Democracia na UFSCar: que horas ela volta?
A reitoria da UFSCar teve no dia 23 de outubro sua lista tríplice suspensa pela justiça (Foto: Divulgação)
Estão chegando ao fim quatro anos de uma gestão singular na reitoria da Universidade Federal de São Carlos. A reitora Wanda Hoffmann foi eleita democraticamente, mas seu período foi marcado pelo pouco diálogo com a comunidade acadêmica, pelo autoritarismo nos conselhos superiores e pelo uso da força policial no campus contra os estudantes. Foi um período em que os mecanismos democráticos da universidade foram postos à prova e, em muitas ocasiões, sucumbiram. Sabemos também, foi o período em que o ovo da serpente do autoritarismo chocou-se e exibe agora seus horrendos rebentos.
A transição para uma nova gestão está em risco. A Pesquisa Eleitoral à comunidade acadêmica foi realizada em agosto, oferecendo elementos para que o Colégio Eleitoral, formado pela integralidade do Conselho Universitário – com representantes discentes, docentes e técnico-administrativos – tomasse soberanamente sua decisão, com a votação e posterior elaboração de duas listas tríplices, uma para reitor e outra pra vice-reitor, observando todos os passos previstos em lei. A lista tríplice para reitoria consta de três nomes: Adilson Jesus Aparecido de Oliveira, Ana Beatriz de Oliveira e Rodrigo Constante Martins. O resultado da lista não se vincula diretamente à pesquisa ou à comunidade, pois são dois processos autônomos. O que há é uma tradição de o Colégio Eleitoral considerar a escolha da comunidade na votação. Os membros do Colégio optaram soberanamente por nomes da chapa vencedora, mas poderiam ter indicado outros nomes.
Elaborada a lista, a comunidade esperava pela nomeação, por parte da Presidência da República, do primeiro colocado da lista tríplice, com boa perspectiva, ainda mais no momento em que o STF discute no plenário virtual a ADI Nº 6565, do Partido Verde, que trata do modo como o governo deve lidar com as listas tríplices das universidades. É o que ocorreu, recentemente, na Universidade Federal do Pará.
O fato é que nesta sexta,
23 de outubro, São Carlos
foi surpreendida com a notícia
de que o golpe veio não do governo
federal, mas do seio da própria
universidade.
Um dos candidatos derrotados na Pesquisa Eleitoral – Fernando Manuel Araújo Moreira – e sua candidata a vice – Fernanda de Freitas Anibal – entraram com uma ação na Justiça pedindo “a nulidade das listas tríplices”, e que as novas tivessem “apenas os nomes dos candidatos a Reitor e Vice-reitor já inscritos e homologados conforme edital e resultado da Pesquisa Eleitoral”. Das três chapas postulantes, Fernando e Fernanda foram a candidatura menos votada na pesquisa, com apenas 9,7% dos votos. A chapa da atual reitora obteve 23,6% e a chapa vencedora 66,7%.
O que os derrotados pedem é que seus nomes figurem, a todo custo, na lista tríplice, para que possam, a despeito de sua quase inexistente representatividade na Universidade, ser escolhidos pelo governo federal, com quem o candidato tem afinidade ideológica. Ao buscarem uma vinculação automática entre sua candidatura, a pesquisa eleitoral e o direito de figurar na lista tríplice, vão contra o princípio não vinculativo entre uma instância e outra, que vige no momento.
A decisão foi exarada pelo juiz de primeira instância, Leonardo Estevam de Assis Zanini, que acolheu o pedido dos derrotados. O juiz, vale ressaltar, é figura já conhecida da comunidade da UFSCar.
Um antecedente eloquente
Em 11 de maio de 2018, a reitora havia chamado a Polícia Federal para realizar a reintegração de posse do edifício da Reitoria, ocupado pacificamente por estudantes que protestavam contra o abusivo aumento de 122% no preço da refeição no restaurante universitário. Na ocasião, sete estudantes já constavam como réus no processo, e foram posteriormente condenados. Indignados, 319 docentes da universidade – incluindo seus últimos seis reitores – manifestaram publicamente repúdio pelos acontecimentos antidemocráticos da gestão Hoffmann, numa carta que viralizou nas redes sociais.
Temerosa dos desdobramentos do caso, no dia 8 de junho de 2018, quando presidiu a primeira reunião do Conselho Universitário após os fatos de triste memória, a reitora, antes de entrar na ordem do dia, diante de uma audiência atônita, chamou para sentar-se a seu lado, na mesa da presidência do Conselho, ninguém menos que o juiz federal Leonardo Estevam de Assis Zanini, que participaria da sessão como seu convidado. A presença do magistrado, alheio à universidade, causou espécie nos presentes, pois o assunto que deveria ser tratado como da comunidade universitária ganhava outros contornos pelo olhar do convidado. O juiz dirigiu-se ao plenário e, logo nas primeiras palavras, assumiu tom intimidatório: “há um total desconhecimento do ordenamento jurídico brasileiro, do que pode e do que não pode ser feito. (…) Estou percebendo que aqui nada é óbvio. Está faltando muito conhecimento”. Após questionamentos enfáticos por parte dos conselheiros, o magistrado exortou: “Eu vejo que a situação aqui realmente está lamentável, e é bom que eu veja isso que eu vou passar isso para os meus colegas que pegam no processo (…) Não é uma ameaça, eu estou dizendo o que eu estou vendo.”
Diante de novos protestos e ao
perceber que não haveria condições
de prosseguimento, apressadamente
passou-se às perguntas, que os
membros da equipe à frente da gestão
e seus apoiadores haviam preparado
com cuidado.
Enquanto isso, o Procurador Federal junto à UFSCar, Marcelo Amorim Rodrigues, que também estava presente à sessão, filmava tudo com seu equipamento pessoal, tal como fizera no dia da reintegração de posse, “como qualquer cidadão”, como dissera naquele momento. Poucas semanas depois, todos os sete estudantes arrolados no processo foram condenados.
De volta para o futuro
Passados dois anos, finda a apuração da pesquisa eleitoral, às vésperas da reunião em que o Colégio Eleitoral seria instalado, um fato insólito ocorreu: o mesmo Procurador Federal junto à UFSCar, Marcelo Amorim Rodrigues, redigiu e encaminhou ao Gabinete da Reitoria e por Whatsapp às chapas, aparentemente por iniciativa própria, um parecer jurídico no qual questionava o processo eleitoral, afirmando que era preciso dar mais tempo para que outras candidaturas pudessem se apresentar ao Colégio. Na reunião do dia 28, os conselheiros demonstraram perplexidade diante do parecer extemporâneo, sobre o qual não tinham conhecimento até o momento. O Colégio foi instalado e o processo seguiu seu curso.
Pois é justamente esse parecer, o 97/2020/CONS/PFFUFSCAR/PGF/AGU, que o juiz Leonardo Estevam de Assis Zanini agora usa como embasamento para sua decisão de embargar as listas tríplices. Alianças entre o procuradores e juízes são conhecidas no Brasil contemporâneo. No caso específico, não é demasiado afirmar que elas não parecem estar a serviço da tradição democrática e da autonomia universitária. É preciso respeitar o resultado soberano do Colégio Eleitoral da universidade. Não é possível compactuar com o desrespeito à decisão da universidade. É preciso resistir ao arbítrio, agora, como nunca.
Wilson Alves-Bezerra é escritor, tradutor e professor associado do Departamento de Letras da UFSCar, onde é membro do Conselho Universitário.