Da resistência de um épico moderno
Berlin Alexanderplatz, epopeico romance do alemão Alfred Döblin que ganha nova tradução, resiste à passagem das décadas graças à complexidade de seu protagonista
Julián Fuks
A cada duas ou três décadas nasce uma criança capaz de apontar o dedo para os volumes ordenados nas prateleiras de uma livraria e dizer: o romance está nu. Foi despido – poderia explicar uma delas se o fato não lhe fosse tão óbvio – dos hábitos que tornavam seu corpo o invólucro privilegiado das histórias, dos trajes que dele faziam a representação maior da aventura humana. Surrupiaram-lhe todos os acessórios, todos os apetrechos, todos os adornos: e o retrato de cada ente passou a ser estampado com rigor técnico em sua foto, e suas peripécias passaram a ser contadas na sucessão imediata dos retratos, captados pelo olho tão mais rápido do obturador. A ilusão agora quem produz é a máquina, e não o ser humano.
Aos romancistas cabe calar a criança, sufocar-lhe o atrevimento. Bradar que o romance ainda tem algo a dizer, um papel vital a cumprir, que ainda guarda em suas qualidades inalienáveis a razão de sua existência. Valer-se do que lhe é próprio, do que o distingue, do que garante sua longevidade. E, se já não podem voltar a coroá-lo – se este mundo não está para reis –, podem ao menos reivindicar seu lugar cativo no império das artes.
Um brado antigo
Foi essa a contrainvestida do alemão Alfred Döblin no remoto ano de 1929. Temiam os menos bravos que o advento do cinema viesse a inutilizar as longas narrativas escritas, substituindo-as como se substituíam quaisquer veículos antiquados. Pensavam que a literatura sucumbiria diante dos encantos daquela nova possibilidade, não se atrevendo a coexistir com uma linguagem tão virtuosa. Pois bem, Alfred Döblin, um entusiasta da modernidade, ergueu a voz para provar o contrário. E escolheu para seu discurso a natureza mais improvável, o campo em que mais estaria fadado ao fracasso: uma aventura muito movimentada, uma história épica.
É repleta de peripécias e viravoltas a história que se narra em Berlin Alexanderplatz, o longo romance que o autor foi publicando como folhetim em um jornal local e que ora chega ao Brasil em bem-vinda tradução renovada. Como outras da época, a obra pretendia retratar uma cidade em acelerada transformação, acompanhada dos inevitáveis acréscimos de violência e criminalidade, de modo que não lhe faltam cenas estrambóticas de discussões generalizadas em bares, surras domésticas, acidentes viários, assaltos planejados e fugas desenfreadas. Para agravar o ambiente caótico e asseverar sua disposição a enfrentar em pé de igualdade a outra arte que ameaçava, o autor ainda fez da montagem o princípio estilístico de seu romance – como bem observou Walter Benjamin em sua clássica resenha da obra –, dispondo ao longo da narrativa inúmeros fragmentos jornalísticos, estatísticas, anedotas dispersas, peças publicitárias, trechos bíblicos.
A militância de Döblin era clara e se expressava também em textos teóricos publicados em paralelo: no que dependesse dele, o romance continuaria a ser o herdeiro principal das antigas epopeias, sua mais perfeita transposição ao mundo contemporâneo, e que nenhuma nova técnica viesse pavonear-se com a intenção velada de usurpar-lhe o posto. É nas páginas escritas que o homem presente pode competir com os heróis pretéritos, nelas é que se revela a verdade de sua existência terrível, nelas é que medem forças o homem e seu destino. Eis o imenso risco que correu o romancista: na sanha de se provar legítimo, apelou tanto a seus ancestrais que pôs em xeque sua própria, tão prezada modernidade.
Um personagem eterno
Se Berlin Alexanderplatz resistiu tão bem à passagem impiedosa das décadas, não foi pelo emprego de uns tímidos recursos inovadores ou pelos empenhos voluntariosos de seu criador. Sua força não reside nos moldes que se esforça em romper, ou nas tradições que forçosamente tenta recuperar, mas na essência daquilo que o diferencia, a essência do que diferencia todo bom romance de um épico antigo: a multiplicidade, a ambivalência, a complexidade de seu protagonista.
Em inumeráveis páginas o narrador trata de definir Franz Biberkopf, o herói dessa história, um homem de 30 e poucos anos, de pensamentos e propósitos simples, um homem que deixa o presídio e se impõe o único intuito de se manter decente. E no entanto, logo percebemos, por mais reveladoras que venham a ser as vicissitudes e as contingências, jamais terminaremos de conhecê-lo. Franz Biberkopf, o ex-presidiário, o egresso, é um transportador de móveis honesto que matou a noiva infiel por acidente. Um sujeito forte como uma cobra naja, grande, um hábil orador quando solta o verbo e, todavia, um bonachão, um ignorante, um fraco. Um trabalhador de ocasião, um desempregado, um falastrão de ofício, um cafetão, um bandido. Doce e sensível e irritadiço e descontrolado, um perigo. Um fascista quando o enervam, ariano e potencial nazista, um operário comunista, um vagabundo anarquista; um revolucionário ou a escória do pântano do capitalismo. Como para todo ser moderno, rótulos e afirmações tácitas não são confiáveis.
Franz Biberkopf é a encarnação perfeita da alma incerta que Georg Lukács descrevia em sua Teoria do romance, a alma que sai a campo para conhecer-se, que “busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar sua própria essência”. Sabemos que não há de encontrá-la, que, terminada sua trajetória, não obteremos nenhuma resposta, nenhuma verdade universal e pronta, nenhum sentido que o narrador prometesse com alarde. O dedo da criança poderá estar apontado, rígido, para esse específico volume avultado, para a lombada rombuda em que se lê o título enigmático, Berlin Alexanderplatz. Pensando em Biberkopf, saberemos voltar a enganar-nos, voltar à ilusão de que a criança está enganada.