Crianças de um futuro impuro

Crianças de um futuro impuro
Qual espaço resta àquelas crianças que descumprem o aparente tratado entre sexo, gênero e sexualidade? (Foto: Getty Images)

 

Debates e controvérsias acerca da categoria infância têm ganhado, ao longo da última década, um espaço privilegiado no cenário público brasileiro. Podemos citar como pontos dessa extensa genealogia a querela do chamado “kit gay”, iniciada em 2010, bem como os debates em torno do Plano Nacional de Educação, em 2014 – quando o sintagma “ideologia de gênero” passou a operar como mobilizador político no país. Consolidou-se, em nossa história recente, uma associação paranoica entre a criança e os perigos da diversidade sexual e de gênero – perigos contra os quais a categoria “infância” precisaria ser protegida e assegurada.

É na esteira de tais empreendimentos que, na corrida eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro afirmou sua oposição aos referidos termos, de modo que “kit gay” e “ideologia de gênero” se tornaram eixos fundamentais de sua campanha. O movimento acompanha uma série de investidas transnacionais de rechaço e cooptação institucional das temáticas de gênero e sexualidade ao redor do globo, o que muitos acadêmicos vêm nomeando como “ofensivas antigênero”. Podemos afirmar que, com o início da gestão Bolsonaro, tais ofensivas deixaram de ser representadas apenas por uma bancada de parlamentares para operar no interior do próprio Executivo. Consolidou-se, assim, um Estado antigênero, que reiteradamente afirma e produz o pânico sobre a diversidade, situando a infância como eixo estruturante e como veículo de mobilização para apoiadores.

Talvez o exemplo mais explícito desse pânico se encontre na famosa frase de Damares Alves, que, ao assumir seu posto como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou que estaríamos entrando em uma nova era, na qual “menino veste azul e menina veste rosa”. Se tal enunciado parece demasiado risível, é importante levarmos em consideração que tais disputas em torno de um ideal de criança não se restringem ao plano caricatural. Na retórica que embasa as supostas ameaças à infância, toma centralidade a associação entre diversidade e pedofilia, assumindo que o mero reconhecimento da existência de crianças não heterossexuais ou cisgêneras serviria de legitimação para possíveis violações. Não por acaso, Bolsonaro afirmava, em 2011, que materiais didáticos anti-homofobia tornariam “nossos filhos presas fáceis para pedófilos”.

A pedofilia segue sendo um importante elemento de sustentação retórica para Bolsonaro e seu corpo ministerial. Por exemplo, ao final do primeiro ano de governo, Damares Alves afirmou, em entrevista ao Correio Braziliense, que sua principal luta seria contra o abuso sexual infantil. Em suas palavras: “é a luta da minha vida. Eu fiz da dor a minha luta”, disse, relatando o impacto que vive até hoje por ter sido vítima de violência sexual quando criança. Se a violação de crianças e adolescentes ainda é um tema de extrema relevância para nosso país, faz-se difícil discernir, na retórica governamental, o que seria, de fato, a “violência contra a criança”, dado que os critérios para determiná-la parecem demasiado solidários à manutenção de outras violações, sobretudo aquelas referidas à discriminação por gênero e sexualidade.

Assumindo que algum tipo de prioridade é dada às crianças no regimento de uma política de Estado, seria arriscado dizer que essa categoria se tornou um conveniente canal de legitimação do governo a partir de valores compartilhados com seus apoiadores? Se sim, seria possível considerar que questões como “diversidade” ou “diferença” – principalmente quando relacionadas a crianças – também podem estar sendo lidas sob a ótica do abuso?

É notável que o mero reconhecimento da infância para além da heterocisnormatividade já figura como ponto de oposição e rechaço do atual governo e de seus representantes. Por essa via, a nossa análise é que a manutenção de um ideal de criança (presumidamente cisgênero e heterossexual), bem como a garantia de um padrão específico de família e da própria diferença sexual, precisa situar a diversidade como algo que macula a imagem idealizada da infância, degradando a pureza fantasiosa que impomos sobre a vida das crianças.

Mas a infância não surge como uma categoria isolada. Enquanto alteridade, ela diz respeito também à adultez – bem como à família, por consequência. Quando falamos em crianças, estamos, ademais, falando sobre adultos – o que significa admitir que preocupações baseadas na sustentação do caráter normativo e idealizado da infância atuam também para prevenir (ou evitar) a formação de adultos impuros.

 

Crianças gays, trans,
lésbicas, dentre tantas
outras, corrompem o
sistema de repetições
normativas que garantem
a legitimidade de um
padrão específico de
família e de adultez.
Por essa razão, são
tomadas como ameaça
para a continuidade
do mundo.

 

 

É com esse argumento que Lee Edelman, teórico da psicanálise e dos estudos queer, considera o ideal imaginário de infância como um sustentáculo para a própria ideia de futuro. A criança idealizada seria a efígie do “futurismo reprodutivo”, ou seja, a lógica que demanda um esforço contínuo e cada vez mais intenso na proteção da infância para que o mundo continue se replicando como é. Protegendo a infância, protegemos o adulto. Protegendo a infância, protegemos o futuro, a família, a linearidade.

O diagnóstico de Edelman não poderia soar mais atual no Brasil de 2021, momento em que a defesa deste ideal de infância opera como pilar retórico da extrema direita no exercício do poder. As crianças outras, situadas nas fronteiras do ideal normativo, parecem irromper a lógica do futurismo imposto à reprodução do mundo tal qual ele é. Precisam ser corrigidas e até mesmo eliminadas em nome da preservação do futuro. Assim como precisam ser eliminados os “ideólogos de gênero” – degenerados e pervertidos que atentam contra crenças basilares da nossa formação cultural, social e econômica.

A defesa de tais valores primordiais para a civilização passa a ser imposta aos primeiros anos da vida, com a intenção de certificar dada ordem e dado progresso. Qual espaço resta àquelas crianças que descumprem o aparente tratado entre sexo, gênero e sexualidade? Aquelas que subvertem a lógica do feminino e do masculino, que desobedecem a pretensa coerência do desejo? Jack Halberstam, outro expoente dos estudos queer, aponta para a necessidade de afirmarmos outras formas de descobrir e de nos relacionar com a ideia de desenvolvimento humano. Seja coletivo ou individual, o desenvolvimento parece estar normativamente conectado à produção de relações lineares, imutáveis e estáveis, imbuído em ideais de progressão e sucesso.

Vivemos no Brasil, “o país do futuro”. Ordem e progresso estão grifados em nossa bandeira. Não soa estranho que um ideal de infância esteja tão investido politicamente no fomento a preconceitos e processos de precarização.

No entanto, se as atenções dadas a essa faixa etária revelam a marca da intolerância, talvez deixem escapar certo potencial desestabilizador contido na própria infância. Poderiam as crianças, essas que não encontram repouso sob o guarda-chuva do progresso da nação, ter algo a nos ensinar? Para Halberstam, esse fracasso da realização normativa não deveria ser combatido, mas sim assumido enquanto estratégia vital. Fracassar, para o autor, implica perturbar a lógica reprodutiva da normalidade.

Por que almejamos ser (ou termos sido) crianças do progresso, quando essa progressão é tributária da repetição esvaziada de um roteiro excludente? Pensando ludicamente, como instrumento de análise sobre a infância, é como se estivesse ilustrada uma definição de infância desde uma lógica atacadista. Menino, pênis, azul. Menina, vagina, rosa. Signos que procuram obter sucesso em sua busca por coerência. Mas qual é o efeito de tal “harmonia” nas vidas das próprias crianças? Nesta perspectiva cumulativa, na qual uma coisa leva a outra – como o biológico leva ao social, o genital leva à procriação -, resta pouco espaço à desobediência, tendo em vista que as crianças identificadas como “infratoras” pagam um alto preço por suas transgressões.

Às vezes, sendo expulsas do lar. Outras vezes, sendo excluídas na escola. Frequentemente, sendo alvo de um discurso religioso que busca curá-las, tratá-las, corrigi-las e levá-las de volta ao “caminho” do futuro, do qual não deveriam ter sido (des)viadas. A moral do “amanhã” atua na defesa de uma maneira de viver em sociedade, que, apesar de se encontrar em declínio, mantém a heterossexualidade e a cisgeneridade como traços valiosos e inquestionáveis.

Falar sobre as crianças sem futuro, assim, é estabelecer uma conversa mais honesta sobre a possibilidade de termos relações mutáveis, provisórias, irônicas. Com essas palavras, não queremos simplesmente abortar o futuro, mas sim expressar nosso interesse em outros destinos, para além daquele que nos impõe uma trajetória normativa, linear e progressiva. Queremos contestar tal roteiro perguntando: onde ficam as crianças trans? As crianças gays? Lésbicas, travestis, não-binárias e tantas outras? Qual espaço sobra às crianças que entram em desacordo com essas políticas de morte subjetiva, de aniquilação da diferença?

As crianças sem futuro, ao invés de sustentarem a norma, apontam a urgência do fim de um mundo sufocante, para quem sabe vislumbrarem o nascimento de um mundo criativo, resistente aos limites da discriminação e do preconceito. Já que o progresso e o futuro da nação tornam-se lemas que representam a agressão e o precipício da diversidade, talvez precisemos eleger o fracasso do futuro como alternativa à vida. Por essa razão, não interessa a nós, ex-crianças sem futuro – talvez adultos igualmente sem futuro – o retorno nostálgico a um passado fictício, ou mesmo à redenção no horizonte póstero. Queremos disputar, agora, o paradigma cruel e violento imposto a tantas de nós que contradizem a lógica mortífera da heterossexualidade e da cisgeneridade (e, não esqueçamos, também da branquitude).

Assim, apontamos que não é na pureza da infância que nossa inspiração encontra algum repouso, mas sim na sua profunda capacidade de desestabilização.

SOFIA FAVERO é doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS)

JOÃO GABRIEL MARACCI é doutorando em Psicologia (UFMG).


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