David Byrne: ‘As pessoas estão ficando cheias de toda essa propaganda digital’

David Byrne: ‘As pessoas estão ficando cheias de toda essa propaganda digital’
David Byrne (Foto: Will Squibb)

 

David Byrne não para. Aos 62 anos, acumula projetos que passam pela literatura, pelo cinema e até pelo cicloativismo. Nas últimas décadas, o músico Byrne recebeu um Oscar pela trilha sonora de O último imperador, de Bernardo Bertolucci; dirigiu um documentário sobre a influência do Candomblé nas artes brasileiras, fundou uma gravadora, lançou nove livros – o mais recente, Como funciona a música (Manole, 2014), lançado em maio no Brasil – e se tornou uma voz mundialmente reconhecida em defesa do uso da bicicleta nas grandes cidades.

O que não está entre os planos do músico escocês, entretanto, é louvar a internet como uma ferramenta salvadora da música. Byrne manifestou sua opinião em um artigo no jornal inglês The Guardian, em outubro de 2013, afirmando que “a internet irá sugar todo o conteúdo criativo do mundo”. Sua crítica se direcionava especialmente aos serviços de streaming, plataformas que permitem ao usuário acessar um catálogo de milhares de álbuns em troca de uma pequena quantia mensal. Segundo ele, esse tipo de serviço gera lucro para as gravadoras e conteúdo livre para os fãs, mas, para os próprios músicos, não provoca nada além do “desastre”. “A internet afetou a música antes de afetar muitas outras áreas”, diz Byrne à reportagem da CULT, alertando que, em breve, todas as áreas criativas serão impactadas por ela – e não de maneira exatamente positiva.

CULT – Num artigo publicado no The Guardian no final de 2013 você afirmou que “a internet irá sugar todo o conteúdo criativo do mundo”. A internet está matando a criatividade das pessoas?

David Byrne – Está tornando mais difícil que pessoas criativas possam viver do seu trabalho. A renda das vendas digitais e especialmente dos serviços de streaming é minúscula. Não me parece sustentável, ao menos não para as pessoas que criam as coisas. Não há renda suficiente para pagar pelas gravações, mesmo que esteja mais barato produzir música hoje, e nem mesmo para os músicos viverem. E se você não consegue viver como músico, jornalista, escritor, compositor ou cineasta, irá desistir eventualmente e procurar outras formas de alimentar a sua família. Eu também me pergunto se a internet pode um dia se tornar segura – Edward Snowden acredita que, por meio da criptografia, podemos torná-la muito mais segura do que é –, mas eu me pergunto se a sua própria natureza é favorável à segurança. Acabou de ser revelado que a Agência de Segurança Nacional desativou a internet na Síria em 2012, o que significa que eles podem fazer o mesmo em qualquer lugar. Entre eles e as grandes corporações e hackers que sugam todas as nossas informações, a coisa toda me dá arrepios – apesar de eu usar essas tecnologias ainda assim.

Thom Yorke, Beck e outros músicos se uniram a você nas críticas aos serviços de streaming de música como Pandora, Spotify e Rdio. Não há nada de positivo nesses serviços?

Para o consumidor, pode ser positivo. Mas o Napster e o Limewire [programas de compartilhamento e download de arquivos do início dos anos 2000] também eram – para o consumidor, de qualquer forma. Bom, estou chamando-os de consumidores, mas, na maioria das vezes, eles não pagam nada. Fazer com que a cultura e o conteúdo sejam mais baratos é, de fato, uma ação muito popular entre os consumidores – e também entre os chefões digitais, que são, na verdade, quem ganha dinheiro a partir desses serviços. Mas, da mesma maneira com que a China produz todo o tipo de bens baratos, os benefícios têm um preço. As pessoas que costumavam produzir essas coisas localmente perderam seus empregos. As cidades em que viviam são fantasmas. A longo prazo, o mais barato nem sempre é a melhor opção.

Vê alguma maneira de torná-la rentável para artistas?

A ideia de que escritores não precisam ser pagos pela sua obra, de que músicos devem ceder o seu trabalho de graça (sem serem consultados), e outras atitudes similares, precisa mudar. Há muito papo furado no mundo digital, como a ideia de que toda ruptura é boa ou que tudo deveria ser gratuito e a tecnologia irá resolver todos os nossos problemas. Temos engolido muito dessa tolice. As pessoas estão ganhando muito dinheiro com o mundo digital, sim, mas os que estão lucrando são mediadores que, na verdade, não estão envolvidos com o trabalho artístico ou que não produzem nada. Banqueiros também não produzem nada. Mas eu sinto que essas atitudes em relação à internet e os mediadores irão mudar em breve. As pessoas estão ficando cheias de toda essa propaganda digital e deixaram de acreditar nisso de forma automática.

Consegue enxergar um futuro em que a arte, em geral, seja beneficiada pela internet?

Eu gostaria de acreditar que pode acontecer, mas a minha imaginação ainda não me mostrou como.

Durante uma turnê brasileira nos anos 1980 você ouviu o disco Estudando o samba, do Tom Zé, pela primeira vez. Mais tarde, lançaria a coletânea The Best of Tom Zé, o primeiro disco de música brasileira a ficar entre os mais importantes da década nos Estados Unidos. Por que decidiu lançar o trabalho do Tom Zé fora do Brasil?

Lembre-se, não havia internet a essa altura! Quando eu recebi o vinil do Tom Zé em casa, fiquei surpreso. Gostei muito do disco e imediatamente percebi aquela experimentação radical e com tom de brincadeira, junto à inovação intelectual que estava acontecendo em todo o lugar, e muito fortemente no Brasil, mas a que a América do Norte não tinha acesso. Eu tive que perguntar “Quem é esse cara? De onde ele vem? Ele é popular?”. Era isso que eu queria que as pessoas experimentassem. A resistência ao disco, é claro, veio do Brasil. Eu recebi perguntas de brasileiros: “Por que você está lançando este cara? Temos tantos bons artistas no Brasil, por que não eles? Por que ele?” O que eu poderia dizer? Sim, há tantos outros maravilhosos artistas e compositores no Brasil – e muitos norte-americanos ainda não os conhecem. Mas eu queria mostrar o alcance da criatividade no Brasil a pessoas que ainda, naquele tempo, conheciam somente a Bossa Nova. Eu obtive reações semelhantes quando fui perguntado por brasileiros de que artista do Brasil eu gostava: é claro que eu mencionei os artistas da MPB, mas também falei de Zeca Pagodinho e Jackson do Pandeiro, e eu percebi que algumas pessoas consideravam estes artistas como de baixa categoria. Eu acho que essa atitude mudou desde aquele tempo… Principalmente devido à geração mais jovem de fãs de música no Brasil.

O que mais te atraiu na música brasileira?

A primeira compilação de MPB que fizemos era a visão de uma utopia da música pop – um lugar em que trabalhos inovadores e às vezes radicais também poderiam ser populares. Pessoas comuns no Brasil amavam essas músicas e esses artistas, e eles não eram considerados parte de uma elite de gosto refinado. Ainda assim, a música era inovadora e sofisticada. Essa era a proposta incorporada à primeira coletânea que lançamos. Além disso, eu mesmo tive minha própria realização pessoal instigada por essas músicas. Eu me dei conta de que músicas radicais, políticas e inovadoras não precisam ser feias. Na América do Norte e em boa parte da Europa nós duvidamos da beleza. Achamos que, se algo é belo, provavelmente também será superficial e ou apenas agradável. Então, os inovadores aqui no norte tendem a fazer música abrasiva, que afasta os ouvintes. Mas com a música brasileira eu percebi que beleza e profundidade não são mutuamente exclusivas. Os norte-americanos ainda podem ter esse preconceito, mas eu estava encontrando uma saída, ao menos para mim mesmo.

David Byrne pedala em Nova York (Foto: James Penfold)

No livro Como funciona a música, lançado recentemente no Brasil, fica claro que a sua relação com a música transcende esta arte e se estende para a arquitetura, biologia, filosofia e muitas outras áreas. Há semelhanças entre os processos criativos nesses diferentes campos do conhecimento?

O processo criativo é muito parecido entre as disciplinas. Você estabelece uma tarefa para si mesmo (ou recebe uma bolsa para uma pesquisa científica) com algumas restrições e parâmetros, e então você tenta resolver a charada. Definitivamente, não é um processo que necessite de espera por inspiração. Alguém disse que você já deve estar em ação quando a inspiração chega – você precisa ter um lápis na mão, ou uma guitarra preparada. E, se não estiver ativo, o pássaro da inspiração pode até aparecer, mas você irá esquecer o que fazer com ele. Mesmo que a inspiração não venha, acredito que seja importante continuar trabalhando – alguns dos resultados serão ruins, mas sempre se pode jogar estes fora, e, quando boas coisas aparecerem, você está pronto para isso.

Você disse algumas vezes que “nós não fazemos música, a música nos faz”. Como essa percepção afeta seu processo criativo numa composição?

A partir do momento em que se começa a fazer música, as emoções se esvaem para fora de nós – a música simplesmente não descreve as emoções, nós as vivemos (ou revivemos). Claro, o compositor passou por uma emoção que se inseriu no trabalho, mas, para que este seja bem sucedido, ele deve reconstituir com sucesso estas emoções em quem o escuta. É a música que faz isso, são vários elementos que se alinham, e não o compositor. Sim, o compositor escreveu a música, mas ter um sentimento, como raiva ou tristeza, no momento em que se está escrevendo ou compondo não é o bastante. Nas ruas, as pessoas têm raiva, tristeza – e assistir a uma briga, por exemplo, não é algo que evoque estes mesmos sentimentos no observador. Quando se observa algo a distância – como observadores, vemos alguém passar por uma emoção –, não se sente isso, de fato. Mas, com a música, o sentimento é recriado em nós por meio de nossas próprias experiências.

Você afirma que a música não é um mito romântico reservada a um gênio solitário. Essa visão te incomoda?

A visão de cultura do gênio solitário relega a produção de música e todo o resto a “experts” que são “iluminados”. Nessa visão, um número pequeno de pessoas produz cultura e ciência, enquanto o resto de nós está relegado ao posto de meros consumidores. É uma segmentação muito capitalista da cultura, na qual cultura e criação são tiradas da maioria das pessoas, que podem experimentar a cultura, mas são desencorajadas a participar dela – o que eu acho um tanto triste. Todos têm alguma criatividade. Talvez nem todos possam escrever canções, mas há um milhão de maneiras pelas quais as pessoas podem se expressar, elas não precisam deixar tudo nas mãos dos “profissionais”. Eu não me vejo como um desses gênios, mas sim como alguém que trabalha duro e que aprendeu algumas habilidades com o passar do tempo. Isso me faz profissional num certo sentido, mas não é apenas um dom bizarro que simplesmente me deram. Eu, de fato, acredito que às vezes pessoas criativas podem estar no lugar certo na hora certa, ou apenas terem sorte. Ou elas apenas seguem tentando e estão lá quando a inspiração chega. Às vezes as pessoas têm insights ou criam coisas que parecem surgir completamente do nada – mas eu suspeito que não, pois nada cai do céu. Há muitos fatores externos envolvidos. Parte do que eu queria escrever em Como funciona a música era de que forma os muitos contextos financeiros, acústicos, sociais e tecnológicos moldam a música. Ela não surge do nada.

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