Derrida e a psicanálise

Derrida e a psicanálise

A visão ética e política de Derrida para a atividade psicanalítica

Joel Birman

Da fala ao traço

Ao longo de toda a sua obra, Derrida realizou diversas incursões no pensamento psicanalítico, sempre fazendo isso com bastante originalidade. Isso se deve à evidência notória de que Derrida tinha também uma filosofia original, de maneira que imprimia as marcas dessa em tudo aquilo sobre o qual se debruçava como objeto de estudo para realizar o que denominou de desconstrução. Tendo essa como método e pressuposto, ao mesmo tempo, do seu projeto filosófico, Derrida se voltou para a leitura das mais diferentes modalidades de discursos da nossa tradição.

Com efeito, da filosofia à política, passando pela literatura, pela pintura e pela dramaturgia, sem deixar de evocar o campo da ética, no qual desembocou o seu pensamento no final de seu percurso, a sua curiosidade teórica era inesgotável. Esse quase insaciável desejo de saber se fundava, contudo, numa problemática central, qual seja, a da linguagem. A indagação sobre essa ocupou a posição fundamental no seu pensamento filosófico. Daí, portanto, a pertinência da sua leitura e a disseminação de seus objetos teóricos dos quais se orientava sempre pela desconstrução.

Não seria, então, estranho que Derrida se voltasse para a leitura da psicanálise. Essa estava em franca evidência, além disso, nos anos 1960, na França, em decorrência do trabalho teórico de Lacan. Entretanto, as suas diferenças face a este se colocaram desde o ensaio inaugural que publicou sobre a psicanálise, em 1967, intitulado “Freud e a cena da escrita”. Assim, enquanto para Lacan a linguagem seria fala, antes de mais nada, como formulara no ensaio “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, publicado em 1953, para Derrida o que estava em pauta era a escrita. Além disso, como formulou em Da gramatologia, em 1967, a escrita não seria fundamentalmente fonética, mas seria caracterizada pelo traço. Com efeito, a fonetização da linguagem foi apenas constituída num tempo posterior de sua existência histórica.

Foi no e pelo delineamento dessa oposição fundamental que se inscreveu a direção antimetafísica do Ocidente – de Platão e Aristóteles até a fenomenologia de Husserl. Aquela se fundou, com efeito, no privilégio ostensivo conferido ao registro da fala, às expensas da escrita, para conceber a linguagem. O mesmo ocorreu também com o primeiro Heidegger, quando destacava nessa a dimensão primordial da voz. Da mesma forma, Hegel se inscrevia ainda nessa tradição teórica, não obstante ter elaborado uma filosofia fundada na negatividade radical e ser ainda o iniciador da moderna tradição do texto, que teria superado o discurso onto-teológico do livro.

Porém, tudo isso remetia para uma problemática ainda mais crucial. Isso porque os registros da fala e da voz implicavam no filosofema da presença. Seria esse que fundaria toda a tradição metafísica do Ocidente, com efeito, na medida em que a presença da voz implicava a crença daquilo que as coisas provocam na interioridade do sujeito, por um lado, e na suposta referência às coisas na exterioridade do mundo. Seria esse curto-circuito teórico que teria de ser desconstruído pela concepção da linguagem como escrita, já que essa como traço implicaria na suspensão de qualquer referência, assim como na superação das oposições interno/externo e sujeito/objeto.

Com isso, a linguagem poderia se autonomizar, evidenciando assim a dimensão da ausência que a fundaria. Dessa maneira, a linguagem retornaria sobre si mesma, num processo infinito de enunciação e de produção retroativa de efeitos de sentido, inscrevendo-se, então, em espaçamentos delineados entre os signos, engendrando, enfim, as diferenças num horizonte efetivamente temporal e histórico.

É nesse contexto que se pode compreender devidamente que o ponto de partida do percurso teórico de Derrida tenha tido dois alvos, quais sejam, as críticas da fenomenologia de Husserl e do estruturalismo de Lévi-Strauss. Se a primeira se fundava de maneira eloqüente no filosofema da presença, com efeito, o segundo silenciava a impossibilidade da história pela concepção de estrutura que forjara, não obstante o lugar crucial conferido à linguagem. Portanto, seria pela desconstrução desse duplo alvo que um projeto de crítica sistemática da tradição metafísica poderia se constituir, fundado, agora, naquilo que foi por essa excluída, qual seja, o traço e a escrita (Posições, 1972).

 

Inscrições da diferença

Foi nessa perspectiva que a psicanálise interessou efetivamente Derrida. Essa foi a razão de direito que o lançou para a leitura da psicanálise. Isso porque o pensamento freudiano evidenciava a existência de um pensamento do traço e da escrita, no qual o filosofema da presença era efetivamente criticado. Daí ser, então, passível de ser desconstruído pelo próprio ato de constituição do seu percurso. Para isso, no entanto, a obra freudiana teria de ser objeto de uma leitura enquanto discurso e não mais como uma teoria sistemática, articulada pelos diferentes seus conceitos. Vale dizer, necessário seria empreender a leitura do discurso freudiano na sua continuidade e descontinuidade textual, sem ficar colado e restrito em conceitos da metapsicologia. Somente assim seria possível surpreender a construção efetiva de um pensamento do traço na obra freudiana.

Por que isso, afinal das contas? Derrida enuncia, em “Freud e a cena da escrita”, que a teoria psicanalítica estaria permeada por um conjunto de oposições conceituais que colocavam em pauta o referido filosofema da presença. Com efeito, as oposições interno/externo, sujeito/objeto, subjetivo/objetivo e várias outras, ainda, indicavam a inscrição da metapsicologia freudiana na dita tradição metafísica. Por isso mesmo, realizar a leitura da obra de Freud no eixo do discurso permitiria colocar em questão e sublinhar a incidência naquele das categorias de traço e de escrita.

Dessa maneira, numa leitura discursiva dos múltiplos textos freudianos, Derrida destaca como o inconsciente seria construído por traços, de maneira que a outra cena seria efetivamente a cena da escrita. Assim, percorrendo o discurso freudiano do Projeto de uma psicologia (1895) até as Notas sobre o bloco mágico (1924), passando pela “Carta 52” enviada à Fliess (1896), A interpretação dos sonhos (1900), Os múltiplos interesses da psicanálise (1913) e a Metapsicologia (1915), Derrida demonstra efetivamente a constituição de um pensamento do traço no discurso freudiano.

Para isso, contudo, seria preciso enfatizar que, logo de saída, para Freud, o aparelho psíquico é um aparelho de memória e que esse se constitui por engramas. Como se evidencia por essa palavra, a memória se tece por traços. Esses se constituiriam pela ação de excitações no sistema nervoso sem, que se disseminariam nesse, mas que encontrariam resistências que impediriam a sua descarga. Seria essa disseminação que engendraria uma forma de arborização no tecido nervoso, inscrevendo os traços em diferentes direções. Portanto, a articulação entre força e sentido seria forjada pelo próprio movimento direcionado da força e na inscrição dessa.

Assim, se no Projeto de uma psicologia científica, o pensamento do traço já se evidenciava com clareza, foi apenas na “Carta 52” e em A interpretação dos sonhos, que o traço se inscreveria como escrita. Isso porque Freud começara a descrever os seus conceitos metapsicológicos com metáforas estritamente escriturárias. Além disso, começara a se valer dos modelos da antiga escrita egípcia e da escrita chinesa para enunciar tanto o processo de formação dos sonhos, quanto a constituição do inconsciente. Portanto, a escrita hieroglífica e os ideogramas chineses permitiriam delinear a escritura psíquica enquanto tal.

Contudo, um passo decisivo nessa leitura do discurso freudiano foi dado por Derrida quando, em Notas sobre o bloco mágico, enuncia que se as formações do inconsciente se tecem como uma escrita, isso pressuporia que o psiquismo seria uma máquina de escritura. Com essa interpretação crucial o ciclo se fecha, de maneira coerente e consistente, na medida em que se as formações psíquicas se tecem como escrita, isso implica a assunção de que o psiquismo seria uma máquina de escritura.

Em Cartão-postal (1980), Derrida empreendeu um duplo movimento de leitura da psicanálise, desdobrando seus enunciados anteriores, de maneira pertinente.

Assim, em “Especular – sobre Freud”, as pulsões na sua conflitualidade permanente evidenciariam a produção de diferenças no psiquismo, em que a soberania do prazer seria absoluta, mesmo considerando os desdobramentos posteriores  com o conceito de pulsão de morte e do além do princípio do prazer. Isso porque, tanto  no suposto movimento de desejo de retorno do vivente ao inorgânico, quanto na formulação de que o organismo pretende morrer à sua maneira, seria sempre o prazer como princípio que se imporia de maneira eloqüente. Enfim, a leitura das diferenças que se deslocara agora para o registro pulsional.

Contudo, em O carteiro da verdade foi o pensamento de Lacan que foi efetivamente colocado na berlinda. Derrida evidencia, assim, na sua leitura do “Seminário sobre a ‘Carta roubada’” (1954), que Lacan no seu formalismo estruturalista analisou o famoso escrito de Poe sem inscrevê-lo num conjunto de contos do qual aquele fazia parte integrante, por um lado, e sem evidenciar a leitura anterior do conto realizado por Marie Bonaparte, de quem muito se beneficiou, pelo outro. Portanto, a trama escrituraria em questão, que reenviaria à problemática da biblioteca, seria cortada e silenciada pela leitura de Lacan, no privilégio formalista que quis conceder à lógica do significante. Além disso, critica Lacan por conceder ao significante do nome-do-pai um lugar de exceção na estrutura da linguagem, pois, com isso, implode com o quadro de equivalência que deveria existir entre todos os significantes no seu conjunto de oposições diferenciais.

Em Mal de arquivo (1995), Derrida retoma a sua leitura inicial sobre o psiquismo como máquina de escrever e que produziria assim formações escriturárias para evidenciar que o psiquismo se ordenaria então como um arquivo. Nessa perspectiva, a pulsão de morte foi interpretada como um mal de arquivo, isto é, como algo que apaga os arquivos escritos para que o processo de arquivamento pudesse continuar efetivamente, até o infinito. Sem isso, no entanto, o arquivo implodiria, pela impossibilidade de inscrição de outras escrituras.

A concepção documental e positivista de arquivo, realizada no campo da história, foi assim colocada em questão, pois no plano de imanência da linguagem e do discurso, o arquivado no registro do inconsciente remete à uma outra concepção de história. O ensaio de Freud, “Moisés e o monoteísmo” (1938), oferece agora pela via da repetição e da insistência dos arquivos uma outra possibilidade de conceber a história.

Nos Estados da alma da psicanálise (2000), Derrida se voltou tanto para uma versão política e ética da psicanálise, quanto para destacar as conseqüências política e ética do discurso psicanalítico. Assim, o que foi aqui colocado em pauta é a crueldade, com toda a sua eloqüência mortífera e destrutiva, que marcaria a nossa tradição de maneira indelével. A relação entre crueldade e soberania foi destacada na sua complexidade, de forma que uma definição elegante e concisa da psicanálise foi aqui proposta, qual seja, a de ser uma modalidade de pensamento sem álibi.

Portanto, a psicanálise foi inscrita numa tradição ética e política que afundaria e definiria a sua finalidade, qual seja, a de não se comprometer com qualquer álibi, e realizar, no limite, a confrontação efetiva com o exercício da crueldade. O lugar do psicanalista deveria ser pautado, nos seus menores detalhes, pelo confronto com a crueldade. Para isso, no entanto, necessário seria possibilitar a reconstrução insistente dos arquivos, pela colocação permanente, na cena da escrita, da mobilidade desconstrutiva do mal de arquivo. Seria dessa maneira, enfim, que a psicanálise poderia ser radicalmente uma forma de saber sem qualquer álibi.

Joel Birman
é psicanalista, presidente do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e membro do Espace Analytique, professor da UFRJ e professor adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ

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