Das tretas e da importância de prestar atenção nelas

Das tretas e da importância de prestar atenção nelas
(Arte Revista CULT)

 

Que as redes sociais digitais nos introduziram na Idade das Tretas é fato conhecido e consumado. Como sempre, há os que acham isso deplorável e os que veem no fato um sintoma de revigoramento da esfera pública democrática. O primeiro time lastima a baixa qualidade do debate público em uma circunstância em que se trocam muitas ofensas e poucos argumentos, e em que a divergência com civilidade foi substituída pela busca incansável da provocação e do conflito, cujo propósito principal parece ser a humilhação e o aniquilamento do adversário.  O segundo grupo insiste que a democracia se faz com atrito de pensamento; que há esclarecimento recíproco mesmo quando adversários ferozes parecem nada conceder à posição contrária; que é melhor para todos que as pessoas botem para fora as ideias, mesmo as mais absurdas, distorcidas e antissociais, do que deixar que tais ideias permaneçam na forma de convicções dogmáticas, cristalizadas e intocadas pelas objeções alheias. Uma convicção publicada é uma convicção exposta, no sentido de que só assim pode ser submetida ao teste de aceitação ou de repúdio público por meio do debate, do exame argumentativo e, é claro, da treta.

Não é difícil admitir que ambos os lados podem estar certos, mas gostaria de acrescentar um outro argumento em favor da treta e de outras formas de divergência pública expostas em redes digitais. É um argumento, digamos, de “etnografia política”: na treta a gente consegue, na maior parte das vezes, detectar os pontos de vista “à flor da pele” social, quer dizer, os argumentos sobre divergências sociais latentes, sobre tensões às quais grupos específicos são muito sensíveis ou sobre insatisfações a ponto de eclodir.

É bom que se esclareça desde o início: os pontos de vista, mesmo os mais polêmicos, não são propriamente a treta. Ao contrário, mesmo convicções extremas e sem fundamento na realidade (como as ideias correntes de que a Terra é plana, o aquecimento global é uma invenção do politicamente correto e o nazismo uma ideologia de esquerda), são compartilhadas sem polêmica no interior dos ambientes sociais que as sustentam. A treta só aparece quando os ambientes sociais se tocam e um atrito é produzido, isto é, quando ideias compartilhadas e recompensadas com afeto social no interior do grupo de referência são apresentadas e rejeitadas por outros grupos ou pela sociedade em geral. A treta é o marcador do nível de divergência social acerca de um ponto de vista quando ele é recebido fora do grupo de referência.

Por vezes, o grupo de referência fica sinceramente chocado pelo nível de conflito gerado pela apresentação de um ponto de vista que é uma convicção comum dentro do seu ambiente social. “Como assim alguém discorda de que índio não é fantasia”? “Como assim não há nada de mais em gays se beijarem na rua durante o Carnaval”? O espanto serve de insumo para inflamar o grupo de referência (que pode ser definido como o conjunto de pessoas para as quais aquela convicção faz sentido) e para acionar o “comportamento de enxame”, voltado para defender o ponto de vista e para atacar quem tenta desqualificá-lo ou, até mesmo, quem dele simplesmente diverge. Treta que é treta tem que ter enxame, tem que juntar galera, tem que ter faca na bota e pé no peito. O mesmo acontece em sentido contrário. Quem está fora da bolha que compartilha aquela convicção, exposto inadvertidamente ao ponto de vista inusitado, demonstra o seu choque por meio de todas as formas típicas de rejeição no mundo digital: republicação da ideia chocante para constranger quem a publicou, ridicularização do conteúdo, elaboração de argumentos contrários, ataque à fonte e desqualificação da mentalidade que a gerou.

Se as pessoas mudam ou não o próprio ponto de vista em virtude da treta, é coisa difícil de precisar. A desconfiança mais generalizada é de que a treta é menos uma discussão pública sincera, em que pontos de vista podem ser modificados à vista dos argumentos apresentados pelos interlocutores, e mais um instrumento para reforçar os vínculos internos do grupo de referência e para demarcar as suas diferenças com o adversário, “o outro”. É a treta pela treta, em que os objetivos imanentes são os que realmente importam. Assim, a rejeição ao argumento é considerada uma rejeição “a nós”, à nossa identidade, e só reforça o fato de que entre nós e eles não pode haver acordo.

Além disso, a treta dá à demarcação identitária ares de legitimação conceitual, filosófica e baseada em princípios e não em preferências, crenças e raiva. Afinal, interesses e preferências são coisas mesquinhas e rebaixadas, enquanto se espera que princípios e valores concedam um padrão moral elevado a qualquer rixa e briga de facas. Os argumentos, os conhecemos: Não é por 20 centavos, é para consertar o Brasil; não é para tomar um mandato presidencial que a gente não está conseguindo nas urnas, é para banir a corrupção política do Brasil; não podemos transigir com quem acha que índio, mulheres e negros podem, sim, ser fantasias de Carnaval, pois o que está em jogo é o desrespeito aos índios, às mulheres e aos negros, o que não podemos permitir. Não somos preconceituosos ao declarar a nossa repugnância a gays se beijando no Carnaval, é que se trata dos valores da família e da decência pública em questão e se não os defendemos, que sociedades seremos? O grupo de referência tem razões nobres e, portanto, tem sempre razão, de forma que, julga, apenas a ignorância, a estupidez ou a maldade podem explicar a rejeição ao seu ponto de vista.

Mas a treta também nos permite detectar os fluxos de ideias em curso na sociedade e que, normalmente, podem passar longe dos nossos radares normais. No meu ambiente social, as formas mais brutas de homofobia, de machismo, de racismo e de preconceito de classes raramente se apresentam, assim como o obscurantismo, o ódio à esquerda, o fundamentalismo religioso, o anticapitalismo, o antiliberalismo. Na ocorrência de tretas é que o que está à flor da pele aflora e eu consigo ter uma noção dos temas sensíveis, dos pontos de vista candentes, das ideias surpreendentes em processo na usina social de grupos e ambientes a que não pertenço e que, frequentemente, são política e socialmente importantes. E em redes sociais digitais, do ponto de vista da detecção de temas e tretas surpreendentes, cada dia é um susto.

Fala-se da “esgotosfera” das redes digitais, que permitem que o sombrio, o recalcado e o regressivo sejam vomitados nas nossas timelines. Mas se a brutalidade está lá, não é melhor que consigamos detectá-la e lidar com ela? Umberto Eco, há alguns anos, falou que as redes digitais haviam dado voz ao “doido da aldeia”, que em circunstâncias normais dizia as coisas mais disparatadas que todos estavam prontos a ignorar. Este maluco social, segundo ele, agora ganhou um megafone de alcance potencialmente universal e a chance de fazer prosélitos. Tem razão, mas há coisas mais sérias do que tretas digitais que a democracia permite aos extremistas, aos loucos de mídias sociais, aos identitários mais ferozes e aos portadores das convicções mais antissociais e antiliberais: eles votam. Expor ideias polêmicas, ou mesmo antissociais, e defendê-las em inflamadas tretas é provavelmente menos pernicioso do que mobilizar eleitores e votar. Como nem passa pela nossa cabeça retirar-lhes esse direito, é melhor que pelo menos saibamos o que pensam e tomemos as devidas contramedidas argumentativas e políticas. Sobretudo para não deixar que falem sozinhos nos ambientes sociais em que, hoje, se processa grande parte do confronto de ideias que são as redes sociais digitais. Mais do que nunca, em nossos dias, tretar é preciso.

(1) Comentário

  1. Treta também é o descarte, ou melhor, a deletação que se dá nas redes sociais. É uma posição de intolerância com o outro que pensa diferente. Pois, acontece também nas redes formação de grupos de pessoas que pensam iguais e não aceitam pensamento contrário; um tipo de fundamentalismo virtual.

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