Desnorteio – uma impressão sobre o livro de Paula Fábrio

Desnorteio – uma impressão sobre o livro de Paula Fábrio
Esculturas de Manfred Kielnhofer

Desnorteio de Paula Fábrio (Editora Patuá, 2012) ganhou o Prêmio São Paulo de 2013 na categoria autor estreante, mas só nessa virada de ano é que consegui lê-lo. Fiquei aqui pensando nos momentos que nos fazem ler os livros, por que deixamos para depois coisas que deveríamos ter feito logo, de uma vez, pelo simples fato de que nos dariam muito prazer… Eis que viver a vida é, de um modo ou de outro, perder tempo. A questão é a qualidade do tempo que se perde, com que se perde. Se o perdemos para a nossa felicidade ou infelicidade. Mas isso não é a questão agora. Eu, por exemplo, sou sempre mais feliz se perco meu tempo lendo.

O livro começa com um capítulo na forma de “Balancete”. Trata-se de uma reflexão que pede que leiamos em voz alta, bem lentamente, com as pausas necessárias. Os termos são:

“Um dia a menos. Outro dia a menos. Um dia a menos. Outro dia a menos. Tudo o que se viveu. O tempo que nos resta. Ninguém faz essa conta aos quinze anos. Será que nos abandonamos à loucura num momento de contabilidade?”

Aqui eu parei por semanas na minha primeira tentativa de ler Desnorteio porque entrei no clima da contabilidade. Parei porque parar era preciso. Parar para pensar. Um dia a menos para ler o livro, por causa do próprio livro. Por conta da impressão, em sua múltipla funcionalidade, da capacidade do livro de enviar para dentro e para fora dele, de posicionar os fantasmas do seu mundo que vieram habitar meu próprio mundo. Contabilizei tudo. Voltei dias depois e avancei as cento e quarenta páginas restantes.

Então, voltando a lê-lo eu vi seus seres opressos, tanto quanto seus espíritos livres. Eu vi esses seres que impressionados, habitam os livros.

Impressão de leitura

O livro de Paula Fábrio tem muitas qualidades. A principal delas é o teor da prosa escrita de modo a dar espaço para a imaginação do leitor. A própria autora declara que a história do livro foi chegando “devagarzinho, em fragmentos, lembranças entrecortadas”. Não se trata, segundo ela, de escrever fatos, mas “impressões”.

O alcance do termo “impressão” é aqui a chave de leitura do livro. O livro que leio, o livro que me faz lê-lo até o fim não é um livro qualquer, embora possa ser qualquer livro. Mas o livro, qualquer um, aquele que me pega pela impressão, é o livro que se me imprime. Nesse caso, o livro é um impresso, o livro impressiona, o livro nasce de impressões. O livro de seres impressionados se imprime em mim, leitor qualquer que, feito um muro, se abre para uma demão de tinta bem comportada, um afresco, ou uma pichação.

Hoje em dia, nem todo livro é impresso. Nem todo livro impressiona. Nem todo livro nasce de impressões. É isso que me faz pensar o livro de Paula Fábrio. Desnorteio é indelével, é o livro que cola em mim quando abro para ler, isso quer dizer, ele me agarra, não posso me livrar dele. Não quero me livrar dele, porque ele me impressiona. Eu gostaria de lê-lo de novo, porque ele me faz imaginar coisas, ele me tira do sério como uma parede que foi riscada por uma criança.

Imaginação, essa faculdade maltratada

Nascido de um convívio com as imagens fantasmas que povoam a imaginação, Desnorteio explica seu poder de impressionar impressionando. Ele faz saber que a imaginação é a faculdade mental mais maltratada em nossa época. Ora, sabemos que a imaginação é a faculdade sem a qual não há inteligência real. O estado mental fascista de nossa época se deve em grande medida à morte da imaginação. Pensemos nisso. A uma estética que generaliza o fim das sombras da arte, o fim dos intervalos abertos nas obras, em nome de roteiros facilitadores que nos privam de nossa capacidade de imaginar sem a qual a inteligência (cujo coração é a criação) morre antes de nascer.

Me deixo levar pela impressão do livro para escrever essas linhas, tendo a impressão de que também conheci os irmãos Oliveira, protagonistas da história e que as múltiplas vozes do livro falam comigo. E que eu falaria com Paula Fábrio tendo em vista que sua “história sobre homens nus”, esses mendigos, esses loucos, é a história que nos faltava.

Esculturas de Manfred Kielnhofer

 

 

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