Privado: Descaminho de casa
Segui as pegadas que ela não deixou por todo o corredor. Tateei as paredes sujas, senti a textura amarga do silêncio nas pontas dos dedos. Fui delineando a casa, fazendo desenhos obtusos e absurdos enquanto caminhava pelo vazio. Não acendi a luz; a fraca iluminação que passava pelo vão da janela bastava. Pisei mais forte e não pude escutar a sola do sapato batendo no taco de madeira. Talvez por fraqueza nas pernas. Ou pela incerteza de minha presença ali.
Encarei a porta fechada do quarto e, naquele instante, vacilei feito quem vê assombração. O trinco emperrado, que tantas vezes me impedira de entrar, já não era o principal obstáculo a transpor. Havia em mim certa apreensão. Um medo incontido de ultrapassar as fronteiras daquele local insuportavelmente familiar. Era esse o fato ininteligível da coisa: aquele aposento cujos detalhes eu conhecia tão bem – cada canto, a mobília, o armário – não tinha como causar pavor. Mas ali já não era eu. Tampouco o quarto era o mesmo. Tornei-me hóspede de minha própria casa, e o fogão, a mesa, os objetos arrumados sobre os móveis eram agora itens estranhos e irreconhecíveis de um cenário ermo e desabitado. O porta-retrato que ficou sem retrato, a estante meio vazia, as gavetas que esbanjavam espaço. Tudo era esquisitice.
Mas havia a tarefa de entrar no quarto. Já inadiável. Dei um passo, forcei a maçaneta, empurrei. Olhos fechados. Ao abri-los, percebi o abajur aceso. Há quantos dias estaria aceso?
Caminhava rumo ao inferno. Cru, duro, sem lirismo. Sem poeta para me guiar. Sem esperança de sair.
Assine a Revista Cult e
tenha acesso a conteúdos exclusivos
Assinar »