Depressão, uma questão cultural

Depressão, uma questão cultural
'Boy' de Ron Mueck/ Museu Britânico

“Depressão” tornou-se o termo genérico para designar certo estado de sofrimento psicofísico característico de nossa época. Podemos dizer que o mundo se divide hoje entre os que estão deprimidos e os que, ao seu redor, estão perplexos e curiosos quanto ao que seja a depressão, suas causas, sua origem.  Neste contexto, os discursos sobre a depressão proliferam. O campo do senso comum é invadido pelos discursos especializados, da psicologia e da psiquiatria. Um acordo entre teorias especializadas e teorias “populares” garantem um saber geral quanto à depressão como um mal contemporâneo a ser extirpado.

É certo que se a questão interessa a todo mundo isso acontece porque todos experimentam em suas vidas algum nexo com ela. Todos estão de algum modo envolvidos com esse mal cujo nome mesmo realiza a coisa. Mas que mal esse mal realmente seria é o que se torna o problema sobre o qual gostaria de refletir nesse momento.

A depressão parece ter se tornado um registro afetivo coletivo. Antigamente se falava em estados melancólicos. Popularmente as pessoas diziam: estou meio “down” e a gíria servia para tornar tudo muito comum e não tão importante. Estar “pra baixo”, como fica claro na mais simples análise da etimologia, nunca foi nada fora do comum. Hoje, contudo, se fala em epidemia de depressão, surto geral de depressão. O mal estar ao qual chamamos depressão generalizou-se. Tornou-se corriqueiro que alguém sinta-se mal psiquicamente falando e logo apareça alguém, um colega, um familiar, com o diagnóstico genérico da depressão que está disponível no mundo da vida e do qual o seu portador provavelmente ouviu falar nos contextos mais variados. Isso porque pesquisas sobre depressão e sua cura são divulgadas pelos meios de comunicação (TV, jornais, revistas). Já o risco de mistificação por meio dessas pesquisas sobre a depressão não vem ao caso, nem para a ciência, nem para a população.

Ora, o que se chama de depressão não tem sido questionado, não tem sido colocado como questão, mas apenas como resposta. As pesquisas em torno do tema são feitas, a propósito, com o fim de serem divulgadas para um público amplo, criando, assim, uma cultura em torno daquilo que foi sugerido como hipótese. Longe do questionamento,  uma nova mania coletiva surge junto com a depressão, a mania de diagnóstico. Seja ele científico ou popular, não importa, o importante é a resposta capaz de aplacar a angústia da incerteza.

No âmbito do diagnóstico popular, a depressão é uma tristeza profunda, tão profunda que pode perturbar o todo da vida. Já segundo o discurso especializado, o deprimido não está apenas triste. Se trata de algo pior do que de tristeza no caso da depressão. Trata-se de uma “disfunção” química, de um “transtorno”, termo genérico usado na cultura da psiquiatrização da vida que transforma tudo em doença. Uma não-vontade, ou uma vontade de nada que pode ser corrigida com remédios, eis o que está em cena.

De qualquer modo, ficar um pouco triste, tanto no sentido popular, quanto no sentido especializado, segundo um ponto de vista razoável, seria algo normal e desejável diante de certos fatos, das catástrofes pessoais. Diante de uma fato triste, o razoável, sob qualquer ponto de vista,  é sofrer. Qualquer pessoa pode se dar conta disso, mas não o deprimido, pois ele, de certo modo, perdeu a capacidade de pensar, de constatar o mais óbvio. Perdeu a chance de ver que o sofrimento é generalizado e, por isso, sobrevalorizaria o seu sofrimento. No extremo, o deprimido se sentiria sentindo coisas erradas, ao se dar conta de que todo mundo sofre e seu sofrimento não teria nada de especial, por mais que ele tudo indicasse o contrário.

O deprimido acredita que seu sofrimento é único. E, embora o seja em um sentido lógico, não o é em um sentido comparativo. Indo por um caminho ainda muito simples, fácil pensar que sofrer faz parte da condição humana. E assim diremos àquele que sofre. Por que, no entanto, o sofrimento – que é algo assim tão “natural” – é vivido como insuportável e, justamente por isso, vem a caracterizar a depressão?

Dizer que há um sofrer normal e um anormal expõe que há uma teoria generalizada quanto às normas do sofrimento. Não suportar o sofrimento soa como anormal. Anormal é a experiência do sofrimento idealizado como algo anormal. Como as normas dão segurança, tanto a ciência quanto o senso comum, esperam que a vida funcione segundo normas. Assim com o sofrimento que nos parece algo tão especial, tão sagrado, e de modo algum sujeito a qualquer norma. As normas são teorias-práticas que orientam nosso modo de ser e agir. Gostamos delas e por isso mesmo, a depressão parece ser uma doença apenas porque foge à certa norma relativa à compreensão do estado mental desejável coletivamente.  Pois é justamente aí, neste escapar da norma, que mora certa “riqueza” da depressão, por mais horrorosa que ela possa parecer.

“Spooning Couple” de Ron Mueck/ Galeria de Arte de Manchester

Luto proibido

A compreensão do estado do luto em nossa cultura, pode nos ajudar a entender o que tem sido feito em termos da administração social e cultural do sofrimento que experimentamos hoje. Se lembrarmos da definição de luto usada por Freud, o luto seria uma perda de objeto que implicaria um trabalho psíquico para acostumar-se à vida depois da perda. O luto seria normal quando superado, anormal quando insuperável.

Até aí, nada demais, a vida das pessoas organizar-se-ia com a organização da dor. O sofrimento seria, mais uma vez, parte do cotidiano. O luto, o trabalho de superação. Qualquer pessoa em algum momento viveria o sentimento do luto, porque, inevitavelmente, seria impossível viver sem perder algo ao qual se tivesse afeiçoado. Viver implicaria perder e enlutar-se seria um tempo necessário a quem experimentasse a perda.

O problema de quem é classificado como “deprimido” parece ser o de um luto profundo. Um luto interminável. Pensa-se, então, nas condições do “eu”, na fragilidade pessoal,  subjetiva de quem está sob esta condição. Desse ponto de vista, tudo é lançado sobre a “subjetividade” de cada um como se ela fosse “natural”  e não construída socialmente. Ora, essa posição não se sustenta quando vemos as condições sociais, coletivas, culturais, em que se dá o luto hoje. Neste sentido, esta época em que a indústria cultural da libido e da felicidade estão em alta pressionando cada um à crença de que nada se perde e de que tudo pode ser conquistado, que qualquer sofrimento pode ser superado, o luto não é tão bem vindo assim. O luto é contra-ideológico. O luto prejudica o funcionamento social. Por isso, exige-se que o luto aconteça rapidamente. Ou não aconteça.

Para que a máquina do sistema continue funcionando, precisamos ser diariamente privados do luto, proibidos de viver a experiência da perda, proibidos de perder. Convocados a uma bizarra ideia de progresso, somos proibidos do fracasso. O que o deprimido vive é, na verdade, uma espécie de proibição do luto, uma impotência para o luto. Impotência introjetada no contexto da experiência cultural. Assim, no Brasil enterramos os nossos mortos rapidamente, do mesmo modo que tomamos remédios para não atravessar as inevitáveis dores da vida

O deprimido é aquele a quem o luto está vetado. Deprime-se aquele que não conseguiria realizar o trabalho do luto no contexto de uma ideologia da produção e do consumo vividos como únicas dimensões da vida. Assim é que “deprimido” é o estigma daquele que não consegue voltar à norma do sucesso, da felicidade de plástico no âmbito da ação esvaziada no esquema produtivo-consumista.

Nesse contexto, seria de se perguntar se o deprimido e sua depressão não teriam algo a ensinar sobre o estado geral da sociedade.

(1) Comentário

  1. O melhor texto que ja li sobre o assunto. O unico que fala a verdade, de maneira tao profunda. Esse texto me mudou profundamente.

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Novembro

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