Crise das esquerdas é também uma crise de utopias, diz sociólogo
Arte sobre foto de Jared Wingate (Reprodução/Arte Revista CULT)
A esquerda perdeu seu ideal utópico. Para o sociólogo e psicanalista Carlos Muanis, a emergência global da direita coincide com um momento em que a esquerda encontra-se “órfã” de utopias e, consequentemente, alheia a demandas sociais. “Enquanto a esquerda não entender o buraco teórico, utópico e o distanciamento em que acabou se metendo em relação à sociedade, fica difícil repensar o que fazer”, afirma.
Apontar possíveis saídas para tamanho impasse é justamente o objetivo do livro Crise das esquerdas, cujo lançamento acontece nesta sexta (23), na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo. A obra reúne intelectuais e ativistas como Renato Janine Ribeiro, Ruy Fausto, Guilherme Boulos e Cícero Araújo em ensaios e entrevistas que refletem sobre os caminhos da esquerda no Brasil e no mundo.
Em entrevista à CULT, Carlos Muanis, um dos organizadores da edição junto do cientista político Aldo Fornazieri, explica por que a crise das esquerdas é também uma crise de utopias. “O fundamental é constatar essa incapacidade da esquerda de formular e entender o momento pelo qual o mundo está passando.”
CULT – Como você definiria a crise das esquerdas?
Carlos Muanis – Eu diria que é uma crise múltipla, com várias sombras e luzes, mas também uma crise que indica um campo de oportunidades. É uma crise de utopia. Nós perdemos esse ideal utópico. Somos órfãos das utopias na medida em que nos distanciamos brutalmente de algumas demandas da sociedade, que são novas e que estão aí. Ou seja, perdemos o imaginário da politica, que se deslocou para um campo mais conservador, mais pragmático. Principalmente a esquerda democrática precisa pensar no significado desse descolamento dela com a sociedade, com a ação política. É claro que não é uma crise só da esquerda, eu diria que é ampla, se você olhar o mundo, Europa, Estados Unidos, China, Rússia, Ásia, Oriente Médio, os conflitos todos, verá que há uma crise sistêmica, quase civilizatória. Estamos em uma espécie de labirinto, tentando lidar com uma série de desafios. Mas o fundamental é constatar essa incapacidade da esquerda de formular e entender o momento pelo qual o mundo está passando. Esse é o grande desafio que se tem. Enquanto a esquerda não entender o buraco teórico, utópico, o distanciamento em que ela acabou se metendo em relação à sociedade, fica difícil repensar o que fazer.
Como resgatar esse ideal utópico?
O elemento a ser acrescentado é a recuperação da ideia do processo de construção de uma nova sociedade. De uma nova esquerda, dos novos desafios, uma nova visão de mundo, uma nova visão de humanismo, defender esses valores cada vez mais. Não abrir mão em nome de nada, em nome de pragmatismo nenhum. Eu sei que o jogo político pressupõe alianças e negociações constantes, mas cabe à esquerda ter essa âncora de pensamento. Só assim ela sai do labirinto, sendo possível analisar os impasses vividos nas alianças em cada país, em cada circunstância, e criar uma nova pedagogia de ação política.
Essa crise mundial está também relacionada com essa orfandade das utopias?
Eu acho que sim. É uma mistura dessa orfandade com políticas desastrosas. Se você analisar a ascensão do neoconservadorismo das últimas décadas vai ver que, gradativamente, as questões socais foram perdendo espaço na medida em que hoje há um sistema financeiro que é absolutamente dominado pelas grandes instituições, a chamada desregulamentação absoluta do grande capital. Não estou dizendo que isso seja culpa exclusiva da esquerda, mas é um processo simultâneo. Ao mesmo tempo que veio uma crise de horizonte veio também um sistema que foi esmagando esses setores sociais.
Em que sentido os últimos acontecimentos políticos brasileiros fazem parte desse processo sistêmico de desestruturação global?
Nós estamos em um processo globalizado em todos os sentidos. Os caminhos dos processos de corrupção e desvios são internacionais, não estão mais circunscritos a um país. E aí sofremos o desgaste da ação política desastrosa do PT, que acabou incorporando esse sistema como parte da sua ação política. Nós não somos uma ilha, vamos ter que olhar o mundo também, analisar os processos que estão acontecendo em outros lugares e ver o que se pode aproveitar em relação a isso. Já passou da hora do PT fazer uma reflexão, uma autocrítica de todo esse processo desses anos todos. Isso faria bem para a esquerda e para o país na medida em que o primeiro governo do Lula chegou a encantar o mundo inteiro como uma nova força política alternativa. A derrota da esquerda no Brasil não deixa de ser a derrota da esperança que se criou no restante do mundo, da esquerda mundial que viu naquele momento uma oportunidade de ouro de fazer um avanço substantivo aqui no Brasil. É preciso ter coragem para continuar avançando; repensar, olhar o que aconteceu, abrir espaço para o novo.
Até que ponto essa crise, no Brasil, relaciona-se com o governo do PT?
Relaciona-se e muito na medida em que o PT cresce com uma bandeira de luta contra a desigualdade muito fincada nos valores de uma ética política, e no decorrer do processo não foi isso o que se verificou. Não se pode menosprezar a inclusão social que o PT fez durante seus governos, os programas sociais, não se pode menosprezar isso, ao contrário. Mas o partido foi aos poucos se encastelando nos gabinetes de poder, e em pouco tempo acabou compondo com os chamados financiadores de campanha, os que financiam a política do Brasil, que são os grandes grupos de interesse – e pagou o preço caro que todo mundo está vendo agora. O problema do Brasil é que a esquerda está muito vinculada ao PT, e é preciso dar uma guinada para poder ganhar de novo a confiança do eleitorado, já que a esquerda ficou associada aos esquemas de corrupção desse sistema que ela se elegeu prometendo combater. Trata-se de conciliar isso. Como reestruturar um novo pensamento, novas alternativas, incorporando os movimentos sociais novos, as periferias que não querem saber de partido, que se organizam de outra forma, que não veem nos partidos mais a sua representação. Como é que você dialoga com isso estabelecendo uma nova ética do relacionamento público e privado, ou seja, o combate à corrupção sórdida, essa praga mundial. Os partidos não vão mais representar a sociedade como antes, eles serão parte do processo mas não se esgota nisso.
Como a esquerda pode repensar suas estratégias políticas nesse cenário de distanciamento e perda de utopias?
Não há resposta simples, concreta e clara sobre isso, mas ela deve abranger os principais temas em debate hoje pela sociedade, a começar pela questão ambiental (hoje só quem dá ênfase a isso são ONGs), a igualdade de gênero, a questão racial, a questão da sustentabilidade como um todo e fundamentalmente a questão democrática. A esquerda vai se reconstruir na medida em que jogar na radicalização da democracia. Esse é o grande desafio que a esquerda tem hoje. Olhar em que medida as políticas públicas e as formulações ideológicas apontam para essa radicalização democrática, ou seja, transformar a democracia na nossa casa comum. O Brasil, por exemplo, é um país que ainda continua com um índice de desigualdade brutal, uma desigualdade que eu diria epidêmica ainda, se imaginar, por exemplo, índices como saneamento. Como é que você pode pensar em algo que não seja um fortalecimento de uma democracia substantiva? Por aí há uma pista para a ação política.