De olho no teatro
Com o lançamento, em fins do ano passado, de Teatro Oficina: Fotografias, Lenise Pinheiro ajuda a construir a história do teatro brasileiro fazendo uso de uma linguagem essencial – hoje, de certo, bastante banalizada pela sociedade de consumo: a imagem fotográfica. O livro reúne em suas caudalosas 472 páginas um rico acervo de cenas de palco do Teatro Oficina Uzyna Uzona que a fotógrafa registrou entre 1991 e 2014. De As boas a Cacilda!!!!, o leitor – uma vez que a etimologia latina do verbo ler remonta à ideia de “colher com os olhos”, nenhuma palavra parece mais apropriada para identificar a principal atribuição de quem irá passear pelas páginas da obra – terá acesso a uma profusão de imagens cujo objetivo é não somente registrar o trabalho de uma companhia que se confunde com o próprio processo de modernização do teatro brasileiro como também explorar os efeitos de sentido inerentes à linguagem fotográfica.
Diante de um instantâneo flagrado por Lenise, o olho do leitor-espectador é convidado a usufruir daquele “isto foi” de que nos fala Roland Barthes. Ao defender a ideia de que a fotografia, da perspectiva de uma antropologia histórica, é a irrupção do novo absoluto, o semiólogo francês afirma que o objeto de pensamento da imagem fotográfica é “ser sempre uma surpresa da consciência: a surpresa (a pensatividade) do ‘É verdade, isso foi’”. Assim, as fotos de Lenise convidam os amantes do teatro ao exercício de um paradoxo: o de se lembrarem do espaço/tempo a que eles estiveram presentes (ou deveriam ter estado) convertido em um espaço/tempo no qual desejariam – para muitos, infinitamente – viver.
A seguir, Lenise fala dos princípios poéticos que regem seu trabalho.
O que a mobiliza primeiro para fazer uma foto de teatro? Quais são seus estímulos iniciais?
Os estímulos parecem plurais. Em se tratando de fotografia de teatro, são coloridos e iluminados. Surgem da movimentação dos atores e técnicos. Os diretores, cenógrafos, iluminadores e figurinistas compõem mosaicos revelados por químicas decantadas nas coxias. Um único objeto de cena pode resultar em estímulo. A sinergia é poderosa entre os artistas. É dela que vem a motivação.
Muitas fotos de Fredi Kleemann têm o poder de arrebatar o observador para dentro daquela cena de teatro, paradoxalmente, há muito já desaparecida. A que você credita esse poder da imagem, que emana também das fotos que você faz?
A alusão ao trabalho do ator/fotógrafo Fredi Kleemann (alemão naturalizado brasileiro) vem reforçar nossa sintonia. Eu mesma, no meu primeiro livro, Fotografia de Palco, faço dedicatória pública a ele. A paixão pelos ofícios do teatro são pontos convergentes. Embora a fotografia, nos dias de hoje, flerte com os pixies. Fredi e eu nos especializamos em teatro. Valorizando as amálgamas das parcerias profundas. Click.
Em um mundo dominado por uma profusão industrial de imagens, que valor podemos atribuir às fotos artesanais, como as suas?
Fico feliz em poder elaborar minha colcha de retalhos. É mesmo artesanato. Meu trabalho se fundamenta através de uma arte milenar, carregada de significados. Movidos pela energia da cena. Tento valorizar o movimento e o olhar do ator. Mantenho o foco e tento fazer coberturas de caráter documental. Sou profissional desde o início dos anos 1980, meu primeiro trabalho foi na Escola de Arte Dramática. Desde lá venho povoando um acervo de inquietos retratos analógicos e digitais, carregados de contrates e brilhos. Estou procurando patrocínio para a digitalização completa de meu acervo. O acabamento artesanal vem dos elementos alquímicos da atmosfera teatral.
A fotografia ainda tem um poder formador nos dias de hoje? De “descondicionar” ou mesmo descolonizar olhares e percepções embotados pelo senso comum?
Vejo com bons olhos a fotografia na mesa do brasileiro. Vivemos numa era digital em que o apelo das telas é irrestrito. O senso comum parece absorver as novas propostas. Seja em forma impressa ou em visor de cristal líquido. Sei de casos onde o instagram é personagem principal no cotidiano. Assunto entre seguidores. Veja só.
Que contribuições a arte da fotografia pode dar à arte do teatro, sendo elas linguagens em princípio tão diferentes?
A fotografia e os vídeos são considerados documentos do fazer teatral. Documentar é a real vocação da fotografia de palco. Estou de olho.
Teatro oficina
Lenise Pinheiro
Imprensa Oficial
R$ 160,00 • 472 págs
Leia também o perfil de Lenise Pinheiro, por Helder Ferreira, na Revista CULT de março. Já nas bancas.
Welington Andrade
Bacharel em Artes Cênicas pela UNIRIO e em Letras pela USP, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado, Andrade é professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e um dos autores da História do Teatro Brasileiro (Editora Perspectiva/Edições SESC-SP).