Da ponte pra cá | Ricardo Escudeiro

Da ponte pra cá | Ricardo Escudeiro
O poeta Ricardo Escudeiro

 

Há um poeta, responsável pelos ramalhetes de versos contemporâneos que mais me emocionam hoje, que se define como “(ex) metalúrgico e (ex) professor”. A esse poeta, Ricardo Escudeiro, eu envio uma pergunta pelo WhatsApp:

“Em que quebrada você foi criado? Quando você pensa na sua quebrada quais são as imagens que te vêm à cabeça?”. Escudeiro me responde alguns dias depois:

“Nasci em Santo André, no ABC paulista, e fui criado no Parque Capuava, onde moro até hoje, bem próximo à divisa com Mauá. Bem próximo, também, muito próximo mesmo, do flare do Polo Petroquímico do ABC, então ao ler a pergunta uma das primeiras imagens que me vieram à cabeça tem um pouco lá do grotesco e do sublime. O espetáculo recorrente desse flare, olho de Mordor do Capuava, esse fogo forte e as explosões, mais frequentes do que gostaríamos, que parecem um sol artificial espetado no chão e capaz de odiar. Sem contar a fumaça escura que provavelmente nos sufoca há algumas décadas. Por isso a imagem é a da Terra Devastada, da Vila Gasolina. E, assim como em outras partes do país, infelizmente, a imagem de muita gente meia-vida disposta a se sacrificar pelos exploradores que se alimentam das nossas misérias.”

Cria do Parque Capuava, Ricardo assinou os poemas dos livros a implantação de um trauma e seu sucesso (Editora Patuá/Editora Fractal, 2019), rachar átomos e depois (Editora Patuá, 2016) e tempo espaço re tratos (Editora Patuá, 2014). Mas não é só o clima Mad Max que vêm com as lembranças de sua quebrada:

“Também me vieram imagens do filme Bacuaru. Além de muitas imagens que, creio, não são exclusivas daqui, como crianças gritando e chutando bola a esmo nos nossos portões, pessoas batendo a laje da própria casa, os escassos e precarizados espaços de lazer e cultura sendo engolidos por especulação imobiliária, igrejas universais e outras atrocidades, etc. E ainda, uma imagem do meu primeiro professor de violão (não que eu tenha tido algum outro, mas o chamo de “primeiro”) tateando meu primeiro violão pra enxergar a qualidade, ele era cego e dava aula na sala da casa dele, algumas ruas de distância de onde moro agora, sempre me perguntava se eu estava olhando pro braço do violão durante os exercícios, ele dizia que não era necessário. Pensando essas coisas juntas, me veio a imagem de um metrônomo, do nada. E agora a de um metrônomo do verso livre, que no fim não é tão livre. Me vem a imagem do lugar onde vivo, que é o meu poema sem restringi-lo a isso. E vice-versa.”

“Além do mestre cego de violão, quem de sua quebrada merecia ser conhecido no mundo todo?”, pergunto:

“A Mariana Godoy, não somente por ser, das pessoas que conheço, uma das que mais respeitam e tratam com seriedade a poesia, que lê muita poesia (pode ser um pouco óbvio dizer que poetas precisam ler poesia, tanto quanto ou em maior quantidade que produzi-la, mas há boa quantidade de “poetas” que passam longe, por opção, da leitura de literatura), que preocupa-se com a engenharia poética, sabendo, por um lado, que um poema não deve se reduzir a isso, e por outro lado que, enquanto instrumental, essa engenharia poética é imprescindível ao fazer poético. Mas, um pouco mais especificamente, por conta de, entre outras, coisas como essa: “mamãe entra no quarto/para contar que vovó morreu./fico com medo porque sei/que vovó virou fantasma./o telefone toca./corro até ele./quero ser a primeira a dizer/‘não podemos falar agora’/encontro papai chorando na sala./triste, bem triste./assim que percebe minha cara pálida/cobre o rosto com as mãos./olho a janela/e sorrio./nunca a chuva foi tão bonita.” (In: “O afogamento de Virginia Woolf”, Editora Patuá, 2019), um dos poemas mais bonitos dos que li na literatura publicada nos últimos anos.”

Mas Escudeiro não é poeta de uma só indicação. “Quantos nomes posso apontar?”, me pergunta. Lhe peço para se restringir a “uns três” artistas e ele segue:

“A Thina Curtis, poeta, quadrinista e fanzineira, idealizadora da Fanzinada (evento de referência nacional e internacional, que reúne gente fantástica de diversas quebradas) e que mora aqui perto de casa, uns dez minutos a pé. Poetas como Lidiane Santana, de Mauá, lar de um dos poetas que mais admiro e grande influência, o Edson Bueno de Camargo (1962-2014) e da  Atropelo Crossover, banda metal pesado na qual toca um dos melhores bateristas do gênero que já vi se apresentar ao vivo, o Paulo Medina. Conceição Bastos, de São Bernardo do Campo. Mateus Novaes, também aqui de Santo André e com livro novo chegando após quase uma década do lançamento de seu primeiro. Um breve passeio por Jardim Vila Rica, Jardim Santo Alberto, aqui em Santo André, Jardim Zaíra, em Mauá, Ferrazópolis, em São Bernardo, e é possível passar por alguns dos que são, creio, importantes nomes da poesia brasileira contemporânea insubmissa.”

E sua resposta insubmissa aos padrões segue generosas com os artistas das quebradas do ABC, berço do movimento operário dos anos 70 e de boa parte do punk rock nacional dos anos 80:

“Aliás, da boa poesia brasileira contemporânea insubmissa.  E insubmissa num sentido amplo, por não se querer dentro de programas totalizantes, por se negar a estar dentro daquilo que os grandes e os pequenos reguladores esperam e/ou impõem implícita ou explicitamente que seja o modo de produzir arte dos periféricos, por ir além dos discursos de determinados legitimadores/reguladores que, por exemplo, gostam de chamar uma poesia metropolitana de “potente”, “cerebral”, “antilírica”, etc, enquanto a uma poesia periférica (num sentido amplo da palavra “periférica”), para tais “legitimadores”, é o suficiente chamá-la de “combativa”, em um reducionismo não tão sutil quanto pensam. E não há nada de errado com essas nomenclaturas, mas sim com as práticas que visam cercear e “legislar” as poéticas que podem ou não serem praticadas a depender de localidades e interesses de mercado (lembrando que mercado literário e Literatura são coisas distintas, por vezes até divergentes). Por isso acho que muitas mais pessoas precisam conhecer poetas, de todos os tipos, das quebradas.”

Capa do livro "a implantação de um trauma e seu sucesso" de Ricardo Escudeiro
Capa do livro “a implantação de um trauma e seu sucesso” de Ricardo Escudeiro

Dois poemas de Ricardo Escudeiro

avada kedavra

Warlock: Por que é que você me trouxe aqui?
Zamiel/Canalizadora: Para que reúna
aquilo que foi tripartido.

 

e disse não pronunciarás nunca o título
gênese como quem diz

ruína

e se na história
mas e se na história hein
o mundo
existe só
pra se acabar no fim
pra se acabar num tríptico

eu crio enquanto falo

uma queda
bonita

turno doze por doze

já fim de dia entro no uber depois de enfrentar
duas enchentes e meia
entre os embargos de gentes
decorrentes da paralisação dos trens
da linha dez turquesa da c p t m
decorrente dos alagamentos nas estações e vias
toca o telemóvel pouco antes
da entrada de casa e falam de lá

aqui é o tiago
o tiago bob esponja
tá lembrado de mim

lembro sim xará

tá lembrado do josé
o josé princesa

lembro sim tava falando de você com ele esses dias

josé da solda

depois que saí da firma
quando a gente consegue trocar umas palavras
é sempre na correria aqui pela vila
mas se parar pra pensar né
isso não é muito diferente
de como era ali na linha de produção
mas então tava falando de você com ele
esses dias

então rapaz
o coração dele desligou hoje
soube por um status
que a esposa dele colocou em rede
e amanhã é o enterro

tava falando de você com ele esses dias
caralho
o departamento médico vivia fazendo pouco caso
caralho
tava com ele esses dias

de repente fica tudo pouco mais que escuro
e tudo
tudo o que não se ouve é um rádio
que nada fala da greve dos petroleiros
olho pra cima o céu já não desaba
e não há trovão mas também
nada da revoada dos pássaros
e sequer o berro que não cessa
da chaminé do pólo petroquímico
atrapalha esse momento de luta
entre o gesto mecânico do agradecimento ao desconhecido
muito obrigado uma boa noite um bom trabalho
e a confirmação por telefone
de que amanhã cedinho antes do expediente
nos vemos pra um enterro

claro lembro sim xará
silêncio
há uma porta batendo

quando um soldador morre
emudecem
as fuselagens do mundo
mas parar elas não param
elas não param nunca

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