De que são feitos os vínculos comuns?
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“O ser produz o útil
Mas é o não ser que o torna eficaz”.
Laozi, Dao de Jing.
O que só sabemos juntos, em cartaz no Tuca até o próximo domingo dia 18 de agosto, é um exercício cênico que bordeja o além e o aquém do teatro, não se satisfazendo em simplesmente mediar tais opostos e assumir a posição de fiel da balança. Eis seu maior risco e sua maior potencialidade. O trabalho – cuja origem remete ao espetáculo anterior de Denise Fraga, a experiência narrativo-dramático-antropológica muito bem-sucedida Eu de você – tem um fio condutor que se desenovela diante do espectador, ora mais visivelmente, ora de modo mais difuso, concebendo tramas variadas dispostas a brincar com o que é da ordem do teatro, propriamente, como o jogo e o improviso, e a tanger formas não necessariamente teatrais como o discurso, o encômio, o memorialismo, a informação, o senso comum, a indignação e a exposição didática.
O texto assinado por Denise Fraga, Luiz Villaça e Vinicius Calderoni –resultante oblíquo do processo de idealização e criação da proposta, herdeiro direto de materiais dramatúrgicos diversos produzidos na sala de ensaio – estabelece em seu próprio título as quatro linhas de força que sustentam a empreitada. “O que só sabemos juntos” constitui um belo naco da língua portuguesa cuja mordida oferece como sabor um exercício semântico praticado pelo teatro desde sempre – há pelo menos quatro mil anos, como é contabilizado ao final da apresentação. A frase tem início pela nomeação do substantivo masculino que a filosofia da linguagem reputa como uma essência – o “o quê” das coisas – a qual Aristóteles nas Categorias nomeia como quidade, desdobrando o termo em uma pergunta-chave (“O que é ser para todo o ser que é?”) e em uma proposição (“Aquilo que é para este ser ser o que ele é”). Segue-se o advérbio “só”, que é pura militância ética disposta a pressionar um verbo em desuso (uma sociedade fascinada em consumir informações como commodities não tem mais tempo nem interesse em “saber” verdadeiramente das coisas) e um adjetivo cada vez mais esvaziado de sentido (as aglomerações massivas do capitalismo espetacular eliminaram em todas as esferas da vida social o sentido deveras gregário de “junção”). Assim é que, em sua aparente simplicidade, a frase-título da peça comporta um programa político-ideológico à espera de ser degustado (para alguns, engolido), partilhado e comunicado.
De modo bastante despretensioso, naif até, O que só sabemos juntos quer compartilhar, inicialmente, o sentimento da velha fraternidade universal, presente, segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, nas narrativas tradicionais e que o mundo das telas de cristal líquido está deixando para trás. Por isso, ele vai buscar em seu predecessor, Eu de você, o grande apreço pelas histórias de vida de gente comum, que a rigor constituem a história de todos nós. Comum, comunal, comunidade. A série de perguntas feitas por Denise Fraga e Tony Ramos à plateia no início do espetáculo estabelece prontamente uma intersecção entre todos que ali estão (Quem já chegou? Quem ainda não chegou? Quem tem medo de: perder o chão, andar de avião, barata, boleto…?) e prepara para o anúncio das micronarrativas colhidas por ambos os intérpretes a partir de pequenas interações com alguns espectadores. Por fim, há algo de “as mil e uma noites” aí porque, a rigor, todas as histórias se entrelaçam em uma só. O cômodo da casa escolhido como lugar favorito, o objeto a ser levado em caso de uma situação de emergência, a lembrança mais forte do lugar onde se vive também fazem parte do universo fabular do Tonico da Vila Maria e da Denise de Lins de Vasconcelos. Tal como o ídolo Oscarito, digno de toda a admiração, reaparece na careta do tio taxista e nos trejeitos da atriz-humorista. Do mesmo modo que se vai a uma sessão do Cine Candelária e se chega às projeções caseiras em super 8 nos dias de reunião da família. Embora erguido a partir de uma configuração estética e poética muito diferente, O que só sabemos juntos priva com Eu de você do mesmo movimento de mergulho em um vasto mar de histórias cujas ondas arrebentam todas em uma única praia: a do espesso fio de Ariadne que liga o Eu ao Outro.
Há muitos modos de se partilhar uma experiência, e aquele escolhido pelo espetáculo é o da comunicação direta com a plateia, comunicação essa estabelecida quase em estado bruto – verbal, perceptiva, emocional. O que só sabemos juntos quer comunicar uma série de coisas que seus criadores reputam como essenciais: o combate ao machismo e à violência contra a mulher, a compulsão pelo mundo das telas, a crise do masculino, o respeito à natureza, a necessidade de se indignar frente às atrocidades da civilização tecno-industrial, o medo de o solo se abrir debaixo de nossos pés, a possibilidade de ampliar nosso conhecimento sobre as coisas… Talvez aqui resida o maior risco da iniciativa: o de essa comunicação se tornar simplória, melodramática, didática por demais. Ou mesmo estar assentada no personalismo dos intérpretes ou ainda no quase culto à personalidade que os espectadores devotam a eles. Em todos os casos, ficando aquém das possibilidades estéticas e políticas do teatro.
A fim de evitar tal malogro, Tony Ramos e Denise Fraga vão ao mais fundo de suas próprias vulnerabilidades retornando delas na companhia da reputação que construíram ao longo de suas longevas carreiras (a dele contando já seis décadas; a dela contabilizando quatro). Sem segredo de Polichinelo algum, Tony e Denise comunicam as pautas do espetáculo a partir de três traços semânticos ligados ao verbo “comunicar” que normalmente passam despercebidos: pôr em comum, agir em comum, deixar agir o comum. Em A ciência do comum: notas para o método comunicacional, o professor Muniz Sodré, além de escrutinar morfológica e etimologicamente o termo comunicação, defende a ideia de que os seres humanos são comunicantes não porque falam, e sim “porque relacionam ou organizam mediações simbólicas em função de um comum a ser compartilhado”.
Ainda que para um público com uma vivência mais complexa na arte do teatro esse “comum a ser compartilhado” aqui não constitua propriamente uma novidade, para a maioria dos espectadores que têm lotado as sessões do espetáculo as coisas talvez funcionem de outro jeito. Não basta se assumir como um cidadão de bem e compactuar com algum tipo de violência – real ou simbólica; não basta defender um credo religioso com fervor e destilar indiferença ou ódio fervorosamente pelo semelhante; não basta posar de isento ou apartidário e ajudar a chocar o ovo da serpente. O caráter didático de O que só sabemos juntos funciona muito bem junto a um certo tipo de recepção desejosa do espetacular. E que acaba percebendo que Tony e Denise estão tratando em cena de coisas situadas muito além do teatro. Sem a presciência dos gurus ou a assertividade dos formadores de opinião.
Notável é a cena em que ambos os atores desejam nomear o inominável e são atropelados pela verborragia da plateia, que aos poucos vai canalizando sua participação no sentido de propor uma alegada “celebração à vida” cujo tom fica a meio caminho entre a mensagem motivacional e o puro clichê. Pôr em comum, agir em comum, deixar agir o comum. Fazer parte da comunidade do teatro e vivenciar de corpo e alma um espetáculo é muito mais do que tirar uma selfie com os astros e/ou fotografar e filmar a cena final – eis o que talvez se leve de ensinamento da experiência.
Há que se destacar a constituição artística desse happening sui generis. A dramaturgia investe na coerência e na articulação dos temas, concebendo de fato um “texto” – o outro particípio passado do verbo tecer. A direção de Luiz Villaça conduz muito bem os ritmos e atmosferas instaurados entre os registros do drama, da comédia e do teatro-fórum. Dar unidade a excertos e fragmentos e transformá-los num todo compreensível não é tarefa das mais fáceis e exige a figura de um encenador que compreende a sintaxe de uma forma fluida e escapável. A performance musical das cinco instrumentistas em cena, dada a qualidade das artistas, não distrai o público; antes, conversa com o que está sendo apresentado pela admirável capacidade que a música tem de fazer uso de uma eloquência sem palavras. No tocante às interpretações, dois registros precisam ser feitos. Há que se lamentar a carreira bissexta de Tony Ramos no teatro. Tivéssemos mais contato nas salas de espetáculo com sua energia criativa, sua inteligência cênica, seu corpo e voz educados por uma tradição que vem desaparecendo e que tanto pode ensinar às novas gerações, sua disposição ao novo, compreenderíamos melhor a força que a velha arte de Dioniso exerceu no panorama sociocultural do país a partir da segunda metade do século XX. Há que, por fim, se destacar o incomensurável talento de Denise Fraga para estar num palco inteiramente dedicada a ele. Se em Eu de você, víamos uma atriz em verdadeiro estado de graça, aqui somos capazes de vislumbrar também uma artista em inquieta consciência cidadã. O que não é pouco, dada a desfaçatez pela qual lidamos cada vez mais com o que não seja o eu, o meu e o próprio ligado a mim.
O QUE SÓ SABEMOS JUNTOS
Até 18 de agosto Sextas, às 20h; sábados, às 20h; domingos, às 17h Tuca (PUC-SP): 670 lugares Rua Monte Alegre, 1024 – Perdizes – São Paulo (SP) Duração: 90 minutos Classificação indicativa: 12 anos Ingressos: de R$ 150 a R$ 40
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.