Da ponte pra cá | Luna Vitrolira
Luna Vitrolira é uma artista múltipla: pariu livro, disco e filme. Também são múltiplos os ninhos onde sua arte foi chocada: “A minha quebrada são várias. Fui criada entre o Alto de Santa Isabel, o Alto da Favela do Vasco da Gama, em Recife, e Jardim Paulista Baixo, em Paulista”, diz Luna, finalista do Prêmio Jabuti 2019 com o seu livro de poemas Aquenda – o amor às vezes é isso.
Peço à Luna memórias sobre os territórios onde sua infância se desenrolou:
“As primeiras imagens que me veem à mente são das casas de taipa de meus avós que estão quase caindo; das festas na infância quando minha mãe nos ensinava a sermos brincantes e dizia que tínhamos que nos divertir enquanto podíamos, porque a vida passava ligeiro e nada seria fácil depois. Do carnaval na casa de minha avó materna, na rua do Sobe e Desce, por onde passavam os trios elétricos e desfilavam os caboclinhos, e dos shows no pátio da feira. Lembro da gente brincando de bomba d’água feita com cano PVC e borracha de chinelo. Penso na vista panorâmica que dá para os morros vizinhos; penso nas ladeiras e escadarias que sofria pra subir, do movimento nas ruas estreitas, da gente tocando percussão no grupo Ilê o’que Azauane, no Morro da Conceição.”
As memórias da poeta pernambucana vão brotando e desenhando sua quebrada com palavras fotográficas, que remetem a cheiros e gostos:
“Penso nos espetinhos, nas carroças de tudo quando é lanche na pracinha de Jardim Baixo. Na barraca de Nena, que um dia foi de Seu Gordo, onde íamos comprar confeito de um centavo, sacolé e amendoim; no povo sentado nos batentes das calçadas depois do jantar. Nos bregas na casa dos vizinhos sempre tocando nas alturas, muitos cachorros rasgando os sacos de lixo, canal a céu aberto e as kombis sempre lotadas.”
Em meio à nostalgia, Luna, que transformou Aquenda em um filme musical, garimpa momentos de medo e violência. Só quem é de lá sabe o que acontece: “Lembro do medo, [ele] veio depois, consciente da violência. Do receio de pegar ônibus à noite pela BR e saltar na parada pra andar até a minha rua, que sempre foi mal iluminada. Me veem imagens de familiares que perdemos para o crime, imagens dos assaltos que sofri e a fobia que acabei desenvolvendo à armas de fogo, facas e policiais.”
Repito para Luna a pergunta que farei para todos artistas brasileiros destacados nesta seção da Cult:
_ Que artista da tua quebrada o mundo precisa conhecer?
_ Sarau Boca no trombone, roda de poesia e batalha de conhecimento que acontecem no bairro de Água Fria, no Alto do Pereirinha, todas às terças à noite. O Sarau movimenta jovens, de todas as idades, pela zona norte do Recife, funcionando como ponto de encontro e espaço de livre expressão. O sarau promove a poesia falada como forma de reconhecimento das matrizes étnicas na comunidade e no território; como uma forma de fortalecer memórias e narrativas; de resgatar jovens do crime, mostrando a arte, a literatura e a poesia enquanto caminhos possíveis de luta, resistência e trabalho. O sarau provoca um êxtase indizível; a roda nunca para de girar e são muitos jovens MCs incríveis exercitando o poder de suas vozes e palavras, arriscando-se na rima e no improviso no meio do campo do Barrerão, que durante o dia é de futebol e de noite se transforma em uma arena de versos. Além do espaço para a poesia, o Boca no Trombone também atua com articulações de assistência na comunidade, sobretudo durante a pandemia, arrecadando sestas e distribuindo. Adelaíde Santos é uma das organizadoras, poeta e rapper, responsável pela difusão e projeção do Boca. O mundo precisa conhecer!
Dois poemas de Luna Vitrolira
poema 1
como eco dos porões do navio
estão a dar com pau
por onde quer que eu passe
o mundo me parece meio esclarecido
mercado negro
magia negra
buraco negro
ovelha negra
caderno negro
peste negra
mas que negro bonito
da cor do pecado
de traços finos
alguém diz de peito cheio
como fosse elogio
me respeita que eu não sou tuas nega
seu nego safado
e se à vista não parece claro
decerto foi denegrido
como um pente
dente fino
que não passa
na carapinha
no mafuá
na piaçava
quando a coisa fica preta
arma branca não mata
cuidado com a lista negra
inveja branca é liberada
se a galinha for preta
tem macumbeira na área
mas a pomba
a pomba branca é exaltada
eu é que sou a mulata
filha de meia tigela
sem eira nem beira
nasci com os pés na cozinha
e o samba do criolo doido
nas pernas
poema 2
as mãos calejadas dizem
do corte da cana
carregam entulhos
e cinco litros d’água
para sustentar a fome
nas depressões inundadas
os passos afundam
como se afundasse
um navio negreiro
com ele
muitas vidas viraram
obras de museu:
um homem sem rosto
um rosto sem nome
um nome sem gente
e sua terra incinerada
minha família veio num desses
que não afundou
com a tempestade
dispersa
nossa história enterrou-se
difícil encontrar os ossos
e as pedras que dirão de nós
memória tem águas espessas