Da ponte pra cá | Wesley Barbosa

Da ponte pra cá | Wesley Barbosa

 

“Das paisagens da minha quebrada — sou nascido e criado no município de Itapecerica da Serra, na divisa com São Paulo (SP), que serviu de cenário para muitas histórias do meu primeiro livro, O diabo na mesa dos fundos — a primeira coisa que me vem à cabeça é a fome, os corpos de gente morta nas calçadas, bares e igrejas, barracos demolidos pelo caminhão da prefeitura e muita resistência”, conta Wesley Barbosa, autor de O diabo na mesa dos fundos, Relato de um desgraçado sem endereço fixo e Parágrafos Fúnebres.

O diabo na mesa dos fundos citado por Wesley foi lançado pela editora Selo Povo, de Ferréz, um dos principais nomes da Literatura Marginal. Sobre sua quebrada, Wesley Barbosa prossegue na descrição: “Nessa época eu ficava enfurnado dentro da biblioteca municipal, lendo tudo o que encontrava nas prateleiras de livros. Daí o meu primeiro contato com a literatura de Dostoievski, Carolina de Jesus e Machado de Assis.  Eu andava uma hora até a biblioteca mais próxima. Quando fecharam o lugar, por falta de verba da prefeitura, passei a frequentar os sebos. Eu não tinha quase nada nessa época, mas me sentia o cara mais rico do mundo.”

Wesley acaba de lançar Relato de um desgraçado sem endereço fixo (ficções editora 2021), livro do qual selecionou um trecho para publicarmos aqui:

Quando eu trabalhava vendendo DVD, ou CD pirata na rua, eu era escritor, quando eu saía para procurar emprego em Santo Amaro, às vezes apenas com vento dentro da barriga, imaginando histórias e vendo através da janela do busão os transeuntes apressados, eu era escritor, quando fui colocado para fora de casa por não ter um trabalho registrado e sai com os originais embaixo dos braços em uma madrugada chuvosa, os cães da rua rasgando os sacos de lixo nas ruas da favela e o zé povinho olhando pelo rabo de olho, eu era escritor, quando o policial me enquadrou na entrada da biblioteca municipal usando palavras como ‘neguinho’, ‘macaco’, ‘vagabundo’, ‘débil’ me lembrava dos personagens russos que não gostavam de trabalhar nas repartições e por um momento aquilo me fazia esquecer as injurias do policial, porque naquele momento eu era escritor, quando fiquei durante uma semana comendo pão com mortadela, de madruga uma noite sem nem mesmo ter água para beber, em uma casa cujas paredes eram infestadas de mofo e bolor, mais parecendo a um porão, sem luz, minha mente viajava com as palavras dos poetas dos séculos passados e aquilo me fazia esquecer do perrengue, do sofrimento e da dor que mais tarde me serviria de material para meus escritos e potência para minha vida de escritor.

O escritor Wesley Barbosa
O escritor Wesley Barbosa

Na seção “Da ponte pra cá”, focamos nos trabalhos de artistas espalhados pelas quebradas deste mundaréu e pedimos que estes artistas destaquem outros artistas periféricos, criando uma rede de indicações e afetos. Com a palavra Wesley Barbosa: Um artista da ponte pra cá que todos deveriam conhecer e pelo qual tenho muita admiração é o escritor Valo Velho. Ele é autor de um livro que conta a história da cena punk nas periferias de São Paulo. Esse relato, além de ser escrito de um jeito bastante sofisticado, retrata de forma autêntica o “corre” de artistas independentes como eu. Valo Velho (mesmo nome do bairro dele) viajou pelo mundo e também é poliglota. O título de seu livro é A periferia de moicano.” Para encerrar peço a Wesley que selecione um trecho de um de seus livros anteriores. O autor, um dos expoentes da Literatura Marginal, escolhe uma passagem de Parágrafos Fúnebres  (ficções editora 2020), sobre o coronavírus entre a população carcerária

Dia 5 de Abril de 2020  Começo a escrever este relato pensando na senhora, minha mãe, a única que em dez anos veio me visitar. Tenho saudades do seu sorriso, da sua voz, das broncas, do seu olhar e dos seus braços me acolhendo nas noites em que eu chegava lá no nosso barraco tumultuando, bêbado, cheio de droga e cachaça na mente, mas, ainda assim, uma palavra que a senhora me desse, dona Maria, me tirava daquela depressão. Todas as vezes que eu acordo, na verdade nem dormir direito dá pra dormir aqui, tem um pé na minha boca, outro na minha bunda… O incômodo é grande, e desde sempre se dorme com um olho aberto e o outro fechado.  Agora tudo está mais difícil: a comida cada vez pior, tem gosto de barro e de vez em quando até encontramos perna de barata no meio do arroz! Os carcereiros parecem indiferentes a todos nós. Quando perguntamos sobre a visita dos advogados, eles dizem que não podemos receber mais ninguém. Os desgraçados sabem que a doença já chegou dentro da cadeia, mas nós não temos notícia de nada disso, apenas um preso ou outro é levado para a enfermaria e não volta mais. Aos montes estão morrendo os encarcerados por aqui, e andam dizendo que os sintomas dessa doença dos infernos podem ser traiçoeiros. Ainda assim, tem presidiário olhando pelos cantos dos olhos. Eu não vacilo nunca, nem baixo a guarda, tenho vontade de viver. Ver o meu filho seria tudo para mim nesse momento, como ele está, dona Maria? Ele ainda vai para a escola? Continua se parecendo comigo? Da última vez que eu vi o meu filho, ele tinha cinco anos, agora deve estar com quinze. E eu ainda me lembro dele como um menininho levado que nem o pai. Diga ao Miguel que eu o amo muito, mãe, não se esqueça de dizer isso ao meu filho, ele não tem culpa de ter um pai desses. Na verdade, tem um cara na minha cela, o Juarez, que vive falando sobre arrependimento, da volta do senhor Jesus Cristo, dessas coisas que a senhora mesma vivia me falando, lembra? Então… Ele é quem está me ajudando a escrever este relato. Enquanto lê a Bíblia, de vez em quando olha para mim balançando a cabeça, como que dizendo para eu continuar a ter fé. Ele já está aqui há mais tempo que eu. Aprendeu a ler na prisão também, se converteu e converteu muitos companheiros de cela ao longo desses dez anos. O Juarez é gente boa, se a senhora soubesse o proceder do homem, iria gostar de ele estar sendo a minha companhia aqui dentro.  Ele me faz lembrar o meu pai, nunca falei isso pra ele, mas me traz a lembrança do velho, lá com o jeito caladão dele. É uma pena que na época em que fui preso o meu pai não tivesse vindo me visitar! Porra! O senhor Nelson deve ter morrido de desgosto, como a senhora mesma disse, mas é claro que me arrependo de ter feito com que ele passasse por isso também, aquele dia apontando a pistola para a sua cara, injuriado como o diabo, meus olhos não eram meus, me perdoa mãe, por favor, me perdoa!


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