Desfamiliarização e política

Desfamiliarização e política
(Foto; José Cardoso)

“A origem social do indivíduo (a família) revela-se no final como a força que o aniquila”
Adorno, a respeito de A metamorfose

Há cerca de duas décadas, o Teatro da Vertigem vem ocupando insólitos lugares públicos na cidade de São Paulo a fim de instaurar nesses espaços uma teatralidade radical, de alta voltagem política, disposta a levar o espectador-cidadão a perceber os novos usos que se podem fazer de uma igreja, um hospital e um presídio desativados, um rio fétido que atravessa invisível o espaço urbano, as ruas de um bairro vitimado pelo desregramento do mundo capitalista, a fachada envidraçada de um edifício em reforma, uma passagem subterrânea no centro da capital… – todos eles territórios de uso/desuso público“profanados” (no sentido que propõe Giorgio Agamben), assim, pela prontidão crítica que tem pautado não somente o trabalho do grupo liderado por Antonio Araújo, como também o de inúmeros outros coletivos paulistanos.

Ocorre que a mais recente criação do Teatro da Vertigem – o espetáculo O filho, em cartaz no Sesc Pompeia até o próximo dia 9 de agosto – abre mão da busca por espaços infrequentes na paisagem da metrópole e opta por fazer uma operação reversa àquela com a qual o público da companhia já está acostumado. Aqui, o grupo não toma posse de certos sítios urbanos específicos ou de algum dos muitos lugares-nenhuns espalhados pela cidade. Antes, ele procede a um discreto processo de imigração, vivido em um espaço fixo, quase convencional, dada a regularidade de sua ocupação – o galpão do Sesc Pompeia aberto a criações cênicas não afeitas ao palco italiano. A primeira novidade de O filho, então, é transformar os criadores do Teatro da Vertigem de nômades em sedentários, sem que com isso se perca uma fagulha sequer da inquietante energia criativa que sempre pautou a atuação da companhia. Atuação esta disposta a fazer constantemente novos e insuspeitados empregos da experiência teatral – ocorra ela na transitoriedade de um cenário itinerante como o bairro do Bom Retiro ou na permanência de um equipamento cultural tão sólido como o Sesc Pompeia (nascido, por sua vez, nunca é demais lembrar, também de uma transgressão, que converteu a antiga fábrica de geladeiras e tambores em centro de arte, cultura, esporte e lazer).

Cinco pilares dão sustentação a esse espetáculo que talvez passe por pura experimentação, mas que é em si um grande acontecimento teatral na cidade de São Paulo: a base conceitual que o anima, o texto, a direção, a cenografia e a interpretação. Baseado livremente na famosa carta de cinquenta páginas que Franz Kafka (1883-1924) escreveu, entre os dias 10 e 20 de novembro de 1919, a seu pai, o comerciante Hermann Kafka, e nunca lhe entregou, O filho integra um projeto maior – a Ocupação Karta ao Pai – por meio do qual o Teatro da Vertigem tanto examina a relação do escritor tcheco com o teatro como revê sua própria trajetória de mais de vinte anos.

Rafael Lozano em cena da peça “O filho”, do Teatro da Vertigem (Foto: José Cardoso)

Como espetáculo, O filho se propõe a investigar as estruturas essenciais do homem e a busca desesperada deste por algum sentido, impedida quase sempre pelo automatismo e pela consciência rasa que Kafka identificou no início do século XX como atributos inseparáveis do ser humano. E que tudo leva a crer não o abandonaram ainda. O projeto investe na projeção de um triângulo familiar absolutamente realista para o espectador (pai-mãe-criança) sobre outras relações mais estranhadas e, por isso mesmo, mais potentes, deslocando a noção de família para melhor fixá-la, como propõe Günther Anders, em Kafka: pró e contra: “A fisionomia do mundo kafkiano parece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal. Em vez de se reconhecer este método – de forma alguma tão indevassável – viu-se apenas o exótico na fisionomia do seu mundo, qualificado de sobrenatural, onírico, mítico ou simbólico. Mas Kafka não é estetizante, santo ou sonhador, nem forjador de mitos ou simbolista – pelo menos nada disso em primeiro plano: é um fabulador realista”. Do mesmo modo, a encenação dirigida por Eliana Monteiro sai do Brasil na aurora do século XXI rumo à Praga das primeiras décadas do século XX não para falar de seres idealizados no “lá-então”, suspensos no tempo, e sim para retratar os homens reais que somos no “aqui-agora” – às voltas com a vida cotidiana que nos engolfa e com os hábitos vazios que nos distraem.

O texto de Alexandre Dal Farra é uma pequena obra-prima que bebe das principais características da prosa kafkiana sem em momento algum soar que lhe esteja prestando excessivo tributo. A rigor, a peça escrita não usa o material referencial que constitui a Carta ao pai – e essa é a grande qualidade inicial dela. Concebendo um conjunto de referências próprias, genuínas, brasileiras, vazadas no registro veicular da língua portuguesa, o trabalho dramatúrgico de Dal Farra somente adota os mesmos princípios de expressão que tornaram Kafka um autor incomum na literatura. O tom utilizado na comunicação entre os personagens é o do “espantoso que não espanta ninguém” (Anders) ou o da “naturalidade com que o monstruoso é apresentado” (Adorno), o que garante a atmosfera de incômodo estranhamento que paulatinamente vai enovelando o espectador. As três marcas essenciais da literatura kafkiana identificadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Kafka: por uma literatura menor estão presentes aqui, constituindo as principais linhas de força não somente do próprio texto, como também de todo o projeto da encenação.

Primeiramente, como quer a dupla de filósofos de Capitalismo e esquizofrenia, a língua empregada por Dal Farra é “afetada de um forte coeficiente de desterritorialização”. As falas se deixam dominar por excesso de coloquialidade, por repetições, por grosserias, licenciosidades e ofensas desidratadas ao limite do inofensivo, por afetos transmitidos pela esterilidade do protocolo, enfim, por toda sorte de recursos que levam o português a estranhos usos menores, procurando extrair dessa linguagem rebaixada, acrítica, massificada alguma centelha de vitalidade. Em segundo lugar, dada a envergadura da escritura do dramaturgo, a eleição dos conflitos familiares que opõem pais e filhos jamais resvala no caso individual, dramático, revestindo-se, antes, de um caráter contundentemente político. “É nesse sentido que o triângulo familiar conecta-se aos outros triângulos, comerciais, econômicos, burocráticos, jurídicos, que determinam os valores deles”. (…) “O que angustia ou goza em Kafka não é o pai, o supereu, nem um significante qualquer, já é a máquina tecnocrática americana, ou burocrática russa, ou a máquina fascista”. Por fim, esse campo político habilmente investigado contamina de tal modo os enunciados que a enunciação constantemente torna difusa a categoria do sujeito, fazendo este oscilar entre a primeira e a terceira pessoas. É como se os personagens concebidos por Dal Farra não fossem mesmo indivíduos. “Não há sujeito, há apenas agenciamento coletivos de enunciação – e a literatura exprime esses agenciamentos, nas condições em que eles não estão dados fora dela, e em que eles existem somente como potências diabólicas por vir ou como forças revolucionárias a construir”.

A direção de Eliana Monteiro não parece querer competir com o texto em termos de inventividade, embora tampouco se submeta passivamente a ele. A encenação está calcada na exploração bastante segura de um conjunto de imagens muito eloquentes (chamadas de “imagens potenciadas”por Anders) – acústicas, plásticas, corporais-sinestésicas, conceituais… – advindas da aguda compreensão que a diretora demonstra no manejo de material tão complexo como esse. Uma imagem em especial chama a atenção: a da mãe (Mawusi Tulani), sentada de modo hierático sobre a cama, cujo vestido confunde-se com o próprio colchão em que ela está “enraizada”. O corpo volumoso dessa figura que é um misto de prostituta sagrada e mater dolorosa, desfrutada ao mesmo tempo por pai e filho, é de uma expressividade ímpar, remetendo aos caprichos e à frouxa ternura de Bárbara, a mulher gigante do conto de Murilo Rubião, escritor mineiro cuja literatura foi inspirada na obra de ninguém menos do que Franz Kafka.

Sérgio Pardal em “O filho” (Foto: José Cardoso)

Como diretora, Eliana Monteiro não quer explicar nada ao espectador. Somente evidenciar o inexplicável. (“Aquilo que não podia ser explicado está perfeitamente contido naquilo que não explica mais nada”, afirma Agamben na Defesa de Kafka contra seus intérpretes). O galpão do Sesc Pompeia é muito bem utilizado pela encenadora, criando-se nele um constante deslocamento entre o centro e a periferia das ações. Há uma centralidade inicial, na qual o pai e o filho em seu pequeno cosmos começam a conversar, que aos poucos vai sendo ampliada, diluída, esgarçada até o limite do caos circundante. As cenas que irrompem por todos os lugares do espaço ganham assim uma dinâmica sui generis, obrigando os espectadores de tempos em tempos a abandonarem a posição cômoda em seus assentos e a irem buscar o melhor ângulo de visão, mesmo que para isso seja obrigatório esgueirar o próprio corpo em direção ao foco dos acontecimentos. O ritmo da montagem é discreto, mas firme, envolvendo o público paulatinamente nas peças da engrenagem desta estranha máquina-Kafka que instaura o choque e o sentimento de realidade, a uma só vez. Aliás, a grande qualidade do trabalho de Eliana Monteiro é fazer a atmosfera concebida pelo autor de A metamorfose soar tão contemporânea ao estilo exercido pela companhia paulistana. Em O filho, a máquina-Vertigem e a máquina-Kafka se fundem em um único engenho, graças à inteligência e à sensibilidade da diretora.

A cenografia concebida por Marisa Bentivegna equivale a uma instalação, constituindo um ambiente cuja expressividade potencializa a cena e a reflexão sobre o que nela ocorre. O amontoado de coisas velhas, empoeiradas, em franco e visível desuso por onde transitam os personagens remete ao descarte dos sujeitos e dos objetos imposto pelo atual estágio do capitalismo, sem sombra de dúvida. Mas aponta também para a catástrofe silenciosa para a qual atualmente o homem caminha, ao sair dos limites do humano e se confundir cada vez mais com as tristes coisas consideradas sem ênfase dos versos de Drummond. Nada do que ocorre nesse espaço é vivido de modo especialmente dramático, já que a mesma falta de ênfase irmana seres e objetos. O monstruoso aqui é propor que o “humano” sequer habita a nobre memória dos antiquários. Antes, ele já se decompõe na cinzenta vulgaridade dos brechós.

O trabalho de interpretação dos atores está absolutamente afinado com a proposta geral do espetáculo. Os cinco intérpretes demonstram total segurança em cena e investem em uma contundência vocal e corporal muito difícil de ser obtida pelo fato de os personagens que defendem, por tudo o que já foi dito, não poderem transitar pelas malhas da psicologia – o que poria tudo a perder. A trágica história familiar que se descortina aos olhos do espectador solicita de tais atores uma anti-dramaticidade que a um só tempo desperte o interesse da plateia, mas recuse a comoção imediata. Mawusi Tulani, Paula Klein, Rafael Lozano e Sergio Pardal se saem muito bem da empreitada, tendo a honra de desfrutar em cena da presença de Antônio Petrin – um, aqui mais que nunca, ator-patriarca cujas escolhas na carreira sempre apontaram para o risco e a dignificação constante da arte do teatro. (No tocante à concepção da linguagem artística do espetáculo, vale a pena ainda destacar o trabalho de Guilherme Bonfanti no desenho de luz, de Érico Teobaldo na trilha sonora, de Marina Reis no figurino e de Grissel Piguillem no vídeo).

Por tudo o que foi exposto acima, O filho merece ser visto pelo maior número de espectadores possível – ainda que a lotação do espaço que o abriga seja exígua. Mas a ida ao Sesc Pompeia para assistir à mais recente criação do Teatro da Vertigem pode privar também de um componente didático dos mais desejáveis no atual panorama cultural do país. Primeiramente, por convidar o espectador a recusar o teatro das vivências espetaculosas, tão em voga na cidade, e poder gozar de uma experiência teatral cujos adjetivos não poderiam ser outros senão áspera, acerba, incômoda, fulcral. Em segundo lugar, por dar a conhecer o trabalho de um grupo que já é um patrimônio cultural de São Paulo, embora nunca tenha se institucionalizado por essa condição. Por fim, por discutir artisticamente – em tempos nos quais tradições obsoletas e moralismos perversos ameaçam a todo o momento as conquistas da razão – o papel imemorial da instituição familiar, base ainda de todo nosso espelhado humanismo. Diante da estrutura cíclica identificada em Kafka por Gilles Deleuze e Felix Guattari (“…o triângulo familiar bem formado demais era apenas um condutor para investimentos de uma natureza completamente outra, que o filho não cessa de descobrir sob seu pai, em sua mãe, em si mesmo”), Giorgio Agamben propõe uma saída: “A profanação do improfanável [a sagrada família] é a tarefa política da geração que vem”.

P.S.: Agradeço ao Lucas e ao Cadu, alunos do curso “Literatura, experiência e fruição” que ministrei no Sesc Interlagos, no primeiro semestre deste ano, a preciosa indicação de Kafka: por uma literatura menor (traduzido por Cíntia Vieira da Silva para a Autêntica Editora), leitura sem a qual a presente crítica soaria certamente incompleta.

O filho – Teatro da Vertigem
Quando: até 9 de agosto (quintas, sextas e sábados, às 19h30; aos domingos, às 18h30)
Onde: SESC Pompeia (Rua Clélia, 93)
Quanto: de R$ 40,00 a R$ 12,00
Info: (011) 3871-7700

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