Um coração em forma de cinzeiro

Um coração em forma de cinzeiro
(Foto: Divulgação)

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Nos últimos anos, Fabrício Corsaletti tem evidenciado que sua poética se realiza de maneira mais intensa na armação integral de cada livro. Essa observação, talvez banal, ganha maior fôlego quando pensamos na desenvoltura do autor, cujos versos também circulam bem nas páginas de jornais e revistas, e de sua dicção, que se mantém coesa entre o vocabulário cotidiano e o jogo sutil com os metros tradicionais. É que a experiência sensível e a linguagem pop deste poeta se conformam, quase sempre, numa estrutura milimetricamente projetada, que dá indícios muito firmes de construção àquilo que, na superfície, se forja como um achado irresistível.

Não faria sentido retomar aqui o velho debate entre “inspiração” e “trabalho de arte”, mas vale a pena assinalar esse aspecto fundamental da poesia de Corsaletti, dentro da qual a expansão dos experimentos líricos depende de uma valorização, cada vez mais consciente, do livro como projeto. Se desde Estudos para seu corpo (Companhia das Letras, 2007) os poemas são pensados como parte de um conjunto – elaborados, por exemplo, como variações em série –, em livros mais recentes essa integração parece consolidada, como fica patente no mergulho no universo de Almodóvar em La ley del deseo y otras películas (Corsário Satã, 2023) ou na meditação a um só tempo terna e irônica da plaquete São Sebastião das Três Orelhas (Fósforo/Luna Parque, 2023).

Entre esses novos trabalhos, prolongando a articulação das queixas e das alegrias da vida comum com o esmero e o maquinário do apuro formal, Corsaletti nos apresenta também Engenheiro fantasma (Companhia das Letras, 2022), inusitada reunião de 56 sonetos atribuídos a ninguém mais, ninguém menos, que Bob Dylan.

A premissa do livro, explicitada pelo poeta num breve prólogo, instaura a condição ficcional do sujeito nos poemas: em algum momento da década de 2010, Bob Dylan teria se exilado em Buenos Aires e, nessa curta temporada, teria publicado um volume com 200 sonetos ambientados na capital argentina. Desse livro-delírio de Dylan, Corsaletti recupera uma pequena parte, inventando em português brasileiro uma possível tradução para esses falsos (?) sonetos do prêmio Nobel de Literatura.

Entrando nessa mínima babel, não deixa de ser curioso imaginar como algumas rimas instigantes (“Ushuaia”/ “samambaia”; “gaúchos”/ “bruxos”; “você mora”/ “Évora”; “orixás”/ “jazz”) soariam no suposto idioma original, que pouco aparece nas páginas do livro:

às vezes vou andando até Almagro
entro nas lojas e no Bar del Loco
“do you speak Spanish?”, me perguntam, “poco”
o meu vocabulário é muito magro

Nesses sonetos, os ouvintes de Bob Dylan certamente encontrarão ecos de suas canções (“os mercadores bebem do meu vinho”), mas também das canções de outros compositores, de paragens mais ao sul, como Caetano Veloso (“a brisa traz o cheiro das meninas”), Jorge Ben Jor (“…e os alquimistas estão chegando”) ou Chico Buarque (“…quando canto/ que se cuide quem não for meu irmão”). Na caixa de ressonâncias do livro, cabe, inclusive, alusões à obra do próprio Corsaletti (“eu vou te dar o amor de um esquimó”), o que não significa que estamos diante de uma algaravia, em que múltiplas vozes se embaralham. O que temos aqui é uma voz singular, de um Dylan imaginado, na qual se imiscuem, em uníssono, o próprio (do autor?) e o alheio (do personagem?).

O truque de um bom ventríloquo é despistar os olhares do público, fazendo com que sua voz se projete, aparentemente, a partir da máscara de um outro. Ou seja, nesse lúdico espetáculo, é preciso se apagar para se fazer ouvir. E é exatamente isso o que faz Corsaletti em Engenheiro fantasma: assumindo a vida inventada do bardo de Minnesota, o autor dos poemas forja uma outra subjetividade, cuja condição particular modula, de maneira sutil, as reflexões sobre a cidade (“Buenos Aires é o antilabirinto”), o amor (“diante dela eu nunca me mascaro”) ou a própria vida (“dizem que quem não quer morrer se adapta”).

De todo modo, a ênfase na primeira pessoa do singular oscila, às vezes de maneira abrupta, entre a autovalorização heroicizada (“vou transformar aqui a minha arte/ como Picasso eu não procuro, eu acho”) e o violento rebaixamento (“eu me pergunto se fiz o que pude/ e em seguida me sinto repulsivo”), costurando uma imagem reatualizada do poeta como aquele que carrega, dentro em si, infinitas possibilidades de existência:

sonhava em ser um outro, um cientista
de algum país do sul, viver focado
foi quando levantei e abri a porta.

Isso não significa que essas infinitas possibilidades estejam realmente abertas. Em Engenheiro fantasma, os momentos de maior entusiasmo com a vida são balizados por uma consciência aguda de que “o mundo é um deplorável armazém/ que em pouco tempo vai estar na lona”. Todavia, mesmo sentindo a iminência de um grande desastre, cabe ao poeta recolher aquilo que, nesse “deplorável armazém”, ainda merece ser cantado:

gosto de terno, gosto de japona,
de Madalena, de Matusalém,
de bloody mary, kir royal também
gosto da Califórnia e do Arizona

Assim, observando o mundo com atenção, esse sujeito ficcional ancora-se em seu próprio tempo (“eu vivo inteiramente no presente”), não por considerá-lo especial, mas por compreender que é nele que a trama da vida se desenrola, com surpresas (“flor no inverno, neve na primavera”) e percalços (“desci a rua em cava depressão”). Esse olhar atento comparece também na força das imagens (“um passarinho canta é com a asa”) e nas sentenças lapidares (“a ruína é bonita porque é fosca”), capazes de arrancar beleza dos lugares mais inesperados.

Por convicção do autor, não há nada de obscuro em Engenheiro fantasma: os 56 sonetos se mostram por inteiro, articulando-se em remissões internas que vão revelando as obsessões e os anseios de um sujeito exilado. Na outra ponta, Fabrício Corsaletti não promete nenhuma sinceridade nesse processo, transferindo para Bob Dylan – esse outro tão distante, mas tão conhecido – todo o ônus da exposição. Desse modo, curiosamente, o poeta parece redobrar sua aposta na dimensão coletiva da lírica (“somos dois, somos um, somos ninguém”), apresentando uma maneira inusual de experimentar a vida que, pela formulação poética, pode ser também experimentada por quem lê.

Num tempo em que a própria ideia de partilha está sob suspeita, essa aposta poética pode parecer excessivamente alta. Mas, recuperando um termo hoje em desuso, o eu-lírico de Engenheiro fantasma mostra-se consciente dos riscos que assume (“quando não perco quase sempre ganho”) e, por isso mesmo, mantém-se, apesar de tudo, aceso:

meu coração tem forma de cinzeiro
eu como amendoim e jogo as cascas
quem foi que declarou que a vida é oca?

 

Renan Nuernberger (São Paulo, 1986) é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, com tese sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto. Como poeta, publicou Mesmo poemas (Sebastião Grifo, 2010) e Luto (Patuá, 2017). Em parceria com Viviana Bosi, organizou o volume de ensaios Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (Humanitas / Fapesp, 2018).


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