De avó para neta, de mãe para filha
A rapper MC Soffia (Foto: Ica Martinez)
Imãs de militantes negras na geladeira e bonecas pretas penduradas nas paredes sugerem algo sobre a família de MC Soffia. A menina de 12 anos que, em agosto, cantou na abertura das Olimpíadas no Rio de Janeiro ao lado da rapper e “madrinha” Karol Conka, faz rimas sobre infância, autoestima, racismo e resistência negra feminina. Na sala da casa de sua avó, localizada na região central de São Paulo, fotografias narram um pouco da história das duas gerações de mulheres que vieram antes de Soffia Gomes da Rocha Gregório Corrêa: sua mãe, a produtora cultural Kamilah Pimentel, 30, e sua avó, a bonequeira e arte-educadora Lucia Regina Gomes da Rocha, 55.
“Quando eu era pequena, minha avó e minha mãe me falavam que, desde que um negro nasce ele sofre racismo, porque mesmo que eu não seja a vítima, se outro negro está sofrendo, todos os negros sofrem”, diz a menina. Soffia compõe suas letras com a ajuda de Kamilah e Lucia e, por meio do rap, quer compartilhar os aprendizados que recebeu de suas familiares desde muito cedo. “Num conto de fadas a Rapunzel joga suas tranças/Na minha história, ela tem dread e é africana”, diz, por exemplo, a letra de “Minha Rapunzel de dread”, uma das músicas da menina.
Para Soffia, é importante que outras crianças se identifiquem com sua música para que consigam reconhecer casos de racismo. Junto da avó e da mãe, ela percebeu que está no caminho certo a partir do momento em que desconhecidos começaram a pará-la nas ruas para dizer, por exemplo, que seus raps os ajudaram a aceitar seus cabelos. Lucia Regina diz que “todo negro já nasce militante”. Ela é conhecida como Makena, expressão comum no Quênia que significa “a feliz”. Há cerca de dez anos, Lucia começou a costurar bonecas de pano preto, com vestidos de cores vivas e turbantes na cabeça. Chamou-as de Makena. Aos poucos, aperfeiçoou seu trabalho para que a identidade negra se tornasse cada vez mais verossímil: aprendeu técnicas para deixar os cabelos altos, engrossou os lábios com tinta de tecido e adotou como matéria-prima a chita, tecido de algodão barato que vestia pessoas negras escravizadas no período colonial. “Quando penso em trabalhar com a chita, é isso que quero passar: muito mais que roupa de festa junina, é toda uma cultura negra”, comenta.
Da mesma forma que as Makenas – criadas para que crianças negras pudessem se reconhecer em seus brinquedos – são a arma política de Lucia, a música foi a ferramenta de militância que Soffia encontrou para passar o seu recado. “Mesmo que eu não cantasse, eu poderia estar desenhando ou fazendo ‘youtubes’. Há várias formas de falar sobre racismo, mas escolhi a música porque gosto de cantar”. E ela cantou pela primeira vez aos 6 anos, quando participou do projeto O Futuro do Hip Hop, patrocinado pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Prefeitura de São Paulo.
Soffia acredita que o rap é o componente do hip hop com maior capacidade de narrar problemas sociais, mas aos poucos ela tem aprendido sobre os outros pilares que sustentam a cultura: o grafite, o break, o DJ e o MC. “Ao fazer parte do hip hop, ela automaticamente está em um movimento contestador, e por isso ela começa a contestar sua vivência e realidade”, diz Kamilah.
Menina bonita do laço de fita
“Barbie é legal/Mas eu prefiro a Makena africana”, canta Soffia na música “Menina pretinha”. Com o intuito de trabalhar a autoestima da garota desde cedo, a mãe e a avó estimularam o debate racial dentro, mas também fora de casa, levando-a a seminários e a outros eventos da militância negra. Kamilah também a aproximou da literatura afro-brasileira e fez questão de presenteá-la apenas com bonecas negras. “Quando a criança negra brinca com uma boneca branca, no seu inconsciente, ela pensa ‘eu vou servir aquela boneca, vou ser sua babá’”, explica.
As bonecas, tão importantes na construção da identidade de Soffia, já começaram a ficar de lado. Hoje, seus passatempos favoritos são futebol, taco, tênis, esconde-esconde, pipa e tudo o que a faz gastar energia. Mesmo assim, ela não deixa de lado as atividades que fortalecem sua negritude: “Qual é o teu segredo para ser tão pretinha?”, recorda a pergunta do coelho no livro Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado. Soffia conta que a obra a ajudou a se entender enquanto menina negra. Assim como a personagem, ela também costumava enfeitar a cabeça com grandes laços coloridos – quando seus primeiros vídeos começaram a circular pela internet, eles se tornaram uma de suas marcas registradas. “Eu usava mais fita, agora não uso muito. Toda hora estou mudando de cabelo, cada hora faço um penteado novo. Eu gosto do meu cabelo natural, mas quando tem shows eu gosto de fazer alguma coisa [diferente]”, conta, enquanto ajeita o penteado mais recente, uma longa trança branca.
Questionadas sobre em que momento perceberam que a garota estava, de fato, ficando famosa, mãe e filha responderam, juntas: “Ainda não percebi”. Soffia conta que não se sentiu nervosa na abertura dos Jogos Olímpicos porque “ficou tudo preto” e ela não via mais ninguém. Mas gostaria que alguém a visse: “Queria que a Beyoncé tivesse me assistido, mas tenho certeza que não, ela poderia estar fazendo outra coisa. Mas acho que o Drake e a Rihanna viram.” Além delas, a rapper se inspira em outras cantoras como Erykah Badu, Janelle Monáe – ambas negras – e também no projeto brasileiro Divas do Hip Hop. “Gosto de todas as mulheres que cantam. Não conheço todas, mas eu gosto.”
Sua admiração, no entanto, não envolve só artistas. Na escola, Soffia quer conhecer as heroínas e os heróis negros que fizeram parte da construção de sua própria história: Dandara, Chica da Silva, Clementina de Jesus, Cleópatra, Zumbi dos Palmares e a rainha africana Nzinga Mbandi. Para Kamilah, um dos maiores problemas enfrentados pela população negra é o desconhecimento da nacionalidade de seus antepassados, devido à diáspora africana. “Todo mundo sabe a origem, ou italiano, ou japonês, e nós sabemos apenas que somos negros.” O sistema do colégio de Soffia é um pouco diferente dos tradicionais: com a ajuda de um tutor, as alunas e os alunos montam roteiros individuais de aprendizagem, quebrando padrões convencionais. Suas matérias preferidas são história e pesquisa cujo foco, hoje, é música, já que ela pretende aprender a ler partituras.
É na escola que Soffia pode ser apenas uma criança em meio a seus amigos, que não pedem autógrafos ou fotos: “Ainda bem!”, diz. “O primeiro contato do negro com racismo é na escola”, afirma Kamilah, que sofreu com o preconceito na infância e não queria que a história se repetisse com a filha. No processo de traçar estratégias para trabalhar a autoestima da criança, Kamilah, que engravidou de Soffia aos 17 anos e a criou com a ajuda da mãe, entendeu que ela mesma poderia ser uma referência para a filha, que diz não passar por isso, ao menos no ambiente escolar: “Na minha escola ninguém sofre racismo ou preconceito.”
Para o futuro, a pequena faz planos. “Ninguém sabe o dia de amanhã, mas espero que, quando eu estiver com 30 anos, eu esteja famosa e que todas as crianças se aceitem, todas as escolas – públicas, particulares, do Estado e da prefeitura – comecem a falar sobre questões de preconceito e racismo. Que apareça bastante criança nas novelas, crianças negras sendo as principais, modelos negras ganhando.” Com sua música, Soffia quer, aos poucos, contribuir para que tudo isso aconteça: “Para o racismo acabar, a primeira fase é todos se aceitarem. Então, nós vamos ajudando.”