Denise Stoklos entre a adaga e a flor-de-lis

Denise Stoklos entre a adaga e a flor-de-lis
Fotos Thais Stoklos

 

O cante a palo seco/ é um cante desarmado:/ só a lâmina da voz/ sem a arma do braço;/
que o cante a palo seco/ sem tempero ou ajuda/ tem de abrir o silêncio/ com sua chama nua.
(…)
A palo seco é o cante/ de grito mais extremo:/ tem de subir mais alto/ que onde sobe o silêncio;/
é cantar contra a queda,/ é um cante para cima,/ em que se há de subir/ cortando, e contra a fibra.

João Cabral de Melo Neto. A palo seco.

Vendo gritos e palavras: um recital, em cartaz no Teatro Anchieta somente até o próximo dia 13 de dezembro, é a terceira incursão consecutiva de Denise Stoklos pela mundo da literatura, solidificando o ponto de viragem que a carreira desta verdadeira atriz-ornitorrinco (cujo corpo, estranhamente, tem a eloquência dos bons livros e cuja rara loquacidade, por sua vez, não nasce senão da politicidade sensível de que fala Jacques Rancière) sofreu a partir de Preferiria não?, baseado na novela Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street, de Herman Melville, em 2011, ao qual se seguiu Carta ao pai, dois anos depois, construído em torno da famosa correspondência que Franz Kafka escreveu para Hermann Kafka, mas nunca entregou a ele. Antes, Denise apresentava em seus espetáculos uma dramaturgia mais autoral, tecida a partir de fios argumentativos e narrativos que ela retirava de suas leituras de cabeceira, fazendo-os mergulhar em sua própria interioridade de intérprete, de onde eles saíam escorados pela moldura ficcional, sem, no entanto, jamais deixar de vazar, em jorros vibrantes e caudalosos, a autenticidade do documento testemunhal. Em seus últimos trabalhos, a atriz tem estado mais porosa a materiais dramatúrgicos que não são propriamente seus, mas com os quais, pela via do exercício da imaginação e da consciência públicas, ela estabelece uma proveitosa interlocução, fazendo com que Melville, Kafka e, agora, Cortázar façam sentido para nós através de seu corpo e de sua voz.

A primeira grande qualidade do trabalho reside no fato de ele não constituir propriamente um espetáculo teatral, embora não lhe faltem as marcas da teatralidade sui generis que Denise Stoklos vem desenvolvendo já há quase cinco décadas. Recusar a forma teatral, aqui, parece uma opção de grande sabedoria, umbilicalmente ligada à dinâmica própria da literatura cortazariana, que, segundo o maior especialista no autor argentino que há entre nós, o professor e ensaísta Davi Arrigucci Jr., promove uma destruição, de dentro para fora da obra literária, dos conteúdos e das formas sobre os quais está assentada a prática da literatura desde sempre: “Julio Cortázar queria escrever como um músico que improvisasse: como os grandes artistas do jazz, que tanto amava, refazia, com lucidez cortante, a cada take, a cada texto, o percurso decisivo numa espiral ilimitada, insatisfeito, sempre perseguidor. Dessa busca fizeram parte a invenção constante, o trajeto labiríntico, os impasses, os riscos de autodestruição, o silêncio, as narrativas por fim resgatadas do naufrágio. Hoje elas nos contam um pouco da sua história e delineiam a fisionomia definitiva de sua obra de narrador. Uma obra ostensivamente plural e, no entanto, de uma admirável coerência interna. Presa ao impulso central, mas aberta à irradiação do sentido: sondagem, tateio, desejo de encontro”.

Assim é que Vendo gritos e palavras é um misto de recital (como o próprio título indica), conferência e aula-magna, formas estas, em cena, estranhadas ao limite da implosão – como convém ao encontro de uma atriz iconoclasta que está sempre a assassinar hoje as velhas espetaculosidades embusteiras de ontem vendidas como as verdades sensacionais de amanhã com um escritor cuja tática poética é a do “escorpião encalacrado” (uma vez mais, Arrigucci): que se dobra sobre o próprio corpo para inocular em si mesmo o veneno que produz. Hibridismo e estranhamento dão o tom durante os cerca de sessenta minutos que dura a experiência. Um recital em homenagem à memória de um grande escritor latino-americano se anuncia no palco, mas o formato rapidamente roça os contornos de um recitativo: de tempos em tempos, o tango e o jazz acompanham as palavras proferidas pela atriz, pontuando aquilo que foi expresso, mas continua indizível e sugerindo atmosferas ora densas, ora ligeiras, ora inefáveis… A conferência solene também se instaura, ao lado do recital, mas logo ela se ficcionaliza. Há textos impressos para serem lidos e estantes de partitura para apoiá-los. Mas em determinados momentos os textos se convertem em dálias (talvez até mesmo em didascálias) e há estantes demais. O excesso é por demais eloquente. Se a quantidade absurda de assentos que Ionesco põe em cena em As cadeiras trai o estímulo à fantasia previsível exercida por parte do espectador e propõe a este uma ambiguidade angustiante – não teríamos virado todos nós um grande contingente de “presenças imaginárias” –, o excessivo número de aparadores de textos dispostos sobre o palco, em Vendo gritos e palavras: um recital, sonega a angústia de sabermos não haver mais quase ninguém no mundo real disposto a ouvir uma palestra sobre um tema tão desimportante e, paradoxalmente, essencial como a literatura, propondo em seu lugar uma multiplicação algo quixotesca de excelentes textos, ideias penetrantes, palestrantes que têm o que dizer e pontos de enunciação verdadeira. Regados todos por uma chuva tão benfazeja quanto insólita. Por fim, ao lado do recital e da conferência, uma aula-magna é ministrada por uma estudiosa zelosa de seu “tema de pesquisa”, mas o evento acaba adquirindo os traços de uma anti-aula, preparada em chave de inversão paródica, porque calcada de tempos em tempos em autoironia e derrisão.

A segunda grande qualidade do trabalho diz respeito a sua estrutura fragmentária. O que vemos no palco não são menções nem às breves peças de teatro que Cortázar escreveu (reunidas no Brasil nos volumes Os reis e Adeus, Robinson e outras peças curtas) nem aos romances, novelas e contos “clássicos” do autor de O jogo da amarelinha, mestre em conceber narrativas em que o banal e o fantástico se cruzam de tal maneira que desta fusão acaba por emergir um modo muito singular de representação literária cujo foco principal é questionar, a um só tempo, o mundo das regras aristotélicas e o universo da própria ficção, como Instruções a John Howell, As babas do diabo e As mênades, por exemplo. Denise Stoklos preferiu selecionar alguns dos inúmeros fragmentos a que Cortázar deu luz, penetrantes em sua brevidade formal, inexpugnáveis por sua ilogicidade. Fragmentos que se assemelham a aforismos, parábolas, apólogos e chistes. E que remetem também à forma pela qual a obra de Heráclito de Éfeso – citado literalmente no recital – chegou até nós. (Heráclito que também irmana Denise e Cortázar, ambos admiradores de sua obra). Reúnem-se, por exemplo, dentre outros materiais, microtextos como Instruções para chorar, Ocupações maravilhosas, Fábulas sem moral, Flor e cronópio e Fama e eucalipto, de Histórias de cronópios e famas; Destino das explicações, de Um tal Lucas; e Em Matilde, A mosca e O que gosto do teu corpo, de Papeis inesperados. É por esse universo estilhaçado e não contíguo, então, que a atriz se move com muita naturalidade, enovelando em torno de si, cada fio da virgem ou cada baba do diabo recolhidos, em um movimento sinuoso que evoca a estratégia da aranha que, ameaçadora no centro de sua teia, simboliza, introvertida e narcisicamente, “a absorção do ser pelo seu próprio centro”, de acordo com a belíssima imagem sugerida pelo crítico e poeta surrealista francês Jean-Lous Bédouin. E o bestiário aqui não soaria mais legítimo: no palco do Teatro Anchieta desafiam-se mutuamente um Cortázar-Skorpio e uma Denise-Aracne, cujas secreções fundidas em pura espessura envenenam as boas consciências e paralisam as opiniões pertinentes. Daí a importância de não se falar em espetáculo, em teatro, em unidade temática, em cultura artística – palavras e expressões que neste início de século ganharam outros contornos, sustentando discursos e práticas que legitimam a tirania do mundo da imagem, o embotamento da percepção, o adestramento da sensibilidade…

Por fim, Vendo gritos e palavras: um recital oferece-nos a chance de entrarmos em contato com o trabalho de uma atriz que, tanto quanto seu homenageado, é puro tango e jazz. Raras são as intérpretes que dão vazão em cena a um dramatismo sem amarras, despudorado, tragicômico, como um meneio de um dançarino de tango, a meio caminho entre a gravidade do gesto e a momice de sua intenção. (Raríssimos ainda são os indivíduos que se se lançam a uma homenagem de tamanha carga emocional e integridade memorialística, como a prestada ao diretor Antonio Abujamra, no meio da apresentação. Ele também um perseguidor de invenções desenfreadas e de sentidos inesperados). Ao mesmo tempo, poucos são os artistas que na idade de Denise ainda se sentem compelidos à improvisação, ao risco, à loucura das harmonias dissonantes que não deixam o juízo da melodia apodrecer. Vendo-a dançar em cena, seja ao som de um tango composto pelo próprio Cortázar (em parceria com Edgardo Cantón, registrado no disco Trottoirs de Buenos Aires), seja ao som das estonteantes evoluções de Charlie Parker, um sentimento de beleza estética e de entusiasmo ético nos invade: um país que gerou uma atriz cujo trabalho revela tal envergadura não tem por que não dar certo.

Em uma das muitas entrevistas que concedeu ao jornalista e escritor uruguaio Ernesto González Bermejo, Cortázar declarou nutrir certa obsessão, no campo da literatura, pelo tema do duplo, “uma das constantes que se manifesta em muitos momentos de minha obra, separados por períodos de anos. Está em Uma flor amarela – onde o personagem encontra-se com um menino que é ele mesmo em outra etapa –, um conto escrito vinte anos depois de Longínqua”. Em outro encontro com o entrevistador, o tema do duplo se desdobra no do par mutuamente excludente, veneno que corrói toda ação política: “… No campo da política, as reações são sempre violentas e não faltarão aqueles que tomem muito tempo e páginas para criticar minhas afirmações. Neste campo, o maniqueísmo é quase sempre um monarca absoluto. E eu não serei nunca maniqueísta”. Em Vendo gritos e palavras: um recital, um escritor que carregava em si a melancolia por não ter sido músico, leva uma leitora e uma atriz a se encontrarem, promovendo também o contato íntimo entre uma aprendiz e uma mestra, uma integrante do coro e uma protagonista, uma artista e uma cidadã – todas elas figuras fascinadas por palavras que, recusando todo e qualquer dualismo incompatível, são capazes de talhar o corpo, como um punhal, e, ao mesmo tempo, enlevar o espírito, como a visão de uma flor – esta, por sua vez, conforme lembra outro duplo de escritor e músico, tomada como a própria representação de uma ferida aberta.

Vendo gritos e palavras – Denise Stoklos
Onde: 
Sesc Consolação –  Teatro Anchieta (Rua Dr. Vila Nova, 245 – Consolação)
Quando: Até 13 de dezembro – sextas e sábados, às 21h; domingos, às 18h
Quanto:  de R$ 40,00 a R$ 12,00
Info: (11) 3234-3000

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