Da ponte pra cá | Monique Malcher

Da ponte pra cá | Monique Malcher

 

“Sou uma semente da secura e umidade do Diamantino, bairro de Santarém, no oeste paraense. O ônibus levanta uma poeira gigante e desenha no muro da que eu costumava chamar de casa e ainda hoje é a casa de minha mãe. As crianças correndo ou voltando da escola, meu joelho se dobrando alto para alcançar a calçada do minibox do canto de casa, as vendas são construídas mais altas para poeira não entrar, mas ela sempre dá um jeito, igual a água e a palavra.”

Essas são as memórias que escapam da mente da escritora e artista visual Monique Malcher quando lhe pergunto quais são as lembranças que lhe vêm, quando pensa no bairro de periferia onde nasceu. Vir da quebrada para se meter no meio das artes não é fácil. Mais difícil ainda quando essa quebrada fica na região Norte em uma cidade que não é a capital do estado do Pará e a artista, em questão, é uma mulher:

“A palavra entrou pelas brechas em casa e deu nisso que é minha vida hoje. Também penso no som das palmas, e o grito alto para avisar que visita chegou. Ninguém marca horário não. A queimada com bola dura nas costas, a vida castiga mais que aquela brincadeira, tenho saudade. Ficar reparando nos insetos na frente casa e deixando comida para os gatos de rua no portão. Ver minha mãe chegando com a bolsa tiracolo com sorriso no rosto. Tomar banho de cuia. Ouvir passarinho o tempo todo até irritar o ouvido e depois amar de novo ouvir. Tudo é forte, infinito, mora dentro de mim e dói lembrar porque estou longe.”

Mas aos poucos, as mudanças sociais que marcaram o país entre 2003 e 2016 também influenciaram os círculos artísticos e algumas mulheres — como Monique, que é mestre em antropologia e doutoranda interdisciplinar de ciências humanas pela UFSC — ocuparam a academia e as editoras de livros. Malcher lançou, em 2020, os contos de Flor de Gume (Jandaíra), editado pela escritora Jarid Arraes. Ela é, também, a responsável pelas artes da edição 234 da revista Cult.

“Que artista da tua quebrada o mundo precisa conhecer?”, lhe pergunto tentando traçar uma teia de indicações e afetos que possam puxar mais Moniques para os holofotes:

“Com absoluta certeza a cearense amiga, poeta, que tem as poemas que me rasgam e me reviram, Ma Njanu. Já acompanhava a Ma por um bom tempo, trocamos mensagens e apoiamos uma o trabalho da outra nessa rede de artesania e afetos “, diz Monique, que continua:

“Ler a publicação Olho de tigre com fome: considerações sobre a literatura perversa me deu uma boa lambida no juízo e mexeu comigo de diversas formas. Gosto como Ma nos provoca em pensar A POEMA como esse dispositivo insubordinado, perigoso, revolucionário. Sem precisar buscar referências lá fora do erótico ou do subversivo. Essas referências estão no dentro, nas bodas, entre nós. Quero ler e estar com mulheres reais. Ela é definitivamente uma das minhas poetas favoritas contemporâneas.”

Monique Malcher é a autora de "Flor de Gume"
Monique Malcher é a autora de “Flor de Gume”

2 textos de Monique Malcher

Imaginei com muito deleite os vermes vindo feito príncipes encantados. Sinto muito que só agora sinta que viver é uma boa maneira de me vingar do vazio. Não sou vítima, sou estrangeira na terra das coisas ruins, um lugar que os olhos não podem encarar. [Flor de Gume, p. 101 ]

Búzios do querer

Os búzios no tornozelo sensível ao seu desaparecimento. Sei quem me guia os passos, sem deixar que faça o trabalho que preciso nesse átimo.

Torço a felicidade que incha os pés.

Encho o copo com água, açúcar, sal. Bebo a calma de você não me querer ao lado. Que culpa posso encaixar nos quereres além de minha própria impossibilidade de levantar da cama de falsa umidade que me afogo?

Tem tantas cicatrizes nos pés de meu rosto, repara. Os búzios desenham a negativa.
Veja por favor se me ama.

Deixo que os ratos passem saliva no meu buço. Que façam festa enquanto espero quem nunca entrou no tabuleiro comigo, e tem esse direito. Sobre direitos e deveres, luto contra o ralo. Cada vez que não sou amada é uma canção de despertador que diz… se ame e segure firme. No tornozelo os búzios sibilando aventuras que não tardam se assim eu quiser. É que demora d’eu querer.

 


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