Das políticas e das penas

Das políticas e das penas
(Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

 

Uma vez promulgada a Constituição da República de 1988, após décadas de regime autoritário, fez-se necessária uma releitura das leis penais e processuais penais para atender às exigências do texto constitucional, seus princípios e garantias. Pode-se dizer com certa tranquilidade que esse trabalho, imprescindível para a configuração do regime democrático, nunca foi feito. A última tentativa de se fazer algo no âmbito do Poder Executivo, ainda que timidamente, completou 20 anos em janeiro.

O então ministro da Justiça, José Carlos Dias, instituiu uma Comissão de Juristas para apresentar reformas ao Código de Processo Penal, tendo como norte a Constituição de 1988. Deste trabalho, muitos anos depois, o Congresso veio a aprovar a chamada nova Lei das Cautelares. Essa iniciativa, ocorrida no governo Fernando Henrique Cardoso foi a última ação do Executivo para reformar Códigos e adequá-los ao texto constitucional. Depois disso, todas as iniciativas de reformas foram realizadas pelo Poder Legislativo.

Embora a necessidade de reformar o direito processual brasileiro seja ainda premente, ela foi praticamente esquecida nos últimos 20 anos. Governos se alternaram, mas essa pauta sempre esteve ausente da agenda do Executivo, o que tornou um quadro que já era grave, ainda mais trágico.

Essa condição fundamental para um processo penal efetivamente de cariz democrático fica bem melhor explicada pelo mestre Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (…)”.

Historicamente, a iniciativa para reforma de códigos sempre partiu do Executivo. Forma-se uma comissão com os melhores cérebros das especialidades do direito, convenciona-se um prazo e o resultado final é apresentado. Esse resultado é remetido ao Congresso. E faz todo sentido que assim seja, porque o Executivo tem mais liberdade de escolha, uma vez que não submetido à busca por consenso entre as forças políticas, demandas corporativas, lobbies e partidos, característica do Legislativo.

Custou muito caro o abandono pelo Poder Executivo de uma exigência estrutural do texto Constitucional. Esse vácuo possibilitado por seguidos governos fez com que o encarceramento explodisse, as condições do cárcere se degradassem ainda mais, a violência policial se aprofundasse e, agora, passados 32 anos da Constituição de 1988, vivamos um quadro completamente caótico no que se refere ao sistema de justiça criminal.

Por evidente, esse desleixo possibilitou também que o populismo penal ocupasse espaço. Ou seja, a tragédia do nosso tempo é que não apenas não fizemos um minucioso pente fino na “herança” legislativa deixada pelo regime militar, como também não se fez a fundamental reforma após 1988. Para completar, nos últimos 20 anos o campo do populismo penal ganhou muito espaço. Não à toa, o atual presidente ficou famoso, entre outras coisas, por justamente explorar o medo e a insegurança da população com o mais tacanho e torpe populismo em matéria penal.

Para piorar ainda mais o quadro, gestões que negligenciaram a revisão constitucional dos códigos e das leis penais aceitaram sem nenhum filtro crítico ou mesmo propuseram diretamente uma quantidade considerável de leis penais especiais para atender a pauta de organismos internacionais e ideologias com forte influência dos Estados Unidos sem qualquer legitimidade no direito brasileiro. Assim, criaram-se bizarros mini códigos penais e processuais penais, com ritos próprios, inflação descriteriosa de penas, empoderando magistrados de primeiro grau e ampliando o Estado policial.

O resultado disso, para além da disfuncionalidade do sistema de justiça criminal, se viu não apenas na política como nos números de encarceramento, violência policial, abusos, arbitrariedades. Para citarmos algumas, Lei de Crimes Hediondos (1990), “nova” Lei de Drogas (2006), Lei das Organizações Criminosas (2013), atualização da lei de lavagem de dinheiro (2012), Lei do Terrorismo (2016).

Se hoje já não é fácil explicar como se chegou a esse ponto, imagina responder, daqui há uns 50 anos, por que essa herança e negligência legislativa não foram fruto do período militar de 1964, tampouco legado de um capitão reformado do Exército que chegou à presidência em 2018.

Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP”As instituições estão funcionando”


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