visam: Lula deve ser exibido em correntes para causar sofrimento nos lulistas e nos brasileiros que o respeitam. E essa parece ser a missão de vida e o gozo inconfesso de uns quantos do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal.
Sim, mas o ministro Dias Toffoli não reconheceu, afinal, que Lula tinha o direito de ir velar o irmão? De fato. Mas na noite da quarta-feira, como para coroar um dia espantos, soubemos do teor da sentença proferida. Estupefatos, descobrimos que em vez de liberar o preso para visitar o morto, o ministro autorizou o morto a visitar o preso. Em instalações militares. Com discrição e recato. Exatamente na hora do próprio funeral. Acham que exagero? Leiam a sentença. No Brasil de 2018, não há imaginação que supere a realidade.
A parte o fato moral, desprezível, e o desrespeito a direitos, como reconhecido pelo próprio Toffoli, o pior é que o conjunto todo de atitudes foi também ineficiente. Antes, foi contraproducente. “Ah, a Lula não podia ser dado o direito de transformar um velório em um comício”. Quem diz isso, não entende nada de comunicação política. O maior comício político aconteceu sem que Lula tenha precisado fazer nada, e consistiu justamente na interdição de ir velar o seu morto. A juíza Lebbos e os desembargadores do TRF4 fizeram o comício dos sonhos do lulismo justamente por meio desta proibição. Bastou uma foto de Lula autorizado pela ditadura militar a ir ao velório da mãe, contrastando com as interdições desta semana, para produzir um fato político muito maior do que qualquer coisa que ele pudesse fazer ou dizer no funeral do irmão. Não é à toa que a tese “Lula preso político” voltou a circular fortemente pelo mundo nestes dias.
Tem sido assim: cada vez que tentam desinflar Lula, por meio de intervenções sui generis da polícia ou da Justiça, acabam, paradoxalmente, fornecendo ao ex-presidente novos enredos e discursos para o reforço da sua imagem. Assim, além de moralmente duvidosa e legalmente questionável, a interdição findou por ser politicamente estúpida e terminou produzindo efeitos opostos aos pretendidos. E ainda reforça a tese de que Lula é tudo, menos um preso comum. E de que este país precisa, urgentemente, de um psiquiatra e um confessor, vez que está mentalmente comprometido e espiritualmente estragado.